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Aproximação 1 – MANDALA FORMATIVA: TECENDO FIOS DA FORMAÇÃO EM SERVIÇO

4. RESULTADOS E DISCUSSÃO

5.1 Aproximação 1 – MANDALA FORMATIVA: TECENDO FIOS DA FORMAÇÃO EM SERVIÇO

A confecção inicial da tese passou por pressuposições do que seria encontrado nos cenários de práticas das Residências em Saúde, mas os resultados evidenciaram outras demandas que foram sendo incorporadas ao desenho inicial da pesquisa.

Analisar o processo é uma necessidade permanente para alertar sobre possíveis mudanças de percurso e, ainda assim, manter os objetivos estabelecidos. Esse reavaliar o processo em seu desenvolvimento é necessário para problematizar. (BRASIL, 2016).

A investigação ganhou outros contornos mencionados ao longo dos textos que, semelhante ao que Ceccim (2016) descreveu de uma experiência acerca de um projeto de investigação colaborativa, realizado em 2014 e definido como “prospecção”, registra o contato com múltiplas vivências de fazer a Atenção Básica (AB) e da colocação de diversos interlocutores dessas experiências em rede de conversas, sem intenção de inventariar boas práticas; mas distintas práticas visando comemorar a multiplicidade, pluralidade e diversidade. Talvez anunciar outros/ novos itinerários assistenciais, caminhos pedagógicos locais, o repensar constante e a atualização permanente em Atenção Básica.

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Assim, avaliar as residências em Saúde nos cenários de práticas no estado do Rio Grande do Norte, permitiu como o dicionário Aurélio (2010) define o termo, avaliar o valor de abrir as portas dos serviços para ensinar no e pelo trabalho na Atenção Básica.

Nesse caminho de conhecer o valor dos encontros de aprendizagens nos cenários de práticas, foi possível ir aprendendo a relevância de pesquisar com usuários (as), com os colegas de AB, gestores de serviços, gestores dos programas e preceptores. Foi um ressignificar profissional, afetando a existência como trabalhadora, educadora e pesquisadora.

A produção de dados do estudo foi repleta de presentes ganhos ao longo das seis semanas de imersão nos territórios das Unidades Básicas de Saúde (UBS) e, em cada uma delas, foram compartilhados sonhos, angústias, alegrias. A convivência modificava a escrita, estreitando os laços através do contato mantido com cada novo colega conquistado. Acredita-se que, também estes foram afetados pela pesquisa. Em cada lugar os resultados preliminares da pesquisa eram compartilhados para ir pensando junto com as equipes como as evidências poderiam colaborar com aquele cenário.

O novo conhecimento, ao ser produzido, supera o que antes era novidade; por isso é fundamental entender aquele que já existente, tanto quanto colocar-se aberto e apto à produção do que ainda está sendo criado. O ciclo gnosiológico é composto pelo ensinar, aprender e pesquisar em dois momentos: o em que se ensino e aprende o conhecimento existente e o em que se trabalha a produção de saberes ainda não existentes. “Dodiscência”, docência-discência-pesquisa, são indicotomizáveis, são práticas requeridas por este ciclo. (FREIRE, 2000).

Aprendemos e, de certa forma ensinamos, pesquisando sobre as Residências em Saúde. Em cada lugar quis deixar meus agradecimentos para que todas as pessoas que colaboraram comigo visualizassem meu presente. Então, para cada serviço, foi confeccionada uma mandala (dispostas ao longo do trabalho) para cada lugar que nos recebeu.

As mandalas Olho de Deus são símbolos indígenas de etnias mexicanas e bolivianas que representam saúde, felicidade e prosperidade a quem as possui. Na tradição indígena, a mandala é feita pelo pai quando o filho nasce e cada cor significa uma intenção. O Olho de Deus é conhecido como o poder de ver e compreender as coisas desconhecidas. (OLIVEIRA, 2016).

Assim, cada mandala foi produzida pensando no que se desejava para cada uma delas, as cores representam essas intencionalidades. Os fios, as tramas, os pontos e composição de oito ou quatro pontas, tudo fazia sentido nas passagens pelas UBS.

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A ideia de usar mandalas surgiu a partir da leitura de textos de Ceccim e Ferla (2006), que lançam mão destas para representar a gestão em rede de práticas cuidadoras para a educação dos profissionais de Saúde. As linhas expressam o cuidado sensível ao controle social de organização do Sistema de Saúde. Essas palavras foram seminais para definir o conceito anunciado no texto da Mandala FormATIVA como materialização das aprendizagens que a pesquisa proporcionou nos serviços da AB.

A vida no centro significa todas as vidas. Para Boff (2004) tudo o que vive precisa ser alimentado, cuidado. Vidas humanas (todas as vidas), vida da terra, vida da água, vida dos animais, vida do ar, vida. As ressonâncias negativas do cuidado são percebidas pela má qualidade de vida, pela penalização da maioria empobrecida da humanidade, pela degradação ecológica e pela exaltação exacerbada da violência.

A formação em Saúde precisa criar encontros em que o cuidar possa ser experimentado durante o cuidar, nos atos do trabalho, para despertar sensações e afetos produzindo-se no cuidado. São encontros que, ao longo da vida, tem-se participando com o outro e consigo do movimento de

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estar vivo. Cuidado entre vivos produzido a partir desses encontros com suas singularidades e multiplicidade, em acontecimento. (ABRAHÃO; MERHY, 2014).

A vida presente nos territórios da AB em toda a magnitude - esse olhar condensa indivíduos, coletivos, espaços físicos, memórias, sentimentos, ambiente, riscos, potências.

A produção de cuidado centrado em todas as vidas precisa do quadrilátero da formação em Saúde para criar possibilidades de mudanças e de subversão aos paradigmas hegemônicos.

O ensino, gestão setorial, práticas de atenção e controle social são as partes constituintes do quadrilátero que propõe construir e organizar uma educação responsável por processos interativos e de práticas na realidade para transformar, criar caminhos, convocar protagonismos e identificar a paisagem interativa e móvel de indivíduos, coletivos e instituições, como cenário de conhecimentos e invenções. Uma cartografia permanente em que estão aspectos éticos, estéticos, tecnológicos e organizacionais, operando em correspondência, agenciando atos permanentemente reavaliados e contextualizados. (CECCIM; FEUERWERKER, 2004).

Estão como pontos da formação em serviço na mandala que, ao invés de um quadrilátero, estão como forma geométrica concêntrica integrando outros elementos que resultam das observações registradas no período pesquisado (APÊNDICE A).

Pedrosa (2016) já anunciava essa mudança ao discorrer sobre as possibilidades experienciadas de formar em Saúde, quando o quadrilátero vira mandala a partir das dobras e brechas que se abriram na concepção de formação e produção de conhecimentos nessa área, na constituição de atores. A mandala é um símbolo da totalidade e representa a integração entre homem e natureza, retratando as condições nas quais é construída a experiência humana entre o interior (pensamento, sentimento, intuição e sensação) e o exterior (natureza, espaço e cosmo).

Aprendizagens devem ser afetações prazerosas que o corpo inteiro aprende. Michel Serres (2004, p. 116) esclarece que “qualquer tipo de ensino que transmita conhecimentos apenas para seus seguidores, não forma seres humanos, estes animais criativos, mas, sim, macacos de imitação”.

Nesse caminho de animais criativos precisa-se de esperança, amorosidade, respeito e compromisso. Serão tomadas emprestadas falas de alguns autores para estruturar essa ideia.

A esperança de produzir o objeto é tão essencial ao trabalhador quanto indispensável é a esperança de refazer o mundo, na luta dos oprimidos e das oprimidas. Desse modo, a prática é desveladora, gnosiológica. A educação sozinha, porém, não faz a transformação do mundo, esta a implica. (FREIRE, 2014). Para o mesmo autor, a esperança é fundamental para a atividade

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educativa porque significa a crença de que professor e alunos juntos podem aprender, ensinar, inquietar-nos, produzir e enfrentar os obstáculos sem perder alegria. A esperança faz parte da natureza humana, sem ela a experiência histórica seria puro determinismo. (FREIRE, 2000).

A amorosidade nas práticas pedagógicas significa ampliar o respeito ao outro, respeito à autonomia de pessoas e de grupos sociais, especialmente àqueles em situação de iniquidade, por acreditar na criação de laços de ternura, acolhimento e compromisso anteriores às explicações e argumentações no enfrentamento e transposição de situações de sofrimento e injustiça. Valorizar a amorosidade nas práticas de Saúde e Educação é fortalecer o diálogo nas relações de cuidado, através da incorporação do afeto e da sensibilidade, consolidando processos em construção no SUS tais como a humanização, acolhimento, participação e controle social, políticas de enfrentamento das iniquidades em Saúde. (BRASIL, 2016). Paulo Freire (2019) defende que o amor é um ato de coragem, é compromisso com a vida. Onde quer que estejam pessoas em situação de opressão, o ato de amor está em comprometer-se com sua causa. Isso é amorosidade, é dialógico.

O respeito aos saberes produzidos pela Ciência, senso comum, saberes locais ou práticos, saberes indígenas, crenças e saberes da tradição - dialogando com outros saberes e experiências, reconhecendo e validando todos esses conhecimentos, mas sem relativismo, ou seja, da ideia de que todos os saberes se equivalem. De forma que nenhum saber seja considerado padrão a partir da qual será aferida a validade dos outros saberes sem considerar as condições situadas de sua produção, mobilização e suas consequências. (NUNES, 2010). Respeito ao saber anterior dos educandos, na Saúde, pode ser traduzido como as experiências das pessoas sobre o seu sofrimento e dos movimentos sociais e organizações populares em sua luta pela saúde, nas comunidades de moradia, de trabalho, de gênero, de raça e etnia. (BRASIL, 2010).

O compromisso é uma prática pedagógica que deve aproximar cada vez mais o que digo e o que faço, entre o que pareço ser e o que realmente estou sendo. A maneira como desempenho meu papel de educador, precisa ser coerente com meu posicionamento - se minha opção como docente é democrática, progressista, não posso ter uma prática reacionária, autoritária, elitista. (FREIRE, 2000). Adaptando essa ideia para a Saúde, pode-se falar em responsabilidade sanitária, quando mencionado o papel das equipes ao assumirem que, em seu território de atuação, devem considerar na organização e operacionalização do processo de trabalho, as questões ambientais, epidemiológicas, culturais e socioeconômicas, por meio de ações em Saúde, para diminuição de riscos e vulnerabilidades. (BRASIL, 2017). Necessário se faz considerar o

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compromisso das atribuições de cada categoria profissional inserida na produção dos serviços de Saúde no diálogo com a população.

A vivência de observação na produção de dados tornava nítida a fragmentação dos processos formativos que aconteciam nas UBS. Além disso, os planejamentos e a execução dos objetivos educacionais e, consequentemente de cuidados, eram deslocados da realidade. Serão citados alguns exemplos. O primeiro foi um grupo de promoção à saúde com idosas em que o residente insistia na necessidade de confeccionar com elas uma farmácia viva na UBS (os programas estimulam a implantação das farmácias vivas para mudar a medicalização); entretanto, o grupo tinha vontade de trabalhar com artesanato. Na reunião que participei, elas trouxeram várias opções de peças que poderiam produzir nos encontros, pensando inclusive em gerar renda para comprar outros materiais. Esse descompasso pode sugerir pela distância entre planejamentos e a real necessidade da população. Outro seria o modelo campanhista de organização das agendas de trabalho - esse modelo altera ambiência do serviço e todo o agendamento. As UBS, em agosto, eram lilás e no mês de setembro, estavam com agendas voltadas para o setembro amarelo, porém não ficava clara a relação dessa organização com a demanda no território. Precisa ficar claro o alinhamento dos planejamentos, agendas, abordagens e avaliação de todas as ações - individuais e coletivas.

Acrescem-se os múltiplos planejamentos das instituições formadoras nas UBS pesquisadas que geram atendimentos diversos e desconexos. Alguns cenários causam estranheza, como o do residente de Medicina de Família que não planeja nem compartilha de nenhum atendimento individual e coletivo com os residentes multiprofissionais que, por sua vez, não conversam com os internos de Medicina e assim por diante. Iremos tecer fios da Mandala Formativa para integrar o processo pedagógico.

Territorialização - movimento essencial e permanente de apropriação/conhecimento do território pelas equipes da Estratégia de Saúde da Família (ESF), onde acontece a cartografia do território de diferentes mapas (físico, socioeconômico, sanitário, demográfico, rede social etc.). A territorialização amplia a potência das equipes em reconhecer as condições de vida e da situação de saúde da população de uma área de abrangência, bem como dos riscos e vulnerabilidades dos territórios. (BRASIL, 2017). A territorialização não deve se restringir a uma atividade disciplinar ou demanda para avaliação externa das equipes; precisa ser entendida como movimento contínuo, ordenador do processo de trabalho. A sala de situação deve ser parte da territorialização e, portanto, também precisa ser mantida atualizada para assegurar que os indicadores quantitativos e qualitativos estejam atualizados, para subsidiarem a produção de cuidado das equipes.

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Planejamento integrado - movimento que deve refletir os objetivos de cuidado e de

aprendizagens de todos os sujeitos que estão no cenário de prática que surge da territorialização como um fio condutor do processo de organização do trabalho das equipes. Para Souza et al (2014) o enfoque participativo no planejamento na AB é fundamental para o reconhecimento da complexidade que caracteriza os processos saúde-doença e os Sistemas de Saúde em que tais problemas acontecem. Em geral, os planejamentos são reativos, verticalizados e fragmentados. Propõe-se que as reuniões de equipe - geralmente às sextas-feiras, à tarde (são esvaziadas e sem pauta bem definida) - sejam realizadas com a presença dos estudantes, residentes, professores e pesquisadores que estão no serviço.

Agendas integradas confeccionadas a partir do planejamento respeitam as

singularidades dos sujeitos a quem ofertarão cuidados, além de integrar objetivos de cuidado e aprendizagens com base nas necessidades de saúde da população. Experiência de formação- investigação na AB evidenciou que a capacidade de responder aos desafios está relacionada à mobilização coletiva e envolvimento dos trabalhadores e gestores (inserem-se aqui estudantes, professores, pesquisadores), no encontro com usuários para (re)criar modelagens de cuidados que se aproximem dos territórios vivos em Saúde. (LIMA, 2016).

Abordagens integradas à produção de agendas compartilhadas e pautadas no

compromisso de todos os sujeitos que atuam no serviço devem ser desenvolvidas através de interconsultas (profissões cujos núcleos são distintos, mas que têm convergências potentes para o enfrentamento de algumas problemáticas, como as doenças crônicas); consultas compartilhadas para permitir o exercício de matriciamentos, consultas coletivas como as de acompanhamento do Crescimento e Desenvolvimento infantil (CeD), pré-natal coletivo, hiperdia coletivo; educação permanente integrando todos os sujeitos aprendizes, ações coletivas integrando os saberes do território com educação popular em Saúde. Movimento para vivenciar abordagem comunitária que será apresentada em texto a seguir.

Avaliação integrada dos processos em andamento nos cenários de prática. Movimento

recente na AB que foi sistematizado e implementado a partir de 2011 com PMAQ. Pesquisa realizada com trabalhadores sobre o PMAQ na AB expressou resultados que melhoraram a organização e o registro das informações, do planejamento a partir da autovaliação e a avaliação externa como ferramenta de mobilização da gestão e das equipes. Porém, apontou que urge um maior envolvimento das equipes na contratualização e monitoramento dos indicadores do programa, assim como melhor uso das ferramentas da autoavaliação no planejamento local.

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(BERTUSSO; RIZZOTTO, 2018). Avaliação integrando inclusive os estudantes, professores e pesquisadores que atuam no cenário de prática. Testando o desempenho dos residentes de Medicina e multiprofissionais.

Esse movimento do fio traçando a mandala é circular e retorna sempre que necessário para ajustar o ponto ou intenção da composição da imagem.

Como os autores apresentam a ideia de Ceccim (2007) da imagem da mandala, ainda que finita, há uma ilimitada margem de dobras, inversões, reversões, apresentações. Na confecção da mandala não há repetição, exceto ressingularização permanente, por composição de diversos, por harmonização de prazeres, por potência de inventos. (CECCIM et al, 2016b).

A mandala formativa não é um modelo a ser reproduzido. Talvez seja uma imagem-objeto para ampliar a boniteza das Residências em Saúde nos cenários de práticas. Boniteza - um neologismo freiriano, para compor os serviços, fazendo lembrar as potencialidades, mas também as fragilidades.

São fios policromáticos que, ponto a ponto, ou seja, a cada momento compartilhado com as equipes da ESF (foram onze), foram feitas composições de ensino, pesquisa, cuidado, participação popular e aprendizagens tornando a imagem da mandala, a cada novo olhar, tão convidativa para ressignificar saberes e fazeres na AB!

5.2 Aproximação 2 - Abordagem Comunitária: esticando o conceito de