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Raça: origem e significado do termo

2 TRABALHO, EDUCAÇÃO E A RELAÇÃO ENTRE CLASSES E RAÇA

2.2 Raça: origem e significado do termo

Esclarecemos neste tópico que não adotamos a teoria da raça única para justificar a ausência de preconceito racial no Brasil, pois partimos da premissa de que todos somos afrodescendentes.

Com o objetivo de expor a temática de maneira mais aprofundada, buscaremos contextualizar o termo raça, desde o seu surgimento aos dias atuais, e os diferentes significados assumidos, a partir de argumentos biológicos e culturais, marcadamente ideológicos e controversos, os quais ressurgem na atualidade com novas caracterizações no âmbito do debate em torno das ações afirmativas.

Atualmente, falar em raça com o avanço das pesquisas científicas e do projeto genoma – que reconhece a existência de uma única raça –, é tão complicado quanto era

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Segundo Meltzer (2004), a lenda da guerra de Troia retrata as migrações dos gregos ao litoral da Ásia Menor e costa da África, nas quais os gregos estendiam seu território e aumentavam seu número de escravos de todas as nacionalidades e posições sociais.

falar em raça no período iluminista em que as pesquisas científicas daquela época contribuíram para o surgimento do racismo.

Atualmente há um consenso entre os autores sobre o surgimento do racismo, com as características atuais, no século XVIII, mas ainda há controvérsias acerca da utilização do termo raça, e em que sentido, como fundamento ou não para a escravidão.

Podemos verificar em Nabuco (1999) que na Grécia era a diferença entre “raças” o fundamento da escravidão:

o direito que se arrogavam as nações vencedoras, e as que elas se sujeitavam quando vencidas, era um fundamento mais digno para a escravidão do que a primordial diferença das raças, que , como na Grécia, era a razão do tráfico e da pirataria (NABUCO, 1999, p. 60).

Nesta obra Nabuco faz um comparativo entre a lógica do fundamento da escravidão na Grécia, que se estabelecia na diferença entre as “raças”, e em Roma, segundo o autor, fundamentada no direito “das gentes”, como resultado de uma batalha. No entanto, essa afirmação sobre a Grécia é refutada por Meltzer:

Homens, mulheres e crianças de todas as partes do mundo foram escravizados. Vinham de todos os continentes em torno do Mediterrâneo – Europa, Ásia e África. Um escravo podia ter qualquer cor – branca, negra, parda, amarela. As diferenças físicas não importavam. Guerreiros, piratas e mercadores de escravos não estavam preocupados com a cor da pele ou a forma do nariz. Entre os gregos parece não ter havido nenhuma ligação entre raça e escravidão (MELTZER, 2004, p. 20).

Esse autor não deixa dúvidas quanto ao fundamento econômico e não racial para a escravidão; talvez Nabuco estivesse se referindo ao período de ascensão grega, em que todos que não eram helenos – genuinamente gregos –, eram tratados como “bárbaros”, numa forma de distinguir os colonizados dos colonizadores, já que entre os colonizados, segundo Meltzer, muitas vezes havia um nível de cultura muito mais desenvolvido, a qual era posta a serviço da metrópole.

A escravidão “era um negócio comum e rentável, aceito por todos. Um homem podia escravizar outros num dia, e no próximo ele mesmo ser escravizado. A única proteção estava em sua capacidade pessoal de resistir” (Idem, p. 53). Um negócio que movimentava a economia e fazia parte da divisão social do trabalho sem questionamentos, “existia como parte vital da vida econômica. A maioria dos autores antigos, porém, não escreveu sobre isso como um problema” (Ibidem, p. 19).

Aristóteles é então um claro exemplo das afirmações de Meltzer, na condição de grande filósofo que pensou a organização social para além de sua época, mas não via na

divisão social de trabalho de seu tempo um problema. Ao contrário, defendia a manutenção desta para o bom funcionamento do Estado:

Uma vez conhecidas as partes que compõem um Estado, torna-se necessário falar da economia doméstica, já que o Estado é uma reunião de famílias. Os elementos da economia doméstica são exatamente aqueles da família, que para ser completa deve compreender escravos e indivíduos livres. Sabendo-se que na família as partes primitivas e indivisíveis são o senhor e escravo, o marido e a mulher, o pai e os filhos, seria necessário estudar isoladamente essas três classes de indivíduos para saber o que é que deve ser cada uma delas (ARISTÓTELES, 2007, p. 17).

Nessa perspectiva, o escravo como membro necessário da família completa, visto isoladamente, era um “instrumento animado” ou ainda “uma propriedade viva” (Idem, p. 18). Portanto, “o escravo faz parte do senhor” e ao mesmo tempo difere hierarquicamente na estrutura social “pela própria obra da natureza” (Ibidem, p. 22). Não é a raça o fundamento da escravidão em Aristóteles e sim a lei natural, pois por obra da natureza uns nascem para governar e outros para servir, mesmo que haja diferenças entre “escravo e escravo, senhor e senhor” (Idem, p. 22).

Revisando a literatura, verificamos as mudanças de sentido que o termo assumiu ao longo dos anos. Cashmore (2000) apresenta em seu Dicionário das Relações Étnicas e Raciais, pelo menos quatro significados para este termo. O primeiro, marcadamente biológico, diz respeito a “uma variedade de espécies que desenvolveram características distintas por meio de seu isolamento” (2000, p.453), o que do ponto de vista da espécie humana, para Freire-Maia (1973) – grande defensor da miscigenação eugênica –, teria sido uma “impossibilidade histórica” (1973, p.33), visto que, segundo este autor, “uma raça, para ser pura, deveria não sofrer mutações (absurdo biológico)” (Idem, p. 33).

As conclusões de Freire-Maia, de certo modo já foram superadas por pesquisas mais recentes, sem caráter eugenista, mas, ainda assim, o consultamos junto a outros autores, por encontrarmos nele alguns elementos que ajudarão a perceber a fragilidade da conceituação biológica do termo raça e da associação crítica realizada entre as categorias raça e ciência ao longo da história.

A respeito do isolamento, Strauss (1952) admite que esta seja a única condição em que uma cultura poderia ser, em determinados termos, considerada estacionária: a condição de isolamento. Ou seja, só o completo isolamento, a ausência total de relação, de troca e de convivência com outras culturas, poderia representar uma situação singular de cultura estacionária. Mas Freire-Maia assegurava que era a condição de isolamento, em maior ou menor grau, que conferia a uma população a condição de raça.

Cashmore acrescenta que:

Os antropólogos físicos costumavam falar de ‘raças’ humanas no sentido de subespécies, sendo o esquema mais comum a grande divisão tripartite da espécie humana em negróides, mongolóides e caucasóides (CASHMORE, 2000, p. 454).

Freire-Maia (1973), no entanto, classificava diferentemente: “as maiores: a indígena, a caucasóide, a negra e a mongol” (p. 27), visto que, para esse autor, “as raças podiam ser classificadas em ‘maiores’ e ‘menores’. Estas expressões, no entanto, definem relações de tamanho e, não de valor” (Idem).

Isso nos leva a concluir pela impossibilidade de se utilizar o sentido biológico de forma hegemônica ao se tratar da espécie humana, muito menos ainda para classificá-la.

O segundo significado apresentado por Cashmore, em oposição ao primeiro, se refere à “unidade da espécie humana” (Idem). De acordo com as pesquisas atuais, este vem a ser o sinônimo mais correto a ser aplicado, visto ter a espécie humana toda ela se originado na África, tendo se espalhado posteriormente para as diversas partes do mundo. Isso significa, por um lado, a existência de uma única raça e, por outro, que toda a população mundial é afrodescendente, não importando se residente na Europa, na América, na Ásia ou Oceania.

Comumente o termo afrodescendente é utilizado para se referir exclusivamente aos descendentes dos africanos trazidos ao Brasil na condição de escravos. Isso remete a uma incorreção na utilização deste termo para distinguir indivíduos por sua origem. Teixeira (2003), na sua obra Negro na Universidade, apresenta a expressão negrodescendente como equivalente. Em todo caso, afro-brasileiro ou afrodescendente são expressões que dizem respeito a todo brasileiro, independentemente de ser ou não descendente de escravizados.

Queremos discutir como o termo raça tem sido utilizado em função de um racismo preexistente ou para difundi-lo.

Embora o resultado dos estudos de Charles Darwin tenha servido para justificar e proliferar o racismo e a pejorativa desigualdade entre as “raças”,Richard Leakey (1997) apresenta um elemento intrigante da teoria evolucionista de Darwin, que teria sido rejeitada à época de sua apresentação à comunidade científica:

Os antropólogos não gostaram nada da sugestão de Darwin, porque a África tropical era olhada com desdém colonialista: o Continente Negro não era visto como um lugar apropriado para a origem de uma criatura tão nobre como o Homo sapiens (LEAKEY, 1997, p. 17).

Leakey, ainda nesta obra, vai confirmar – com base em fósseis encontrados também por sua família, após a obra A descendência do homem, de Charles Darwin –, esta afirmação que Darwin formulou, na época, sem a descoberta de fóssil humano para comprová-la, pois os fósseis existentes no período haviam sido descobertos em solo europeu.

Desse modo, Darwin é o primeiro a afirmar a origem africana da raça humana. Para Cashmore, o termo raça como classificação surge no começo do século XVI, na Inglaterra, embora possamos observar já na obra Os Trabalhos e os Dias, de Hesíodo,o mito das cinco raças4: ouro, prata, bronze, heróis e ferro, com direta influência dos mitos e narrações orientais, buscando mostrar não a superioridade de uma raça sobre outra, mas o movimento cíclico de declínio e ascensão de toda a humanidade.

O termo raça também aparece em Cashmore como sinônimo para nação e, segundo Freire-Maia, “não existe o ‘louro dolicocéfalo’” dos nazistas (1973 p.27), ou seja, nunca existiu a característica acentuada pelo nazismo para lhe autoconferir distinção enquanto nacionalidade.

De acordo com o dicionário Silveira Bueno (1989), dolicocéfalo é o tipo humano cuja largura de crânio tem quatro quintos do comprimento. No período colonial a Frenologia aferia a inteligência pelo tamanho do crânio: quanto maior o crânio, maior a inteligência (MAIO;SANTOS, 1996, p.19).

O quarto sinônimo para o termo seria “um grupo de pessoas socialmente unificadas numa determinada sociedade [...] grupo social [...] qualquer semelhança com o primeiro uso é pouco mais que coincidência” (p.454). O quarto sentido aqui exposto assemelha-se ao conceito de etnia enquanto “agregação consciente de pessoas unidas ou proximamente relacionadas por experiências compartilhadas” (Idem, p. 196), embora não deva haver correlação direta. E neste caso o elemento diferenciador é a opção subjetiva consciente de se querer pertencente a uma etnia: “A consciência de pertencer a um grupo étnico assume uma característica autoperpetuadora, que é passada de geração a geração” (Idem, p. 198).

No primeiro conceito, raça aparece como subespécie na “divisão tripartite da espécie humana em negróides, mongolóides e caucasóides” (Ibidem, p. 454); no quarto, no

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Esta obra de Hesíodo (poeta grego da primeira metade do século VIII a.C.) representa um documento precioso acerca das técnicas agrícolas e dos costumes populares rurais da época arcaica.

entanto, o fator primordial de classificação é a cultura em sua relação com os traços de nacionalidade.

Ter clareza da influência da conjuntura sobre o conceito de raça é importante, sobretudo quando este é resgatado como argumento para a federalização das cotas e aprovação ou não do estatuto da igualdade racial – Projeto de Lei nº. 6264/05.

Alguns autores, como Azevedo(2004), pedem o fim da utilização desse termo sob o risco da perpetuação do racismo, pois, para essa autora, foi o racismo que deu origem a raça; o movimento negro, porém, reafirma o uso político do termo para demarcar posição no debate acerca do racismo, no sentido de pleitear um conjunto de políticas de reparação. Desse modo, o termo raça seria utilizado no âmbito sociológico, e não biológico. Atualmente o debate sobre o termo raça tem sido polarizado e, comumente, e ao mesmo tempo de modo paradoxal, os autores que afirmam haver apenas uma raça o fazem para declarar a ausência de racismo no Brasil e, com isso, a desnecessidade de implantação das ações afirmativas em geral e das cotas em particular.

Muito embora o movimento negro opte pela utilização política do termo raça como distinção de características fenotípicas – representadas no tom de pele – para demarcar o lugar sócio-histórico de defesa dos negros, nós utilizamos o termo raça como sinônimo de espécie humana5 e o conceito de etnia para diferenciar povos e grupos como opção consciente, reservando o termo nação para a distinção de características territoriais. Portanto, não defendemos um sistema de cotas pautado na classificação racial, ou seja, fazendo uso do termo como classificação, mesmo verificando que há a utilização discriminatória desse conceito tanto nos discursos a favor como nos contrários, às cotas. Até aqui parece confusa nossa posição, mas esperamos esclarecê-la nas próximas seções.