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Aproximações entre as ações afirmativas desenvolvidas no Brasil e a agenda hegemônica neoliberal

3 A RELAÇÃO ENTRE CLASSES E RAÇA NA CONTEMPORANEIDADE: COTAS SOCIORRACIAIS NA UNIVERSIDADE

3.1 Percurso histórico das ações afirmativas

3.1.2 Aproximações entre as ações afirmativas desenvolvidas no Brasil e a agenda hegemônica neoliberal

Vários autores, no país, defendem a prática governamental de implantação de ações afirmativas. Podemos mencionar alguns, como Guimarães (2003), Santos (1995) e Silvério (2002), os quais criticam a centralidade do trabalho na luta social, pois, segundo eles, esta categoria não daria conta das questões específicas dos grupos sub-representados; na visão desses autores, as medidas específicas para os diversos setores da sociedade: educação, emprego, moradia, saúde, onde haja grupos sociais minoritários sendo discriminados ou impedidos do acesso a esses serviços ou direitos, seriam bem mais inclusivas e eficazes.

Silvério, ao estudar a política afirmativa do sistema de cotas, além de criticar as políticas universalistas, afirma que:

A discussão em torno das políticas de ação afirmativa como uma via alternativa de resolução dos conflitos resultantes das desigualdades raciais e de gênero tem implicado uma profunda revisão dos pressupostos do liberalismo ou, mais precisamente, dos limites e possibilidades daqueles pressupostos para a solução de problemas contemporâneos (SILVÉRIO, 2002, p. 02).

Está claro para esse autor que há possibilidades nos pressupostos do liberalismo, e possibilidades para a solução de problemas contemporâneos, como desigualdade racial e de gênero. A política de ação afirmativa, segundo o autor, aparece como alternativa de resolução de conflitos no âmbito dos pressupostos do liberalismo. No mesmo artigo, o autor propõe que a desigualdade entre ricos e pobres é vista como decorrente da desigualdade entre brancos e negros: “minha proposta é recolocar o problema da desigualdade social entre brancos e negros como uma dimensão fundamental da explicação da desigualdade entre ricos e pobres” (Idem).

Numa linha de raciocínio bastante aproximada, Santos (1995) é mais enfático: propõe a defesa de mecanismos estabelecidos no próprio sistema capitalista para a resolução dos problemas sociais.

A regulação social da modernidade capitalista se, por um lado, é constituída por processos que geram desigualdade e exclusão, por outro, estabelece mecanismos que permitem controlar ou manter dentro de certos limites esses processos. Mecanismos que, pelo menos, impedem que se caia com demasiada freqüência na desigualdade extrema ou na exclusão extrema. Estes mecanismos visam uma gestão controlada do sistema de desigualdade e de exclusão, e, nessa medida, apontam para a emancipação possível dentro do capitalismo [...] Por exemplo, o marxismo concentrou- se na desigualdade classista e teve pouco a dizer sobre a exclusão foucaultiana, o racismo ou sexismo (SANTOS, 1995, p. 05).

Na explicação sobre quais seriam esses mecanismos que possibilitam a emancipação dentro do capitalismo, Santos apresenta dois tipos de universalismo: o diferencialista e o antidiferencialista. Para o autor, o primeiro inferioriza pelo excesso de diferença, e o outro pelo excesso de semelhança. Mas o que nos interessa neste texto é a convicção do autor, ou seja, a aposta, por parte dele, em saídas para a exclusão e a desigualdade nos limites do capitalismo.

O autor defende uma luta de classes “institucionalizada prolongada pelas organizações de interesses setoriais corporativos e pelas relações continuadas que entre elas se estabelecem” (Idem). Desse modo, a luta de classes deve ser feita dentro das instituições capitalistas, o que não deixa de ser um paradoxo diante das afirmações anteriores do autor, de que, por um lado, o capitalismo gera processos excludentes e, por outro, mecanismos de emancipação no seu interior como uma constituição que lhe é inerente. Para que então a luta de classes?

Guimarães, por sua vez, apresenta uma linha de raciocínio bastante semelhante à de Silvério e de Santos, na defesa da sobreposição do movimento negro ao movimento classista:

O movimento dos negros brasileiros contra as desigualdades raciais é sem dúvida uma importante forma de mobilização social no Brasil de hoje. Mobilização essa que se torna mais importante à medida que os conflitos urbanos de classe (como os protagonizados pelos sindicatos operários) tenderam a se eclipsar na esteira das reformas ‘neoliberais’ e do realinhamento internacional da economia brasileira (GUIMARÃES, 2002, p. 02).

Não há na fala desse autor uma crítica às reformas neoliberais que eclipsaram os conflitos urbanos de classe, e sim um reconhecimento da importância do movimento negro, que tem a oportunidade de protagonizar o cenário social.

A esse respeito convém lembrar que na chamada ideologia neoliberal da Terceira Via vemos algo parecido:

a solução dos problemas e a realização de demandas deveriam ser buscadas na mobilização social de pequenos grupos e por intermédio de ‘parcerias’ com a aparelhagem estatal e outros organismos da sociedade civil, e não mais nas políticas universalizantes (NEVES, 2005, p. 63). Dessa forma observamos que não é tão difícil estabelecer as relações entre a agenda hegemônica de sociabilidade e as políticas de ações afirmativas, uma vez que o governo e a sociedade civil que a praticam, bem como os autores que a defendem, parecem falar a mesma linguagem. A luta por dentro da aparelhagem significa no mínimo a manutenção das instituições burguesas.

O Movimento Negro vem pressionando o Estado e suas agências visando a elaboração e a implementação de possíveis políticas públicas que, de modo inequívoco, incorporem a questão racial. Nessa perspectiva, esse movimento social torna-se importante vetor de inovação, de democratização e de modernização política (SISS, 2003, p. 109).

O autor chega ainda a afirmar, na página citada, que a ação do movimento negro pode, quando articulada à educação, proporcionar a “construção da cidadania plena e de uma mobilidade vertical ascendente” (Idem). Isso demonstra sua crença na possibilidade de transpor os limites do capital na luta por dentro de sua aparelhagem.

A esse respeito, Neves (2005) afirma que:

A Terceira Via desresponsabiliza o capital, desresponsabiliza a história e responsabiliza os sujeitos e suas associações pela garantia de estabilidade social, política e psicológica profundamente abalada pela eliminação de um horizonte de transformação [...] À prática democrática, portanto, caberia a conciliação dos interesses históricos das classes (NEVES, 2005, p. 65).

A luta por dentro da aparelhagem do Estado, se por um lado garante ao capital a manutenção das regras do jogo burguês, por outro responsabiliza os sujeitos e suas associações pela estabilidade social e fortalece a democracia como conciliação de interesses inconciliáveis.

Podemos concluir nesta seção que a proposta de inclusão social através da política de ações afirmativas deve ocorrer nos marcos do capitalismo, como propõem seus defensores. Porém, da mesma forma que na origem do mito liberal de democracia racial, em

que todos eram, perante a lei, considerados iguais, mas na vida social podiam ser tratados de modo desigual, em que uns podiam ser livres e outros escravizados, perguntamos-nos se o mesmo não ocorre na atualidade com a proposta liberal de inclusão social.