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A abordagem de análise do espaço social proposta por Bourdieu foi influenciada, conforme aponta Sergio Miceli (1998, 2005), pela atuação que aquele obteve atuando como professor e pesquisador, condição forjada ao longo de sua carreira, em que foram analisados empiricamente diversos objetos. O contato que Bourdieu estabeleceu com pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento, possibilitado também por sua atuação no Collège de France, no qual foi o responsável pela área de Sociologia, permitiu-lhe dialogar com outras áreas, tais como a Linguística, a Antropologia, a Filosofia, a Etnologia e a Economia, entre outras.

Entre as diferentes temáticas que Bourdieu ousou desvelar utilizando o método Teoria da Prática38, uma das áreas do conhecimento mais longamente

tratadas em sua obra foi a educação39. Desde 1970, quando publicou A Reprodução: elementos para uma Teoria do Sistema de Ensino40 – obra escrita em parceria com Jean-Cloude Passeron, que obteve repercussão em muitos países – e em diversos outros trabalhos também, como Juízo Professoral, por exemplo, o autor empreendeu, no decorrer da formulação teórica, um esforço sistemático em compreender a estrutura e o funcionamento dos sistemas de ensino.

38 A Teoria da Prática se dá na relação dialética entre ator e estrutura, na análise do mundo

social, isto é o que Bourdieu denominou de campo. (MARTINS, 1997, p. 33). Ver nesse autor o esquema de interpretação de Bourdieu.

39 A ideia de unir esses dois universos – educação e cultura – é a origem da criação do

Centro de Sociologia da Educação e da Cultura (1968), onde ele trabalhara até 1981, quando entra no Colégio de France. (VASCONCELOS, 2002, p. 80).

40 “Este livro é basicamente, a teoria da reprodução, enquanto interpretação critica da

escola, no capitalismo.” O livro I de “A Reprodução” é apresentado no prefácio como o resultado de um trabalho que compreende um duplo aspecto: Por um lado, responde a um projeto epistemológico e lógico; trata-se com efeito, para os autores, da sistematização de um conjunto de enunciados que dizem respeito à escola de forma que esta venha a constituir em objeto do conhecimento científico possível em função de normas relativas a uma teoria do conhecimento sociológico como conhecimento científico. De outro lado, os enunciados sobre os quais incide este trabalho são o produto de uma pesquisa empírica cujos resultados deveriam fundamentar. (PETIT, 1982, p. 43) Muitos desconhecem que foram dois livros publicados com este título, sendo volume I e II.

Constituía-se, aí, um sociólogo pensando a educação41. Intelectual influente

na França e fora dela, seu método vem sendo utilizado para compreender o espaço social, especialmente os processos simbólicos. Grande parte do que se passa em torno da educação está ligado a processos simbólicos.

No Brasil, diversos autores têm utilizado a abordagem adotada por Bourdieu para compreender os fenômenos sociais em diversas áreas, e outros tantos empregam sua teoria para compreender as questões relativas à educação e ao funcionamento tanto do sistema educacional como um todo, quanto da escola em particular. Entre os autores que se apoiam em Bourdieu para tratar da educação, podem ser citados: Tomaz Tadeu da Silva (UFRGS /1996), Afrânio Mendes Catani/ USP (1998, 2001, 2002, 2003, 2007), Maria Alice Nogueira/UFMG (1989, 1998, 2007), Denice Bárbara Catani/USP (1996), Maria da Graça Jacinto Setton/USP (1996, 2001, 2002a, 2002b, 2004, 2005, 2007, 2008, 2009, 2010a 2010b), Sergio Miceli/USP (1998 e 2005), Angela Xavier de Brito/FRANÇA (2002), Carlos Benedito Martins/UNB (1987, 2002a, 2002b,), Ana Paula Hey/USP (2004), Maria Alice Rangel Tura/UFMG (2004), Luiz Antonio Cunha/UNICAMP (1979), José Carlos Durand/USP (1972,1976,1982), Renato Ortiz/UNICAMP (1983a, 1983b, 2002, 2003), entre outros.

Filósofo de graduação e sociólogo de formação na pós-graduação, como orientando de Raymond Aron, Bourdieu fez aproximações com o campo educacional usando observação direta, entrevistas, análises estatísticas, entre outras, que lhe permitiram formular importantes contribuições tanto nas pesquisas empíricas, quanto em sua construção teórica. Entretanto, nossa advertência segue a de Tadeu da Silva (1996), que afirma:

Ao se relacionar Bourdieu com educação, em geral se espera algumas indicações de como se podem aplicar os conceitos desenvolvidos por Bourdieu para analisar aspectos da área educacional. [...] aplicar Bourdieu, ser fiel ao programa de Bourdieu, não consiste em extrair de sua obra certos conceitos centrais para

41 Através do uso da noção de violência simbólica, ele tenta desvendar o mecanismo que faz

com que os indivíduos vejam como “naturais” as representações ou as ideias sociais dominantes. A violência simbólica é desenvolvida pelas instituições e pelos agentes que as animam e sobre a qual se apoia o exercício da autoridade. Bourdieu considera que a transmissão pela escola da cultura escolar (conteúdos, programas, métodos) de trabalho e de avaliação, relações pedagógicas, práticas lingüísticas), própria à classe dominante, revela uma violência simbólica exercida sobre os alunos de classes populares. (VASCONCELOS, 2002, p. 80).

aplicá-los, mecanicamente a algum processo, instituição ou fenômeno educacional. (SILVA, 1996, p. 230).

A tentativa, aqui é, portanto, de fazer um esforço para interrogar as perguntas que ele interrogaria e seguir sua lógica de raciocínio – o pensar relacional – frente ao fenômeno analisado nesta tese. Para Silva (1996, p. 231), a principal contribuição da obra de Bourdieu para compreender os fenômenos educacionais na sua relação com o mundo social foi “permitir uma análise das condições que produzem os esquemas mentais característicos da ocupação pedagógica.”.

Para fazer emergir a compreensão lógica das forças que aí atuam, é preciso: problematizar as categorias e os mecanismos sociais; pensar relacionalmente, ou seja, “situá-los uns em relação aos outros na estrutura à qual pertencem”; perceber padrões; historicizar e objetivar o mundo social; “mostrar desconfiança em relação às formas oficiais e correntes de nomear e classificar o mundo” (SILVA, 1996, p. 233); não dicotomizar; destacar como unidade de análise instituições e práticas; ver todas as práticas como interessadas a formas particulares de poder.

Segundo Sergio Miceli (2005), uma das primeiras ‘aparições’ de Bourdieu no Brasil data de 1970, numa coleção organizada por ele próprio. Embora não contivesse apenas textos de educação, este tema já se fazia presente.

Os primeiros textos de Bourdieu traduzidos no Brasil são dois artigos que aparecem em coletâneas publicadas em 1968 (Problemas do estruturalismo, organizada por Jean Pouillon, e Sociologia da juventude, organizada por Sulamita de Britto, ambas publicadas pela editora Zahar). No entanto, ele começaria a ser mais extensivamente lido em meados da década de 1970, quando outros artigos de sua autoria surgiram em A economia das trocas simbólicas, antologia organizada em 1974 por Sergio Miceli, e em 1975, quando da primeira edição brasileira de A Reprodução. (CATANI; CATANI; PEREIRA et al, 2001, p. 65, grifo do autor).

Portanto, a análise da teoria de Bourdieu foi recebida por autores brasileiros, especialmente os sociólogos, desde a década de 1970, e a aplicação dos conceitos bourdieunianos, como era de se esperar, foi ganhando espaço. Também outras áreas como educação e linguística/linguagem se apropriaram da teoria para melhor compreender a educação brasileira42. No entanto, os autores apontam que a obra “A

42“O número de livros de Bourdieu traduzidos e publicados no Brasil é de vinte e três, sendo

Reprodução” passou a ser objeto de controvérsias políticas no campo educacional brasileiro, identificando-se cobranças indevidas de pressupostos políticos, na obra de Pierre Bourdieu, ocasionadas, a partir de uma análise descontextualizada da obra e também devido ao contexto de ditadura militar que o Brasil vivenciava.

Na tese de Medeiros (2007), que estudou a teoria sociológica de Pierre Bourdieu na produção discente dos programas de pós-graduação em Educação no Brasil (1965-2004), a autora traz, na epígrafe, uma fala do próprio Bourdieu comentando a circulação de suas ideias no Brasil, que convém reproduzir aqui: “Sim, gosto também da ideia de ser apropriado, devorado por uma espécie de cúmplice um pouco antropofágico e de existir também no Brasil”. (MEDEIROS, 2007, p. 5)

Para Medeiros (2007), a apropriação43 de Pierre Bourdieu está no movimento de renovação do interesse nesse pensador, uma vez que o número de teses e dissertações defendidas que tomam o trabalho do autor como base, nos últimos anos, tem aumentado. Para essa autora, as interpretações nacionais de uma obra estrangeira, caso da obra de Bourdieu, sempre estarão relacionadas a um tipo de seleção ligada ao mercado que irá absorvê-la e a um determinado tipo de construção e divulgação do conhecimento da área a que se destina a produção teórica.

Para o sociólogo, “os conceitos não têm outra definição a não ser a sistemática e são concebidos para serem empregados empiricamente de forma sistemática. Noções tais como a de habitus, campo e capital podem ser definidas, mas somente no interior do sistema teórico que as constituem, nunca isoladamente”. Assim, a verdade dos conceitos é a verdade das relações que só passam a ter sentido no interior dos sistemas de relações, por isso “pensar em termos de campo é pensar relacionalmente” (MEDEIROS, 2007, p. 53).

autores brasileiros, que compilaram artigos e comunicações. Desses livros, total de vinte e nove obras, onze se encontram esgotados, sendo o acesso de alguns, possível somente em bibliotecas e no estoque de algumas livrarias. Compara-se este número aos trinta e nove livros publicados pelo autor na França, sendo o primeiro editado em 1958 e o último em 2004. Mesmo que ainda possam ser encontrados cerca de quarenta textos do sociólogo publicados no Brasil em livros ou periódicos, cinco livros sobre o autor e cerca de quarenta e cinco artigos sobre Pierre Bourdieu, percebe-se um desafio considerável na tarefa de apropriação do autor”. (MEDEIROS, 2007, p. 93-94).

43 Catani et al (2001) e Medeiros (2007) utilizam o termo apropriação para dar conta da

multiplicidade de formas de recepção e os modos de invenção na leitura que se faz de um autor.

No tocante à utilização dos conceitos de Bourdieu no Brasil, especialmente aplicados à educação, Catani, Catani e Pereira (2001), ao analisarem periódicos dessa área, identificaram três grupos para classificar os tipos de apropriação que se fez da obra de Bourdieu. São eles: incidental, conceitual tópico e sistemático. A maior incidência encontrada reside na apropriação incidental, e a menor, na apropriação sistêmica. Nas décadas de 1970 e 1980, destacou-se a apropriação superficial de suas primeiras obras sobre a Educação.

[...] ao invés de compreender o lugar da Educação em uma economia geral das práticas e das trocas simbólicas, apreendendo a contribuição do sistema de ensino nos processos mais gerais da reprodução social, inclinou-se a enxergar este diagnóstico como uma ‘Teoria da Educação’. (MEDEIROS, 2007, p.131).

Ainda na década de 1980, apareceram, conforme Catani, Catani e Pereira (2001), novas interpretações, que foram sendo feitas a partir do aparecimento de novos textos de Bourdieu. Para Medeiros (2007), a década de 1990 marcou um período de aproximação entre as áreas da Educação e da Sociologia que, juntamente com a introdução de pesquisas qualitativas e o destaque à abordagem sociocultural, abriu caminho para a Sociologia da Cultura, desenvolvida por Pierre Bourdieu. Na conclusão da pesquisa, a autora aponta para o interesse nos trabalhos analisados na pós-graduação no período de 1965 a 2004, embora contemple os anos de 2005 e 2006 de forma breve. Ela propõe que existe uma tendência, nesses trabalhos, em buscar desvelar o que acontece nos encontros cotidianos no espaço escolar, bem como a rede de significações contidas nos processos educativos.

Poucos foram os trabalhos que se apoiaram em Bourdieu para compreender a educação no campo da política. Segundo levantamento de Medeiros (2007), aparecem quatro trabalhos com o foco na análise das políticas publicas e outros quatros nas reformas educacionais, em um universo de duzentos e treze teses e dissertações investigadas pela autora.

3.3 DEBATES POLÍTICOS NAS REFORMAS EDUCACIONAIS À LUZ DA TEORIA