• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 4 – O MORADOR E A MORADIA

4.2. Estabelecer moradia: dimensão simbólica do habitar

Para início deste item é necessário esclarecer os conceitos que envolvem os termos “casa”, “moradia”, “lar” e “habitação”, mesmo que estes não sejam utilizados de forma consensual entre os autores.

O filósofo Bachelard (1993) relaciona a casa com a mãe que luta para se manter viva e, assim, proteger seus filhos, os habitantes. Ainda para este autor, a nossa casa, objeto físico, incorpora a nossa morada, o nosso lar. Mesmo a casa de nossos pais é sempre mencionada como “lá em casa”, mesmo quando não moramos mais nela.

Já para Camargo (2010), o termo “casa” refere-se ao objeto material construído, dotado de características físicas e localização própria. Por sua vez, o termo “moradia” está relacionado ao objeto físico casa na situação de estar habitado pelo homem, onde se experienciam as potencialidades da casa e se recebem as contribuições dos moradores. Ainda para este autor, o conceito de “lar” é utilizado para designar a moradia quando percebida subjetivamente pelos seus moradores. Por fim, quando há o extravasamento das interações da moradia para questões ligadas a infraestrutura e serviços ela é designada pelo termo “habitação”.

Martucci e Basso (2002) conceituam “casa” e “moradia” de forma similar à adotada por Camargo (2010). Para os autores, a casa “[...] é a casca protetora, é o

38

invólucro que divide, tanto espaços internos como espaços externos. É o ente físico” (p. 271). Para a edificação de uma casa, seja qual for sua tipologia, são necessários materiais, componentes, subsistemas e sistemas construtivos, bem como processos construtivos e técnicas utilizados pelo setor da construção civil para produção do produto casa. Segundo estes autores, para designá-la como moradia, deve-se levar em conta aspectos revelados a partir da vivência, como os hábitos de uso da casa e o modo de vida do usuário. Estes autores esclarecem que ao longo do tempo, uma mesma casa pode ser habitada em épocas diferentes por famílias diversas: “Os mesmos invólucros, os mesmos entes físicos, se transformam em moradias diferentes, com características, cujos hábitos de uso dos ‘moradores’ ou ‘usuários’ são a tônica da mudança.” (MARTUCCI e BASSO, 2002, p. 272). Já para o termo habitação, eles a consideram a partir do conceito de “habitat”, onde se integre o interno com o externo, ou seja, relacionados à vida das pessoas e suas respectivas relações políticas, econômicas, históricas e ideológicas. Assim, a habitação é a casa e a moradia integradas ao espaço urbano, com todos os elementos que este possa oferecer.

Já Malard (199?) faz a distinção entre os termos “casa” e “lar”, onde o primeiro se relaciona ao objeto comprado e o segundo àquele em que se mora e com o qual se estabelece uma relação emocional, ou seja, a casa é onde se dá a experiência do lar. Morar, no sentido de constituir um lar é fundamental característica para que o homem se entenda como “ser no mundo” e isto significa que estabelecer moradia, como também um habitar doméstico, deve possuir um conceito além do primitivo de representar um abrigo.

A edificação que o homem habita deve proporcionar o enraizamento e pertencimento ao local, para possibilitar a relação de morar. Isto se dá quando este espaço permite também atividades inerentes ao ser humano como estudar, divertir, trabalhar e sonhar. Para Bachelard (1993, p. 26), “A casa é uma das maiores forças de integração para os pensamentos, as lembranças, os sonhos do homem” e sem ela o homem seria disperso, pois ela é tanto o canto do ser humano no mundo, como também o seu universo.

Malard (2006) analisa os ensinamentos de Heidegger10, que discute a essência do ser, a qual ele designa como “ser no mundo”. Para aquela autora, a gênese do espaço arquitetônico decorre de espacialidades próprias ao ser humano, uma vez que a

10

Heidegger (1962, apud Malard, 2006). HEIDEGGER, M. Being and Time. Trad. John Macquirre & Edward Robinson. London: SCM Press, 1962.

39

existência deste tem uma dimensão espacial que é parte da própria experiência do homem no mundo. Para esta autora, “O mundo não é um container no qual o homem é (existe), nem o homem pode “ser no mundo” como se o mundo fosse uma extensão do espaço independente dele.” (p. 26). Neste sentido, o homem e mundo são indissociáveis, pois a espacialidade é parte integrante da natureza do ser.

Também para Camargo (2010, p. 43), “Habitar em uma casa é habitar o mundo, e a casa, como entidade física, é um meio de experimentarmos ser parte desse mundo”. Segundo esta autora existe uma conexão entre o habitar doméstico e o de se perceber inserido tanto na casa, na cidade, na região ou no país em que se vive. São os sentimentos de identidade e pertencimento que fazem com que a nossa casa seja percebida como lugar. Lugar este que proporciona sentimentos de estar inserido e de ser aceito no local em que se vive.

Segundo Duarte (2005), o conceito de lugar estabelece a conotação simbólica que ocorre em decorrência de combinações entre o espaço físico e as interferências humanas para então atribuir-se significado. Um exemplo de lugar apresentado por Bachelard (1993) é a casa natal, pois é um local dotado de lembranças e sentimentos particulares de uma determinada família.

Memórias, ideias, sentimentos, atitudes, valores, preferências, significados relacionados com o ambiente formam cognições que, segundo a psicologia, referem-se ao passado ambiental de uma pessoa. Vínculos com o entorno são importantes para a formação da identidade de lugar do sujeito, e este aspecto é importante para diferenciar as noções de espaço e lugar. Para Yi-fu Tuan (apud Del Rio et al, 2002), que trabalha com os conceitos de topofilia ou elo afetivo entre o homem e o lugar, o sentimento de lugar está associado à segurança e estabilidade, enquanto o conceito de espaço remete a liberdade e movimento. Assim,

O espaço indiferenciado, caracterizado como o local da aventura, da liberdade e do movimento, transforma-se em lugar à medida que o sujeito o vivencia através do tempo e da intensidade, passando, então, a ser dotado de valor afetivo para o sujeito. (MOURÃO e CAVALCANTE, 2006, sem paginação).

Malard (2006) trabalha com a relação orgânica entre corpo e espaço e diz que ela é fundamental para a compreensão do espaço arquitetônico, pois “a tomada do mundo pelo sujeito/corpo faz acontecer o evento e produz o lugar.” (p. 28). Segundo esta autora, um corpo se move por intenções e desejos, que irão atender a necessidades objetivas ou subjetivas, e é neste movimento que serão gerados eventos que se

40

espacializam, formando lugares. A autora acrescenta ainda que: “Além de espaço, os eventos precisam de tempo para acontecer” (p. 47). Ao utilizar o termo tempo, ela não se refere ao tempo de dias, horas e minutos e sim ao tempo vivido no cotidiano, pois este é fundamental para compreender seu papel nas espacializações.

É a partir do tempo vivido de uma população em certo espaço que esta passa a ser denominada como comunidade e tal espaço transforma-se em lugar, onde todos se conhecem e criam laços comunitários (DUARTE, 2002). A rotina previsível e aparentemente irrelevante que envolve o cotidiano doméstico é entendida como aspecto fundamental para obter sentimento de confiança, ordem e estabilidade proporcionado pela casa de uma família. Como afirma Bachelard (1993), a casa cria ordem no caos que é o mundo e é o elemento de estabilidade na nossa vida, sem o qual nós nos sentimos dispersos e perdidos. Ele ainda a designa como uma fortaleza na qual nos abrigamos das agressões do mundo, e também ponto de referência de onde sempre partimos e para o qual sempre desejamos retornar.

Assim como Bachelard, Hertzberger (1999) relata a necessidade de se ter o espaço pessoal, que pode ser alcançado através do estabelecimento da casa e da moradia:

Um “ninho seguro”- um espaço concebido à nossa volta, onde sabemos que nossas coisas estão seguras e onde podemos nos concentrar sem sermos perturbados pelos outros – é algo de que cada indivíduo precisa tanto quanto o grupo. Sem isso, não pode haver colaboração com os outros. Se você não tem um lugar que possa

chamar de seu, você não sabe onde está! Não pode haver aventura

sem uma base para onde retornar: todo mundo precisa de uma espécie de ninho para pousar. (p.28)