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Autoconhecimento e Construção da Identidade

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4. POR QUE, ENTÃO, LER OS CLÁSSICOS?

4.1. Autoconhecimento e Construção da Identidade

Notadamente no caso do adolescente, afigura-se um tanto intrincada a missão de erigir uma identidade própria na contemporaneidade, porquanto são muitos e insistentes os convites a que se siga um modelo pasteurizado e rasteiro de consumidor diletante, espécie pacata e obtusa de ovelha pastoreada pela voz inaudível do mercado, tiete obediente e atenta aos conselhos de celebridades.

Sem forças para despir-se do uniforme de pastiche ambulante, o jovem acaba por adorná-lo, imitando irrefletidamente grotescos arquétipos que despontam, aos borbotões, na TV, na publicidade e na internet. Não lhe é dada a chance de sondar outras formas de viver, de pensar, de agir. Ninguém lhe disse que é factível, sim, sair da labiríntica e alienante fila dos balcões de estilos de vida, em que se vendem promessas de felicidade e consolos regressivos. Bueno (2002, p. 29-30) adverte que

[...] nem seria preciso enfatizar o peso do imaginário, como uma força que molda as percepções, as opiniões, o comportamento e o sentido do mundo. Imaginário da mercadoria, lembremos, que tem na propaganda sua verdadeira cultura, e que tende ao homogêneo e linear, de jeito nenhum ao plural e ao aberto, convidando ao feliz convívio de diferentes linguagens, culturas, etnias e visões de mundo. O que está à venda, no mundo todo, são cada vez mais imagens, e não diretamente coisas, feitas e produzidas por quem trabalha. Estão à venda as marcas das grandes corporações, inseparáveis de estilos de vida que circulam pela vida social e são incorporados ao mundo da mercadoria.

É nesse sentido que a literatura pode funcionar como um desvio na rota pré-programada. A leitura de obras edificantes faculta ao leitor a opção de recusa, permite-lhe esboçar atalhos idiossincráticos pelos meandros da vida:

[...] ler pode fazer com que a pessoa se torne um pouco mais rebelde e dar-lhe a ideia de que é possível sair do caminho que tinham traçado para ela, escolher sua própria estrada, sua própria maneira de dizer, ter direito a tomar decisões e participar de um futuro compartilhado, em vez de se submeter sempre aos outros. Quando nos familiarizamos com os jogos de linguagem ficamos menos desprotegidos diante do

44 primeiro charlatão que passa e se propõe a curar nossas feridas com uma retórica simplista. (PETIT, 2009, p. 100-101)

Essa afirmação de singularidade e de autonomia passa pelo autoconhecimento, o qual, em meio à opacidade dos simulacros pós-modernos ─“imagens hegemônicas na sociedade da hipervisibilidade” (FABBRINI, 2016, p. 64) ─, torna-se tarefa custosa, dado que a margem para a fuga de uma completa e irrevogável autoanulação é cada vez mais apertada. Baudrillard (1991, p. 197) já dizia que “Estamos fascinados por todas as formas de desaparecimento, do nosso desaparecimento. Melancólicos e fascinados, tal é a nossa situação geral numa era de transparência involuntária”.

Doutrinados por um hedonismo vazio e ansioso, que se alia a um suposto ideal de eficácia ─ “Gozo, narcisismo, competitividade, sucesso, performance, realização, desempenho” (LIPOVETSKY; CHARLES, 2004, p. 55) ─, os jovens raramente acham o tempo para descobrir a si próprios. Falta-lhes, também, coragem e segurança para tanto, pois tais tesouros não vêm como brindes nos combos que lhe empurram goela abaixo desde a tenra infância. A literatura pode, para muitos desses jovens, soar como a voz que reverbera recôndita e timidamente em seu âmago, e que não tem vez no tumulto e no alarido da “inflação de signos” (BAUDRILLARD, 1991, p. 22), na “torrente de excitação midiática do espetacular” (TÜRCKE, 2010, p. 65):

Vocês poderão observar que, para os jovens, como eu disse, muita coisa está em jogo na leitura. E que há um domínio no qual, para eles, o livro supera o audiovisual: o domínio que se abre para o sonho e que permite construir-se a si mesmo [...] Os livros se oferecem a eles [...] quando tudo parece estar fechado: suas feridas e esperanças secretas, outros souberam dizê-las, com palavras que os libertam, que revelam algo que eles, ou elas, ainda não sabiam que eram. (PETIT, 2009, p. 56)

SNYDERS (1993, p. 143) respalda essa visão ao advogar uma cultura que

leve o aluno a se compreender melhor, a se sondar melhor. É como se o autor apreendesse e sentisse melhor que ele o que se passa nele; a cultura encontra palavras adequadas para exprimir o que ele gostaria de dizer. Os homens necessitam de um porta-voz, um ‘Édipo que lhes explique seus próprios enigmas’, pois nossos sentimentos e nossas experiências são com tanta frequência indecisos, em contradição uns com os outros ─ e é justamente aí que temos necessidade de orientação.

Petit (2009, p. 38-39) ampara-se na mesma lógica:

[...] ler permite ao leitor, às vezes, decifrar sua própria experiência. É o texto que “lê” o leitor, de certo modo é ele que o revela; é o texto que sabe muito sobre o leitor, de regiões dele que ele mesmo não saberia nomear. As palavras do texto constituem o leitor, lhe dão um lugar [...] Os escritores nos ajudam a nomear os estados pelos quais

45 passamos, a distingui-los, a acalmá-los, a conhecê-los melhor, a compartilhá-los. Graças a suas histórias, escrevemos a nossa, por entre as linhas.

Como “os mais desprovidos de referências culturais são os mais propensos a se deixar seduzir por aqueles que oferecem próteses para a identidade” (PETIT, 2009, p. 72), a escola pública não pode se esquivar da missão de apresentar as grandes obras da literatura. Nelas, o aluno talvez se depare com palavras que traduzem suas aflições e consubstanciam suas expectativas; talvez detecte facetas de seu íntimo que, por lhe faltarem os termos certos, permaneciam-lhe invisíveis, “como a imagem fotográfica que ainda não foi mergulhada no banho no qual irá ser revelada” (BERGSON, 2006, p. 155); talvez ele “se encontre graças ao que lhe é proposto, o reconheça como seu, faça-o seu ─ o ame” (SNYDERS, 1993, p. 143).

Para arrematar este subtópico, vem bem a calhar o parecer de Proust (2003, p. 35): “Na medida em que a leitura é para nós a iniciadora cujas chaves mágicas abrem no fundo de nós mesmos a porta das moradas onde não saberíamos penetrar, seu papel na nossa vida é salutar.”

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