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2 TRABALHO, EDUCAÇÃO E A RELAÇÃO ENTRE CLASSES E RAÇA

2.3 Classes, raça e racismo

2.3.2 Mito da democracia racial

Não poderíamos seguir este estudo sem darmos uma atenção especial ao mito da democracia racial, atribuído a Freyre em sua obra Casa-grande & senzala. Longe de querer julgar as razões do autor ou de buscar inocentá-lo, visto que na obra citada, por diversas vezes, ele faz declarados elogios às relações de exploração entre senhores e escravos, como, por exemplo:

Tenhamos a honestidade de reconhecer que só a colonização latifundiária e escravocrata teria sido capaz de resistir aos obstáculos enormes que se levantaram à civilização do Brasil pelo europeu. Só a casa-grande e senzala. O senhor de engenho rico e o negro capaz de esforço agrícola e a ele obrigado pelo regime de trabalho escravo (FREYRE, 2005, p. 323). Contudo, queremos demonstrar em breves linhas que Freyre não é o pai desse mito, a ele atribuído. Interessa-nos esta questão pelo fato de estar sendo utilizada como argumento na recusa à política de cotas e pelo falseamento da realidade que ela sugere.

Na revisão da literatura, percebemos que a raiz do mito da democracia racial se encontra no próprio liberalismo, quando diz que “os homens são naturalmente livres” (NABUCO, 1999, p. 49). Ora, até então os homens eram naturalmente desiguais, ou seja, tinham no nascimento o fator da desigualdade na sociedade feudal. Uns nasciam para ser servos, outros para ser nobres, sendo tudo referendado pela Igreja.

Essa igualdade de liberdade entre os homens é promulgada pelo liberalismo nos direitos universais e, como vimos no primeiro capítulo, os direitos individuais são direitos

jurídico-políticos que não rompem com a desigualdade real. Portanto, são direitos que propõem uma emancipação política formal, a qual não é outra coisa a não ser um mito, um embuste, por não propor a erradicação das desigualdades e sim a administração democrática destas. O mito da democracia racial passa a ser defendido pelos abolicionistas liberais como direito natural à liberdade, e ao mesmo tempo é por eles temido no sentido das consequências que ele acarretaria.

Mesmo sendo cartorial, a liberdade dos negros no Brasil foi sendo instaurada de forma gradativa por medo de um levante dos negros em represália aos brancos – haja vista as várias insurreições dos negros, a exemplo do grande grito de liberdade dos Zambis em Palmares, na Província de Alagoas (RODRIGUES, 1977), a Revolta dos Malês, em 1835, na Bahia (FREYRE, 2005) –, e pelo crescente desenvolvimento da economia agrária, a qual necessitava cada vez mais de braços para a lavoura, intensificando o tráfico de escravos, como relatava Nabuco (1999)7.

Não são poucos os autores que atribuem a Freyre o mito da democracia racial assentada na suposta igualdade entre negros e brancos. Contudo, ao fazermos a leitura da obra de Freyre, vimos, ao contrário, que para esse autor o equilíbrio estava justamente na desigualdade, “um processo de equilíbrio de antagonismo. Antagonismo de economia e de cultura” (FREYRE, 2005, p. 116).

A revisão da literatura nos permite constatar que nunca houve, de fato, na história do país, igualdade étnica real.

Podemos também verificar em Santos, quando esta cita autores do período abolicionista, que entre eles já estava clara a igualdade entre os homens na forma da lei, e que também eles não a viam como real, uma vez que enquanto exaltavam a lei, percebiam os negros como inferiores.

Que essa desigualdade real entre os homens, tanto nas qualidades físicas, como nas intelectuais e morais, formando a beleza das sociedades pela diversidade como em todos os demais seres criados na terra ou no espaço celeste, não legitima todavia nem autoriza aquêle fato; se o destino do homem é seu aperfeiçoamento, outros são os meios de aproveitar e melhorar esses mesmos infelizes menos dotados de habilitações [...] não há fundamento algum de ordem material ou espiritual, que dê ao homem o direito de reduzir-se ao cativeiro, e muito menos de a êle reduzir um outro homem, seu semelhante, seu igual (MALHEIROS, 1994, apud SANTOS, 2002, p. 75).

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Mesmo depois de extinto o tráfico, no Brasil ele se intensificou, em parte em reação à política imperial inglesa e, noutra parte, pelo aumento do lucro gerado por esta atividade. A Inglaterra, tendo o controle do tráfico, agia com olhos de mercador em alguns casos e com olhos de lince noutros, dependendo do que estivesse em jogo.

Malheiros não deixa dúvidas quanto ao fato de a defesa de uma igualdade formal no seu entendimento não se assentar numa igualdade real, pois suas ideias se pautavam no forte pensamento eugenista da época, segundo o qual havia a necessidade do aperfeiçoamento da raça negra, vista como inferior. Outro abolicionista, desta vez um médico francês, Louis Couty, também citado por Santos, nos apresenta um ponto de vista bastante convicto da democracia racial no Brasil:

No Brasil, não somente o preconceito de raça não existe e as uniões freqüentes entre cores diferentes têm formado uma população mestiça numerosa e importante, mas os negros livres e mestiços estão inteiramente misturados à população branca; êles têm até com ela relações íntimas e diárias e lutam pela vida nas mesmas condições (COUTY, apud SANTOS, 2002, p. 81).

O mito da democracia racial, que na atualidade é atribuído a Freyre (SISS, 2003, p. 99), é algo anterior a ele e se origina nos ideais liberais, mas tão importante quanto constatar que já entre os abolicionistas o mito da democracia racial se fazia presente, é a verificação de que Freyre entrou em evidência talvez por ter tido a coragem de assumir sua preferência pelo regime, como podemos observar nas linhas abaixo, em que o autor trata a abolição como um descalabro, ao se referir à boa alimentação das senzalas:

só depois do descalabro da abolição estendida com igual intensidade aos negros e pardos já agora desamparados da assistência patriarcal das casas- grande e privados do regime alimentar das senzalas. Os escravos negros gozaram sobre os caboclos e brancarrões livres da vantagem de condições de vida antes conservadoras que desprestigiadoras de sua eugenia: puderam resistir melhor às influências patogênicas, sociais e do meio físico e perpertuar-se assim em descendências, mais sadias e vigorosas (FREYRE, 2005, p. 109).

Nessa passagem Freyre se refere à abolição como um descalabro, por privar os negros do paternalismo dos senhores, embora considere, ao mesmo tempo, que sobre os índios, após a abolição, os negros levaram vantagens devido à boa alimentação que recebiam nas senzalas. “Melhor alimentados, repetimos, eram na sociedade escravocrata os extremos: os brancos das casas-grandes e os negros das senzalas” (Idem, p. 96). Em diversas passagens, o regime de casa-grande é apontado como modelo de administração dos antagonismos existentes. Não há nisso uma defesa de democracia, mas uma defesa do antagonismo senhor/escravo, a ser equilibrado pela mão pesada do senhor.

Para Freyre só o negro, e não o índio, tinha condições de assumir a lavoura; o índio, “sub-raça brasileira”, segundo ele, acostumada ao nomadismo não se adaptava à vida vegetativa e agrária. O negro era o elemento capaz de suportar a vida exigida pela estrutura

de casa-grande e senzala. O contato do português com os índios promoveu a “degradação da cultura atrasada” e, justamente por ser considerada “atrasada”, não servia ao trabalho na lavoura.

Freyre era um defensor do modelo de ação portuguesa no Brasil, por isso sua defesa apaixonada pelo regime escravocrata, e não da democracia racial.

Independente de a obra Casa-grande & Senzala ser talvez mais cruel com os índios em relação ao negro, este ainda é tratado como meio de produção, e em relação à mulher negra, verificamos o racismo de forma acentuada, ainda que no regime escravocrata ocupasse um papel inferior. Em alguns dos autores pesquisados, a exemplo de Nabuco e Freyre, as mulheres nem sequer têm seus nomes citados. Nas próximas linhas poderemos observar que a atual condição da mulher negra apresenta uma situação bastante desfavorável em relação à mulher branca e nas relações de gênero de um modo geral.