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CAPÍTULO 4 – O MORADOR E A MORADIA

4.3. Ações e relações no morar

4.3.3. Apropriar: interação usuário x espaço

A apropriação é resultado de todos os comportamentos humanos agindo simultaneamente através do indivíduo ou de um grupo. Malard, (199?) considera que a apropriação é o processo de experimentar o “fenômeno do morar”.

Entende-se apropriação como o processo de experienciamento dos lugares e a dimensão de viver no espaço. A apropriação do espaço envolve a interação usuário versus espaço, onde o usuário atua moldando o espaço como também o contrário. (DEL RIO, DUARTE, RHEINGANTZ, 2002).

Deste processo de interação do morador com sua morada, Bachelard (1993) faz várias analogias e a designa como “casa ninho”, onde ela é resultado da apropriação do usuário, pois é como acontece com o ninho quando é modelado pelo próprio corpo do pássaro. A casa comparada ao ninho reflete em sua forma o próprio dono, como também o esforço deste para obtê-la e transformá-la conforme sua necessidade.

O termo “apropriação” é muito comum na arquitetura, e um espaço é dito como apropriado quando ele é amplamente utilizado para alguma atividade por parte do usuário, independentemente de sua finalidade inicial. Para Malard (199?), de acordo com o senso comum, o termo apropriação é sinônimo de uso, devido ou indevido de um espaço. Os ambientes são utilizados pelas pessoas de diversas formas em prol ao atendimento de seus interesses, necessidades e expectativas, que Leite (2006) define como a “afirmação do ser sobre o espaço”.

Segundo Hertzberger (1999, p. 176) “Quando se começa a procurar, encontramos facilmente, até mesmo nos lugares mais inesperados, exemplos de uso que os projetistas certamente jamais imaginaram.” Como os desejos humanos alteram-se de acordo com o surgimento de suas novas necessidades, o autor argumenta que “[...] o que precisamos é de uma expansão das possibilidades de todas as coisas que projetamos, para torná-las mais úteis, mais aplicáveis e, portanto, mais adequadas a seus objetivos,

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ou adequadas a mais objetivos.” (p. 176). Nesse sentido, o autor Hertzberger (1999, p. 177) afirma que: “A extrema funcionalidade de um projeto torna-o rígido e inflexível, isto é, oferece ao usuário do objeto projetado muito pouca liberdade para interpretar sua função de acordo com sua vontade.”

A apropriação social se dá também a partir do uso das calçadas e ruas, que além de vias de passagem desempenham a função de encontros sociais. As ruas devem ser pensadas de forma que sejam receptivas com o fim de que funcionem como espaços de convivência, para que a atmosfera de dentro da casa possa se integrar à atmosfera comunitária de fora. Isto pode ser determinado pelo planejamento e detalhamento do layout da vizinhança (HERTZBERGER, 1999; COELHO, 2010).

Segundo Malard (2006), os acontecimentos se espacializam num espaço/tempo cuja investigação pertence ao território da arquitetura, e ao projetar espaços é necessário conhecer espacializações e verificar suas formas e seus significados junto ao usuário. Assim,

É através da vivência que o usuário adquire experiência e tem condições de demonstrar sua satisfação ou insatisfação com o ambiente onde vive. Somente após vivenciar o ambiente, o usuário aprimora a percepção do lugar, formando uma imagem real de tudo que o cerca, ou seja, os atributos de espaço, como por exemplo, tamanho, conforto, praticidade, privacidade, etc. Neste ponto, o cliente tem maior capacidade de expressar suas opiniões. (PERUZZO 2008, p.22).

É comum que a pessoa introduza modificações na moradia, de modo a adaptá-la aos seus gostos e estilo de vida. Acredita-se que estas alterações seriam menores se o indivíduo fizesse parte da todas as etapas de elaboração do processo de construir sua casa. Entretanto, as famílias de baixa renda, quando têm acesso à casa própria através de algum projeto de habitação popular do governo, praticamente ficam à parte de qualquer processo decisório projetual de suas futuras moradias e muitas vezes se veem obrigadas a arcar com os custos de reparos de erros técnicos, construtivos e políticos na promoção das moradias que lhes são destinadas. (MALARD, 199?).

Como a maioria dos conjuntos habitacionais para baixa renda são projetados sem prever necessidades específicas das famílias, estes são modificados para atender seus anseios. É comum a apropriação das ruas e calçadas por parte de edificações, veículos, vendedores, como também é recorrente a modificação na casa padrão, com acréscimo de cômodos, muros e alteração de portas, janelas, dentre outras tantas.

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Para Peruzzo (2008) é impossível garantir que a programação racional não seja afetada pela não-racionalidade, pois esta é parte do processo de sobrevivência. Também o reconhecimento espacial é um processo de grande importância no caminho da transformação. A construção e transformação do espaço em lugar acontecem a partir da relação entre o trabalhador e o espaço programado no qual ele vive. Mesmo diante de uma racionalidade tão duramente imposta, o trabalhador consegue imprimir suas características no espaço, buscando alternativas para conviver com o que nem sempre lhe é útil ou favorável.

A apropriação da casa, do bairro e da cidade é feita no dia-a-dia, como resposta aos desejos e necessidades de um grupo. As modificações são entendidas como uma prática de apropriação do espaço da casa, correspondendo à busca por um espaço social e ao anseio de conformação de uma comunidade (DUARTE, 2005).

A apropriação material acontece como na territorialização, com demarcações (muros) para distinção de onde começa e termina o espaço privado, separando-o do espaço público. Já apropriação simbólica acontece através de modificação das cores como nas fachadas de modo a criar uma significação e identidade:

[...] a cor tem uma função bem mais importante do que a de simplesmente decorar as casas: ela passa a funcionar como um símbolo de identificação da família, como um carimbo impresso nas fachadas. (DUARTE, 2005, p. 181).

Duarte (2005) desenvolveu uma pesquisa onde estudou o processo de apropriação espacial e social da população de origem rural de um conjunto habitacional (Vila Pinheiros). Neste trabalho, a autora pôde constatar várias formas de apropriação por parte do usuário, como material, simbólica e social. O morador de procedência do meio rural carrega uma imagem do que supõe ser a vida na cidade, que é obtida através de mitos, fotos, mídia e relatos de experiências de outras pessoas que vivenciaram a experiência do urbano.

Segundo esta autora, a televisão é entendida como referencial cultural e existencial que contribui para formação do comportamento social, criando “códigos de uso” que são assimilados pelos moradores em suas casas. Como exemplo, cita-se o uso do ambiente da sala de visitas, que não é comum no meio rural, pois esta função social, na maioria das vezes, acontece no ambiente da cozinha. A sala de visitas tem uma função simbólica, que pode ser percebida através da disposição do mobiliário e de elementos que caracterizam a assimilação de hábitos urbanos, como televisões e demais aparelhos eletrodomésticos posicionados próximos a janelas como forma de demonstrar

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a assimilação cultural. As modificações feitas nas fachadas das casas também são apropriações simbólicas, pois demonstram assimilação da cultura urbana e de ascensão social de cada família. Ainda nesta pesquisa, foi observado que as reformas e modificações nas fachadas se davam na maioria das vezes, na substituição ou inclusão de materiais que se opõem à rusticidade, como o revestimento com azulejos coloridos, janelas de madeira substituídas por outras de metal ou pintadas de forma a fazer a alusão a este material, como também telhados escondidos com frontões para ocultar as telhas de barro.

Outros elementos arquitetônicos também são incorporados de forma a representar símbolos de ascensão social, como: janelas em arco, sacadas, jardineiras, forros com lambris de madeira em varandas. Estes são exemplos do que os moradores interpretam como estética urbana. Entretanto, Duarte constatou ainda que este aspecto urbano é revelado nas fachadas enquanto as características rurais podem ser melhor percebidas nos fundos do quintal e na cozinha, que segundo a autora:

Trata-se de um espaço doméstico por excelência e é o centro da organização familiar. O quintal é percebido como o compartimento dos “fundos”, o mais escondido da visão de quem passa pela rua e seu aspecto rural é conferido tanto pelos equipamentos que possui (redes, horta, criação de animais etc.) quanto pelo asseio ou pelo uso (lavagem de roupa e varal). (DUARTE, 2005, p.184).

Duarte (2005) pôde observar que a apropriação social se deu através do surgimento de comércio informal, que na maioria das vezes aconteceu em cômodos acrescidos junto à própria habitação, para venda de todo tipo de artigo, prestação de serviços como manicure, costureira, mecânico, técnico em eletrônica, carpinteiro, dentre outros. Estas formas de trabalho são alternativas que garantem a permanência dos moradores no bairro, o que não é comum de acontecer em prédios, pela impossibilidade de ampliação para comércio.