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2. Escola Indígena: conquistas e desafios

2.2. O ENUNCIADO E OS GÊNEROS DE DISCURSO

Para Bakhtin (2009, p. 16), a enunciação, “[...] compreendida como a réplica do diálogo social, é a unidade de base da língua, trata-se de discurso interior [diálogo consigo mesmo] ou exterior [...]”. A enunciação é de natureza social (portanto ideológica), “[...] não existe fora de um contexto social e há sempre um interlocutor, ao menos potencial. O locutor pensa e se exprime para um auditório bem-definido” (BAKHTIN, 2009, p. 16).

Assim, cada enunciado “[...] é individual, mas cada campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais denominamos gêneros do discurso [...]” (BAKHTIN, 2003, p. 262, grifo do autor). Bakhtin, então, denominou de gêneros de discurso o conjunto de enunciados típicos de determinados grupos sociais. Eles caracterizam as diferentes vozes ou linguagens sociais desses grupos. Como bem define esse filósofo:

A riqueza e a diversidade dos gêneros do discurso são infinitas porque são inesgotáveis as possibilidades da multiforme atividade humana e porque em cada campo dessa atividade integral o repertório do gênero do discurso, que cresce e se diferencia à medida que se desenvolve e se complexifica um determinado campo (BAKHTIN, 2003, p. 262).

Haja vista a complexidade dos gêneros do discurso, Bakhtin os classifica em primários (simples) e secundários (complexos). Os gêneros discursivos primários se formam nas condições da comunicação discursiva imediata (BAKHTIN, 2003). Os gêneros discursivos

secundários, por seu turno, “[...] surgem nas condições de um convívio cultural mais complexo e relativamente muito desenvolvido e organizado [...]”, predominantemente o escrito (BAKHTIN, 2003, p. 262). Podem ser exemplificados pelos discursos da literatura, da ciência, da filosofia e da política. Eles incorporam e reelaboram, no processo de sua formação, diversos gêneros primários, portanto, correspondem a uma interface dos gêneros primários.

Nessa integração, os gêneros discursivos primários “[...] se transformam e adquirem um caráter especial: perdem o vínculo imediato com a realidade concreta e os enunciados reais alheios [...]” (BAKHTIN, 2003, p. 264). Correspondem “[...] a um espectro diversificado da atividade linguística humana relacionada aos discursos da oralidade em seus mais variados níveis [do diálogo cotidiano ao discurso didático, filosófico ou sociopolítico]” (MACHADO, 2005, p. 144).

Bakhtin (2003) afirma também que em qualquer estudo “[...] faz-se necessária uma noção precisa da natureza do enunciado em geral e das particularidades dos diversos tipos de enunciados (primários e secundários), isto é, dos diversos gêneros de discurso” (BAKHTIN, 2003, p. 264). Dessa maneira, a relação entre os gêneros primários, os secundários e o processo de formação histórica dos últimos lança luz sobre a natureza do enunciado (BAKHTIN, 2003). Elencamos para esta investigação o gênero de discurso do cotidiano (gênero primário) e o gênero de discurso da ciência (gênero de discurso secundário).

Ainda conforme Bakhtin (2003), a língua “passa a integrar a vida através de enunciados concretos”, e todo enunciado (oral e escrito, primário ou secundário) “[...] é individual e por isso pode refletir a individualidade do falante (ou de quem escreve), isto é, pode ter estilo individual [...]” (BAKHTIN, 2003, p. 265). Os estilos de linguagem são os estilos de gêneros de determinadas esferas da atividade humana. As funções e condições de comunicação de cada campo geram determinados gêneros, isto é, “[...] determinados tipos de enunciados estilísticos, temáticos e composicionais relativamente estáveis [...]” (BAKHTIN, 2003, p. 266). Segundo esse autor (2003, p. 268): “[...] Onde há estilo, há gênero. A passagem do estilo de um gênero para outro não só modifica o som do estilo nas condições do gênero que não lhe é próprio como destrói ou renova tal gênero.”

Seguindo essa linha argumentativa, Machado (2005, p. 145) procede às seguintes considerações:

[...] é no mundo das comunicações interativas da vida cotidiana que o processo combinatório dos gêneros discursivos manifesta sua virtualidade. Esse é um mundo em devir, no qual tudo está em movimento e nada está terminado, nem mesmo a ‘última palavra do mundo e sobre o mundo foi

pronunciada’. Se o homem e o mundo não estão acabados, impossível elencar e fechar as possibilidades das formas de representação de sua palavra. Os gêneros discursivos são decorrência direta das formas representativas desse mundo cotidiano e prosaico.

Esse mundo “[...] é, assim potencializado dos gêneros discursivos que modulam as enunciações, determinando as formas genéricas dos enunciados pronunciados pelos falantes [...]” (MACHADO, 2005, p. 145). E, para Bakhtin, nossa fala é “[...] modulada pelos gêneros discursivos, pois todas as enunciações de nosso discurso-fala revelam escolhas particulares de formas construídas [...]” dentro das enunciações (MACHADO, 2005, p. 145). “Os gêneros discursivos, por mobilizarem diferentes esferas da enunciação, representam unidades abertas da cultura. São depositários de formas particulares de ver o mundo, de consubstanciar visões de mundo de épocas históricas” (MACHADO, 2005, p. 147).

Sob essa ótica, cada grupo social produz seus próprios gêneros de discurso, sendo que esse discurso não é uma esfera do livre arbítrio de cada indivíduo, mas determinado e determinante das práticas sociais. Nossas falas são construídas a partir das falas dos outros indivíduos do mesmo grupo social. Assim, “[...] os enunciados dos outros vão sendo transformados e convertidos em nossos próprios” (MORTIMER, 1998, p. 101). Ainda conforme Mortimer (1998, p. 101):

Nossos enunciados sempre respondem a enunciados anteriores e, de alguma forma, antecipam e preparam enunciados posteriores. Em cada esfera da vida social em que estamos envolvidos, usamos diferentes repertórios de enunciados, diferentes registros, gêneros e códigos.

Como observado Mortiner (1998), à luz de Bakhtin, defende a existência de uma rede de enunciados inter-relacionados entre si. Esses são ligados em todos os sentidos, independentes, inclusive, da relação geográfica ou temporal. Isso significa que o enunciado vai ao enunciado, estabelecendo uma longa cadeia dialógica. Eles, por seu turno, são concretizados a partir dos gêneros. Nessa perspectiva, o conhecimento científico é divulgado a partir do gênero secundário, no entanto, tal como postula Bakhtin (2003), esse gênero também se imiscui com o primário, por isso vale a pena examinar suas características e como elas se relacionam à linguagem cotidiana, “[...] de modo a explicitar as dificuldades vivenciadas por alunos e alunas nas salas de aulas” (MORTIMER, 1998, p. 101). E, mais especificamente, fornecer elementos para compreender as relações entre cultura e educação em ciência. Ademais, é importante examinar como esses gêneros de discurso são evidenciados ou ocultados em nossas falas e nas falas de nossos alunos.

cotidiana.

2.3. LINGUAGEM CIENTÍFICA, LINGUAGEM COTIDIANA E A EDUCAÇÃO