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Criação de uma Atmosfera de Biblioteca

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5. PESQUISA SOBRE HÁBITOS DE LEITURA DO ALUNO DO COLÉGIO PEDRO

6.2. Criação de uma Atmosfera de Biblioteca

Um curso de gastronomia sem alimentos e sem utensílios de cozinha. Uma oficina automotiva sem ferramentas e sem peças. Um salão de beleza sem pente, sem secador de cabelo e sem esmalte. Um treinamento de basquete sem bola. É assim uma sala de aula sem livros.

E não bastam os didáticos. Colomer (2007, p. 117-118) toca nessa ferida:

[...] é imprescindível dar aos meninos e meninas a possibilidade de viver, por algum tempo, em um ambiente povoado de livros, no qual a relação entre suas atividades e o uso da linguagem escrita seja constante e variado. Trata-se de um princípio tão aceito, em teoria, que parece óbvio, mas continua não o sendo na prática. [...] Lamentavelmente, nessas aulas para adolescentes o ambiente continua desoladoramente despovoado. Os livros ─ enciclopédias, obras de ficção, etc ─ encontram-se confinados nas bibliotecas centrais, que apenas são usadas para pesquisas. Os únicos livros presentes são os didáticos, que entram e saem rapidamente das mochilas dos alunos, em cada mudança de aula, e se dedica muito pouco tempo escolar à leitura [...].

O livro, nomeadamente o clássico literário, deveria ser um elemento pivotal no ensino. Achá-lo por toda parte engrandeceria a escola, entusiasmaria os alunos, sempre tão obcecados pelos smartphones. A sala de aula poderia ser o receptáculo principal, onde o aluno folhearia o livro, trocá-lo-ia por outros, até colher, nalgum galho da frondosa literatura, palavras frutificantes. A mediação idealizada neste trabalho prevê cenas como essa, de leituras livres, num recinto em que tudo gravite em torno do livro.

A instauração de uma atmosfera de biblioteca na sala de aula da turma de nono ano requererá mais do que a presença dos oitenta clássicos selecionados: reivindica-se também o velho silêncio. O silêncio que, a partir do século XIII, sobrepujou o ruminatio (leitura murmurada para si próprio, com o intuito de se compreender o texto) mas que, hoje, “é uma conquista recolocada em questão” (CHARTIER, 1998, p. 121). Não porque alguém ainda “rumine”. O rumor de agora é uma mistura de garrulice com notificações de telefone celular, ambas associadas com “o estado de inquietude geral, de excitação, de efervescência” identificado por Türcke (2010, p. 9), para quem a “revolução da alta tecnologia” (cuja “força propulsora é o choque audiovisual”) “deixa reconhecer sinais claros de uma volta em direção ao arcaico” (p. 172).

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Não se pode desistir do silêncio típico das bibliotecas de anos atrás, sob pena de se implodir qualquer construção cognitiva que reclame concentração, esse bem cada vez mais raro: “Quase todos os que desconfiam de suas próprias forças ignoram o maravilhoso poder da atenção prolongada. Esta espécie de polarização cerebral com relação a uma certa ordem de percepções afina o juízo, enriquece nossa sensibilidade analítica, esporeia a imaginação” (RAMÓN Y CAJAL, 1979, p. 29).

A tentativa de se desviar da clivagem de atenção e de uma total dessensibilização ─ promovidas por pesadas e saturantes injeções multissensoriais ─ é constantemente rebatida pelo falacioso veredicto de que não há saída, são assim os novos tempos, há de se aplaudir o “bombardeio audiovisual” que “faz os sentidos ficarem dormentes” (TÜRCKE, 2010, p. 68). Uma das possíveis respostas a esse sofisma é o silêncio ─ “o maior dos luxos” segundo Flusser (1998, p. 62) ─, que será exercitado nas leituras realizadas em sala de aula (transformada em biblioteca). Espera-se, com o consórcio entre silêncio, tempo e imersão nos clássicos, pisar no freio aconselhado por Türcke (2010):

Para usar as belas expressões de Bourdieu e Benjamin, propõe-se um “contrafogo” e um “freio de emergência”, ou, nas palavras do próprio Türcke, uma “legítima defesa cotidiana” à torrente de estímulos, que transforme o excesso do choque audiovisual em choque reflexivo. [...] conseguindo, pela arte [...] (e pelo que mais possa ajudar) [...] que ilhas de recolhimento ou de concentração favorecidas por sensações mais delicadas e complexas possam ser valorizadas. (PUCHEU, 2010, p. 3)

Obviamente, a rotina escolar impõe grades de horário, de maneira que tais refúgios de atenção, sossego e sedimentação em meio aos livros ─ quase um devotamento àquilo que já teve a extinção sentenciada; uma nova forma de ascese ─ não durarão mais do que os noventa minutos de dois tempos de aula consecutivos. Aos 45 do segundo tempo, soará o apito que libera novamente porções descomunais de estímulos, anestesiando os sentidos, inibindo qualquer esforço para ficar compenetrado.

Posto que seja curto, o clima de biblioteca representará um doce contrafluxo em meio ao estressante congestionamento de signos fugazes para o qual Calvino (1990, p. 75) já acendia o sinal vermelho nos anos 80:

Vivemos sob uma chuva ininterrupta de imagens; os media todo-poderosos não fazem outra coisa senão transformar o mundo em imagens, multiplicando-o numa fantasmagoria de jogos de espelhos ─ imagens que em grande parte são destituídas da necessidade interna que deveria caracterizar toda imagem, como forma e como significado, como força de impor-se à atenção, como riqueza de significados possíveis. Grande parte dessa nuvem de imagens se dissolve imediatamente como os sonhos que não deixam traços na memória; o que não se dissolve é uma sensação de estranheza e mal-estar.

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Preservar o ambiente da leitura, destituindo-o da ansiosa recepção a descargas sonoras e imagéticas, livrando-o da histeria do espetáculo, significaria um brinde à atividade intelectual dos estudantes. Huey (1908 apud MANGUEL, 1997, p. 54) já dizia que “Chegar a uma análise completa do que fazemos ao ler seria o auge das realizações do psicólogo, pois seria descrever muitos dos funcionamentos mais complexos da mente humana”.

Esse maquinário de última geração (mas também da penúltima, da antepenúltima, e assim sucessivamente até os sumérios do terceiro milênio antes de Cristo) será, nesta proposta didática, posto à prova também fora da escola, já que os alunos poderão levar alguns clássicos para casa (essa parte da metodologia será descrita de forma mais meticulosa no próximo subtópico). Todavia, a leitura de cada aluno em sala de aula, com os colegas de classe, contará com ingredientes diferenciados; além da fartura de livros e do suave tempero do silêncio, haverá um molho híbrido, de receita antiga, que se encontra ameaçado pelo molho sintético do fast

food entregue em domicílio. Chartier (1998, p. 143-144) põe em pratos limpos:

A leitura silenciosa, mas feita em espaço público (a biblioteca, o metrô, o trem, o avião), é uma leitura ambígua e mista. Ela é realizada em um espaço coletivo, mas ao mesmo tempo ela é privada, como se o leitor traçasse, em torno de sua relação com o livro, um círculo invisível que o isola. O círculo é contudo penetrável e pode haver aí intercâmbio sobre aquilo que é lido, porque há proximidade e porque há convívio. Alguma coisa pode nascer de uma relação de um vínculo entre indivíduos a partir da leitura, mesmo silenciosa, pelo fato de ela ser praticada em um espaço público. Com o texto eletrônico poderia se produzir uma reversão definitiva. Na biblioteca, ler-se-á isoladamente. E poder-se-á ler sem sair de casa, porque os textos virão ao leitor enquanto, até então, o leitor devia ir ao livro quando não o possuísse. A relação privada com o texto corre o risco de se separar de toda forma de espaço comunitário. Está levantada a suspeita que nasce com as sociedades contemporâneas: será que elas vão dissolver o espaço público [...] onde podiam articular-se as formas da intimidade e do privado com as formas do intercâmbio e da comunicação?

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