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Apropriação da Língua

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4. POR QUE, ENTÃO, LER OS CLÁSSICOS?

4.3. Apropriação da Língua

Em qualquer levantamento sobre as finalidades do ensino escolar que se faça entre educadores de todos os segmentos, é muito provável que uma resposta como “tornar o aluno apto para expressar-se plenamente” seja, talvez até disparadamente, a mais registrada.

Levando-se em conta que, ao proferir ou assinalar tal resposta, o professor ou pedagogo estaria certamente tomando a língua como principal meio de expressão ─ não o único, obviamente, pois existem a dança, a pintura e tantos outros ─, compete à escola questionar-se séria e profundamente sobre o que tem feito para, efetivamente, aperfeiçoar o modo como o aluno se exprime através da língua.

A pesquisa, claro, é fictícia, um reles exercício de imaginação; mas a elucubração suscitada é de tal monta que toca em camadas abissais da educação. Crê-se que, no âmbito da apropriação da língua, os resultados do trabalho escolar não têm sido satisfatórios, apesar do imenso volume de energia despendido.

Esse insucesso tem relação direta com a indiferença da escola no que diz respeito à leitura dos clássicos universais. Neles, a sintaxe esmerada, a dicção esculpida, o léxico preciso, a prosódia maviosa, o xadrez verbal (com seus blefes e flertes), “a fusão inextricável da mensagem com a sua organização” (CANDIDO, 2004, p. 178), tudo isso converge para que “a

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literatura ─ [...] aquela que responde a essas exigências” seja “a Terra Prometida em que a linguagem se torna aquilo que na verdade deveria ser”. (CALVINO, 1990, p. 74). Portanto, quando apartado dessa Canaã linguística, estranhamente desdenhada pelo ensino formal, o aluno não tem a chance de provar o leite e o mel que escorrem do idioma. Entopem-no com picadinhos de textos e saladas de gêneros discursivos constantes dos mal-ajambrados cardápios de currículos e livros didáticos. Privam-no de captar a língua em “sua grandeza”, em sua “mais elevada forma de beleza” (SNYDERS, 1993, p. 179).

Em vez de aproximar o aluno dos livros de literatura, elementos-chave de uma relação profícua com a cultura escrita e com o desempenho escolar, o ensino brasileiro tem lançado mão de abordagens que, fantasiadas de “Linguagens, Códigos e suas Tecnologias” (BRASIL, 2000), entronizam estratagemas pavoneantes e absolutamente inócuos. Um carnaval de discursos falsamente inclusivos infesta documentos oficiais ─ em que “conteúdos tradicionais” como a literatura “são deslocados para um segundo plano” (BRASIL, 2000, p. 18) ─ e subtrai das salas de aula aquela que deveria ser sua comissão de frente: a leitura dos clássicos.

Rebaixado à categoria de adereço, o contato direto com as obras-primas literárias na escola é substituído por metaleituras digeríveis, trivialidades programáticas e hiberbolizações teóricas que fazem, irônica e perversamente, o zênite da cultura ser visto como algo tolo e risível: ler os clássicos em sala de aula seria, pelo ângulo distorcido de muitos, “perda de tempo”, “encher linguiça” (BRAGATTO FILHO, 1995, p. 95).

Ocorre que a pretensão de falar mais alto do que os clássicos, abafando-lhes o discurso “claro e articulado” (CALVINO, 2007, p. 15), é, para além de um sinal de soberba (TODOROV, 2014), um inconcebível descaso para com o préstimo que a leitura literária pode ter na forjadura dos jovens, inclusive na seara linguística:

Patrocinando-se, com competência e dinamismo, a leitura de textos literários na escola, ter-se-á, com certeza, uma condição muito mais eficiente para o pleno desenvolvimento das habilidades linguísticas dos alunos [...]. Cumpre explicitar-nos melhor: se a arte literária se constrói pelo signo escrito, ele, como símbolo de representação, idealização, criação e expressão de realidades e irrealidades, como linguagem estética, em suma ─ aquela que comunica, seduz, emociona, toca a ponto de fazer ver, sentir, viver ─ tal linguagem, trabalhada como recurso artístico, caracteriza-se por seu dinamismo, força, vitalidade, colorido, criatividade, flexibilidade [...] Eis a importância do conviver-se com tal linguagem (BRAGATTO FILHO, 1995, p. 90-91)

Nos grandes autores, a poesia “visita suas margens”, procedendo a uma “ultrapassagem dos limites da linguagem ordinária” (COMPAGNON, 2009, p. 37-38). Sendo assim, a leitura de suas obras excelsas traça um percurso muito bem pavimentado rumo a um uso mais

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desenvolto da língua, e não apenas por parte de uma elite privilegiada. Quando ao alcance de todas as classes ─ e isso não é uma ingênua quimera ─, “as formas de expressão literária podem sugerir que é possível ocupar um lugar na língua, inventar uma maneira própria de falar, em vez de ter sempre que recorrer aos outros” (PETIT, 2009, p. 70-71).

Haveria mesmo uma eficácia um tanto singela, no aprendizado da gramática normativa e na assimilação das técnicas de produção textual, caso as aulas que se prestassem à descrição dos mecanismos do texto fossem entremeadas com farta oferta de clássicos, os quais espelhariam tais engrenagens em seu funcionamento mais afinado, fecundo, inventivo e industrioso. Não parece frutífero preterir, no ensino escolar, essas preeminentes aulas práticas de língua, em nome de um estudo de “natureza basicamente transdisciplinar de linguagem entre as linguagens que estrutura e é estruturada no social e que regula o pensamento para certo sentido” (BRASIL, 2000, p. 17).

O palavrório filosofante das orientações superiores assume para si um messianismo sociológico que acaba resultando num vale-tudo perturbador: “Deixar falar/escrever de todas as formas, tendo como meta a organização dos textos” (BRASIL, 2000, p. 22). Pergunta-se, com Perrone-Moisés (2006, p. 22): “Deixar falar e escrever de todas as formas é compatível com a organização dos textos?”.

A retórica simplista dos Parâmetros Curriculares Nacionais sintomatiza o estado em que se encontra o ensino de língua portuguesa no Brasil. Perdidos entre o maravilhamento com a internet, a inflação conceitual e terminológica, o reducionismo oposto a essa inflação e as turvas diretrizes que vêm de cima, muitos professores procuram um norte em oficinas, seminários, workshops, congressos, simpósios, reciclagens e tantos outros eventos, no entanto a solução para a maioria das inquietações derivadas desse emaranhado de vertentes sobrevém ao mero folhear de páginas do clássico literário.

[...] não tenho dúvida de que concentrar o ensino de Letras nos textos iria ao encontro dos anseios secretos dos próprios professores, que escolheram sua profissão por amor à literatura, porque os sentidos e a beleza das obras os fascinam; e não há nenhuma razão para que reprimam essa pulsão. (TODOROV, 2014, p. 31)

Se o processo ensino-aprendizagem de língua sempre partisse do pressuposto de que “os textos literários são aqueles em que a linguagem atinge seu mais alto grau de precisão e sua maior potência de significação” (PERRONE-MOISÉS, 2006, p. 27), poder-se-ia deduzir mais facilmente que “a função da literatura é manter a linguagem em boa forma, e disso depende a própria saúde do pensamento” (POUND, 1929, apud PERRONE-MOISÉS, 1998, p. 64). A ausência dos clássicos na escola inflige, portanto, certo sedentarismo ao manejo da língua e, de

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forma indireta, também ao raciocínio. Finda a trajetória estudantil regular, não há personal

trainer de cursinhos ou afins que recupere por completo o tônus linguístico desperdiçado. A

fase ideal para iniciar-se em semelhante ginástica da mente, poderosa série de intensos exercícios idiomáticos, é mesmo a escolar.

Não se está aqui pretendendo que a leitura literária tenha, como propósito-mor, a depuração linguística do leitor; esse não deve ser, em hipótese alguma, o intuito com que se lê. Seria artificial e descabido. Uma inversão de valores. Porém, é manifesto que a boa literatura carrega consigo um poder de antídoto involuntário para o mau uso da língua. O ganho do leitor no trato linguístico dá-se de forma espontânea, não-programada.

Em ensaios de vasta repercussão, Calvino procurou delinear os traços comuns aos clássicos já conhecidos e aos vindouros. Muitos critérios de que o autor se serve estão relacionados com essa espécie de elixir literário que “corrige os defeitos da linguagem” (COMPAGNON, 2009, p. 37), entre eles a imprecisão:

Às vezes me parece que uma epidemia pestilenta tenha atingido a humanidade inteira em sua faculdade mais característica, ou seja, no uso da palavra, consistindo essa peste da linguagem numa perda de força cognoscitiva e de imediaticidade, como um automatismo que tendesse a nivelar a expressão em fórmulas mais genéricas, anônimas, abstratas, a diluir os significados, a embotar os pontos expressivos, a extinguir toda centelha que crepite no encontro das palavras com novas circunstâncias.

Não me interessa aqui indagar se as origens dessa epidemia devam ser pesquisadas na política, na ideologia, na uniformidade burocrática, na homogeneização dos mass-

media ou na difusão acadêmica de uma cultura média. O que me interessa são as

possibilidades de salvação. A literatura (e talvez somente a literatura) pode criar os anticorpos que coíbam a expansão desse flagelo linguístico. (CALVINO, 1990, p. 74)

É forçoso relatar que, para uma parcela substancial dos professores de português, firmar a leitura dos clássicos como pilar precípuo do ensino de língua seria um despautério. Abundam, no atual cenário, correntes nas quais predomina uma comichão por textos jornalísticos e publicitários, a pretexto de se lapidar o juízo crítico do aluno, sendo este instado a uma produção copiosa de dissertações argumentativas.

Encontra-se em plena vigência um pluralismo falsamente democratizante, que tenta cingir a realidade do aluno (em vão, porque dela não toma distância) e talhá-lo para o “mercado de trabalho”. Tal abordagem incorre em graves erros: derrapa num interpretacionismo insosso em cima de textos que não exibem a língua em seu máximo fulgor; privilegia um instrumentalismo que, longe de levar o aluno a uma apropriação genuína da língua, ceifa-lhe a poesia, o capricho verbal.

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Estivesse centrado na linguagem que “consegue suas aberturas para o infinito sem o menor congestionamento” ─ como diz Calvino (1990, p. 65) a respeito de Borges ─, peculiar aos pontos luminosos da literatura, o ensino de língua, no Brasil, não contemplaria, hoje, esse tétrico abismo entre esforços homéricos e resultados pífios. A leitura das estupendas obras literárias credencia os alunos a se valerem do manancial linguístico com maior desenvoltura, inclusive quando deles se cobra a elaboração de textos mais utilitários ou a articulação oral em diversificados contextos. Pode parecer uma ironia ferina, uma anedota traiçoeira, mas é a verdade cabal; Colomer (2007, p. 36) a testifica nesta límpida exposição:

[...] chegou-se a uma notável dissolução da literatura, colonizada ou perdida entre tantos requerimentos linguísticos, ou à sua simples supressão na prática, por falta desse tempo, que nunca se tem... para aquilo que não se considera verdadeiramente importante.

Ensinar a ler escrever textos “funcionais” continuou parecendo um conteúdo mais adequado para o êxito acadêmico e para a vida cotidiana nas modernas sociedades alfabetizadas. O desejo de “cientificidade” dos conteúdos propiciado pelas teorias da década de 1960 mudou-se agora para os exercícios sobre estratégias e habilidades, de modo que o ensino da leitura e da escrita se entende como uma questão técnica que deve dar acesso ao uso dos discursos sociais através de práticas diferenciadas para cada um dos tipos de texto [...] visto o recente resultado deste enfoque no ensino, é possível afirmar que a restrição escolar da literatura não parece ter sido benéfica para a formação linguística dos alunos.

Talvez a questão resida no fato de que a familiarização com os distintos usos sociais do escrito, por um lado, e sua aprendizagem durante a infância, por outro, não se relacionam de forma mecânica. Já aludimos antes à consideração da literatura como “gênero segundo”, capaz de absorver qualquer discurso linguístico de maneira que, como se disse repetidamente, a literatura nos prepara melhor para ler melhor todos

os discursos sociais. É uma ideia que sustenta que os textos literários constituem um

bom andaime educativo, não apenas para ler e escrever literatura, mas também para aprender os mecanismos do funcionamento linguístico geral [...]

Concluindo, parece que um dos pontos de debate na atualidade deveria ser buscar novas formas de estabelecer a função de aprendizagem linguística que a literatura é capaz de desenvolver na escola.

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