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AS CONQUISTAS, AS DEMANDAS E OS DESAFIOS EM NÍVEL NACIONAL

A história da educação formal, desenvolvida em áreas indígenas, no Brasil, pode ser dividida em quatro fases, muitas vezes, sobrepostas umas às outras. A primeira e mais longa é a do período colonial, que esteve a cargo dos missionários católicos, especialmente dos jesuítas. O objetivo dessas práticas era aniquilar culturas e incorporar mão-de-obra indígena à

sociedade nacional. A educação escolar, nesse período, foi uma das formas de impor o ensino obrigatório em português. A atuação dos jesuítas e salesianos impôs mudanças nas ordens sociais e espaciais desses povos (FERREIRA, 2001).

A segunda fase é marcada pela criação do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), em 1910; estende-se à política de ensino da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), à articulação com o Summer Institute of Linguistics (SIL) e a outras instituições religiosas (FERREIRA, 2001). O SIL tinha como objetivo a leitura da bíblia na língua materna. A educação continuou restrita aos objetivos de ensinar a ler e contar, não só com o intuito de catequizar/evangelizar, mas também de integrar através da incorporação do trabalho. A terceira fase, em fins da década de 1960 e nos anos 1970, é marcada pelo surgimento do movimento indigenista e a constituição do movimento indígena. Nessa fase, destaca-se, entre outros, a criação dos Núcleos de Educação Indígena (FERREIRA, 2001).

A partir da década de 1970, as diversas reuniões, assembleias etc culminam com a criação das organizações indígenas atuais, que passam a se articular, procurando soluções “[...] coletivas para problemas comuns – basicamente a defesa dos territórios, o respeito à diversidade linguística e cultural, o direito à assistência médica adequada e os processos educacionais específicos e diferenciados [...]” (FERREIRA, 2001, p. 95). Diante desse contexto, os professores indígenas se articulam em torno da elaboração de filosofias e diretrizes para a questão da educação escolar dos índios. A quarta fase, dessa forma, ocorre por ocasião da iniciativa, sobretudo, dos próprios povos indígenas, a partir da década de 1980, quando decidem definir e autogerir os processos de educação formal (FERREIRA, 2001; ALBUQUERQUE, 2007).

No contexto desses movimentos, ocorrem as mudanças constitucionais do país em 1988, a consequente aprovação, em 1996, da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN). Essas mudanças demarcaram o início de um novo relacionamento entre o Estado e os povos Indígenas, firmados nos princípios constitucionais, nos quais está inserido o direito social à educação. Portanto, é inegável que tais conquistas são frutos de um grande movimento social que aglutina lideranças indígenas de todo o país, com o apoio de intelectuais e religiosos, ao longo dos anos de 1980 (TASSINARI, 2008). Sob esse foco se destacam como conquistas:

a) A Constituição de 1988 assegura às comunidades indígenas a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem. O Estado protege as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras e de outros

grupos participantes do processo civilizatório nacional. Ainda em relação aos índios, reconhece também a organização social, costumes, línguas, crenças, tradições, os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Compete à União demarcar essas terras, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

b) Em 1991, o Governo Federal retirou da FUNAI a incumbência exclusiva de conduzir as ações de educação escolar junto às comunidades indígenas; atribuiu ao Ministério da Educação a competência em coordenar as ações referentes à educação indígena, em todos os níveis e modalidades de ensino, com apenas consulta à FUNAI.

c) Em 1996, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) reafirma o princípio de assegurar às comunidades indígenas a utilização da língua materna fundamental regular, garantindo que os currículos dos ensinos fundamental e médio, além da base nacional comum, tenham uma parte diversificada exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura e da economia. Reforça também o respeito às etnias, à valorização das culturas, estabelecendo que o ensino de História do Brasil leve em conta as contribuições de diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro, especialmente das matrizes indígena, africana e europeia (art. 26).

d) Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN, 1997) propõem a pluralidade cultural como um dos temas transversais. Registra que o tratamento da presença indígena em território nacional deve também reafirmar seus direitos como povos nativos. Faz isso pela via dos currículos de conteúdos, informando a riqueza de suas culturas e a influência dela sobre a sociedade como um todo.

e) Em 1998, o Ministério da Educação (MEC) formulou o Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas (RCNEI) e, em 1999, o Conselho Nacional de Educação (CNE), por meio da Resolução Câmara Educação Básica (CEB), nº 03, de 10 de Dezembro de 1999, fixa as Diretrizes Nacionais para o funcionamento das Escolas Indígenas. Compete à União legislar sobre as populações indígenas. Ao Estado, em colaboração com a União e os Municípios, compete definir apenas a política de oferta e execução da Educação Escolar Indígena (EEI). A Escola Indígena diferenciada, intercultural e bilíngue poderá fazer parte do ensino municipal desde que os Municípios tenham criado seus sistemas próprios e disponham de condições técnicas e financeiras (com consulta às comunidades

indígenas). No entanto, a autorização de funcionamento dos cursos de educação básica das escolas indígenas é de atribuição do Conselho Estadual de Educação; o ato de criação da Escola Indígena é de competência do Governo do Estado.

f) Lei 11.645, de 10 de Março de 2008, altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003, estabelecendo as Diretrizes e Bases da Educação Nacional para incluir, no currículo oficial da rede de ensino, a obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena.

g) Realização da I Conferência Nacional de Educação Escolar Indígena (I CONEEI), de 16 a 20 de novembro de 2009, em Brasília-DF. Esta foi realizada a partir das Conferências desenvolvidas com as Comunidades Educativas nas Escolas Indígenas e nas regionais, ocorridas nos 18 Territórios Etnoeducacionais durante o ano de 2009.

A partir de tal percurso histórico, percebemos que, em termos educacionais, nas últimas décadas, foram inúmeras as conquistas do movimento indígena. Evidentemente, a escola indígena é hoje uma espécie de necessidade “pós-contato”, como diz Silva (1999), “instrumento de luta” como preferem Taukane (1999) e Ferreira (2001); ou ainda, como reflete Secchi (2002), estabeleceu-se e se estabelece diante das possibilidades de ser, por um lado, como um dos instrumentos de imposição de um padrão hegemônico e, por outro lado, como um portal que acessa a novos saberes exigidos nas relações intersocietárias.

Para Adugoenau (2003), professor bororo, à época, acadêmico do Terceiro Grau Indígena, a escola, puramente à moda europeia, foi um dos instrumentos usados pela sociedade não-índia para, em nome da civilidade, impor atrocidades e crueldades aos seus antepassados indígenas. No entanto, com o passar do tempo, a articulação dos indígenas, na reivindicação dos direitos e no amparo da Constituição de 1988, contribuiu para os seus gritos ecoarem pelos quatro cantos do país, em busca de uma educação indígena de qualidade. Aquela Constituição, por sua vez, assegura às sociedades indígenas o direito a uma educação escolar específica e diferenciada, bilíngue e intercultural.

Nessa perspectiva, concordamos com Secchi (2002, p. 206), segundo o qual “as escolas indígenas são construções reais e imaginárias, significadas e (re)significadas de formas diversas por cada sociedade e por cada comunidade local”. Embora tenha sido incorporada pelas sociedades indígenas apenas recentemente, ela (a escola) não é um

“presente de grego”; ao contrário, é almejada como um espaço de liberdade, de conquista, de afirmação, de (re)construção dos projetos societários dos povos ameríndios.

A partir dessa nova realidade, o alargamento das políticas e ações voltadas para a educação escolar indígena, nas últimas décadas, levou a uma rápida multiplicação de experiências, numa tentativa de recontextualização. Essa multiplicação aliada a uma crescente necessidade de combinar questões culturais dos povos indígenas com os entraves burocráticos das administrações públicas acabam por devolver aos envolvidos na idealização e execução da Educação Escolar Indígena (ONGs, universidades e comunidades indígenas) uma série de problemas que demandam melhor compreensão (FERREIRA, 2001; ALBUQUERQUE, 2007; TASSINARI, 2001 e 2008; LOPES, E.T., 2009a e 2009b).

A diversidade de realidades e experiências mostra que a efetivação dessa modalidade de ensino não é tão simples quanto se pensava. Sob este foco, o movimento indígena denuncia que há uma distância significativa entre o que é reivindicado - em alguns casos, colocado nas políticas públicas - e o que se efetiva na prática (FERREIRA, 2001; SECCHI, 2002; CAMARGO e ALBUQUERQUE, 2006; ALBUQUERQUE, 2007).

Em síntese, podemos afirmar que, nas últimas décadas, foram muitas as conquistas dos povos indígenas no âmbito educacional. A Constituição de 1988 pode ser citada como marco divisor, na medida em que garante o direito social à educação e assegura às comunidades indígenas a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem. Nessas conquistas, destaca-se a educação escolar indígena, a inserção da temática indígena na escola não indígena, o acesso dos índios ao ensino superior e a realização da I CONEEI.

No entanto, a implantação da modalidade Educação Escolar Indígena apresenta dilemas e desafios que vão desde a viabilização por meio das políticas públicas até a gestão de cada escola indígena por sua comunidade. Nesse sentido, algumas questões têm sido debatidas pelos pesquisadores da área, quais sejam: como vem ocorrendo a oferta da Educação Escolar Indígena na Educação Básica e na Educação Superior? Quais conhecimentos têm sido veiculados nas escolas indígenas? Como estes vêm sendo trabalhados? Como os conhecimentos ocidentais se articulam com os conhecimentos indígenas, de modo a produzirem novas visões e explicações de mundo? Quais os processos de aprendizagens levados em conta nesta escola? No item 2 deste capítulo voltamos a essas preocupações.

Sem perder vista as especificidades, a história da implantação da escola na Terra Indígena Bakairi não é diferente do contexto nacional. A seguir, apresentamos como a

educação escolar foi implantada junto aos Bakairi.

3.2. Implantação da Educação Escolar Indígena entre os Bakairi: descaminhos e