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ACERCA DA MORTE E DO SUICÍDIO

2.2 APROXIMAÇÕES CONCEITUAIS SOBRE O SUICÍDIO

O suicídio pode ser considerado como um ato deliberado, intencional, de causar a morte a si mesmo, ou, em outras palavras, um ato iniciado e executado deliberadamente por uma pessoa que tem a clara noção (ou forte expectativa) de que dele pode resultar a morte, e cujo desfecho fatal é esperado (BERTOLOTE, 2012).

Chama-se de suicídio, assim, toda morte que resulta mediata ou imediatamente de um ato positivo ou negativo realizado pela própria vítima6, e que ela sabia que produziria esse resultado. A tentativa, por sua vez, também é o ato assim definido, mas interrompido antes de resultar em morte (DURKHEIM, 2014).

Dessa forma, concebe-se o suicídio como o mecanismo por meio do qual a vítima pratica atos com a finalidade exclusiva de acabar com a própria existência, obtendo-se êxito e alcançando sua morte ou sendo interrompida por atos alheios à sua própria vontade, não se consumando a morte (tentativa).

6 No presente trabalho, adotar-se-á a expressão “vítima” para referir-se às pessoas que praticaram

suicídio, seja ele consumado ou tentado. Justifica-se o uso de tal expressão a partir de dois motivos essenciais. Inicialmente parte-se do pressuposto histórico de que a questão do suicídio deve ser socialmente discutida, afastando-se os tabus que durante os séculos permearam tal fenômeno e superando-se a expressão “suicida”, que remeteria a uma condição imodificável. Dessa forma, busca- se com a expressão substitutiva humanizar o debate para que o mesmo se dê de forma científica e sem a influência de preconcepções inadequadas para a produção acadêmica. Em um segundo momento, prefere-se a expressão “vítima” para designar o sujeito que foi acometido de um mal passível de prevenção, equiparando-se o fenômeno do suicídio não apenas a uma doença, mas a um completo quadro de desfalecimento físico e psicológico totalmente inviável de ser combatido e superado exclusivamente pelas forças do indivíduo, necessitando o mesmo de ajuda e acompanhamento profissional.

Sob o ponto de vista fenomenológico, o suicídio materializa-se como um processo que se inicia com considerações mais ou menos vagas sobre o morrer (ideação suicida), as quais podem adquirir consistência, evoluir para elaboração de um plano (plano suicida) e culminar num ato suicida, cujo desfecho pode ser fatal (suicídio) ou não (tentativa de suicídio) (BERTOLOTE, 2012).

Apresente-se, nesse aspecto, que o suicídio, em geral, não se constitui como um ato isolado que leva a morte da vítima de imediato. Na verdade, a prática suicida se mostra como um complexo de atos pensados e praticados pela pessoa com vistas a alcançar sua morte, como ideações, planejamentos e práticas suicidas propriamente ditas. Assim, sob um aspecto social e comunitário, é possível que as ideações ou planejamentos suicidas venham a ser identificadas pelo agrupamento no qual a vítima se insere, fazendo-se possível a implementação de medidas preventivas à sua consumação.

De um ponto de vista histórico-teológico, o suicídio era condenado pela lei judaica, impondo que as vítimas fossem enterradas de modo apartado dos demais mortos, sinalizando aqueles que desistiram de viver; segundo o budismo, atentar à própria vida seria o mesmo que afrontar ao primeiro preceito de tal religião, embora a mesma não o condene de forma voraz; a Bíblia Sagrada não condena expressamente a morte autoprovocada, embora a Igreja Católica tenha considerado no século VI o suicídio como um pecado mortal e imperdoável, o que foi seguido por religiões de matrizes cristãs, como a católica romana e os protestantes das mais variadas denominações; o alcorão, por sua vez, condena consistentemente a prática do suicídio, considerando-a como uma heresia a destruição de algo criado por Alá (BERTOLOTE, 2012).

Sobre a influência da religião no processo de discussão acerca do suicídio, afirma Neury José Botega (2015, p. 40) que “muitas crenças e comportamentos influenciados pela religião e pela cultura aumentam o estigma em relação ao suicídio e podem desencorajar a procura por assistência médica”.

Sobre esse processo de estigmatização, Pinhal de Carlos e D'Agord (2016, p. 52) apresentam as dificuldades em se discutir a temática do suicídio em âmbito social diante de um histórico de condenações morais acerca de tais práticas:

As múltiplas interpretações e versões para um suicídio ocorrem quando o saber torna-se impotente, o que faz com que o enigma aumente. O enigma com relação ao suicídio sempre permanece porque ele está relacionado com o irredutível do real, uma vez que há algo aí que escapa da palavra.

É por isso que o suicídio é tomado como um tabu, algo que é proibido, interdito por ser considerado impuro. Todavia, fala-se sobre o suicídio, já que se tenta dar conta do horror que ele evoca e, ao mesmo tempo, do desejo, desejo de saber que é sustentado pela impossibilidade. Assim, como um quadro, o suicídio também pode fascinar e provocar a irrupção do olhar.

Assim, ressalta-se que, conforme sabido, a discussão sobre o suicídio, inclusive quanto a viabilidade de seu processo preventivo, causa certo estranhamento social a partir da ideia de que a morte autoprovocada ainda se constitua em um tabu a ser superado, em especial para a inclusão da problemática no âmbito da saúde coletiva. É possível afirmar, nesse ponto, que a própria condenação da prática suicida pelas mais variadas religiões se constituiu, no transcorrer da história, como um dos elementos impeditivos para a realização de um debate social que vise a implementação de políticas de prevenção ao suicídio.

Pinhal de Carlos e D'Agord (2016, p. 52) afirmam a existência de uma valoração comunitária do suicídio como algo obsceno, o qual não deve ser discutido:

O suicídio, enquanto obsceno, é algo que molesta, que não se deixa encadear com a morada familiar. Molesta pela impossibilidade de se dar conta desse ato. O suicídio convoca o olhar, contudo o rechaça em seguida, pois, como sustentar o olhar diante da exibição de algo que não se conseguiria ver? O suicídio presentifica o que não se pode representar, que é a própria morte. Logo, o espectador olha esforçando-se para não ver, para não ver o nada que é velado. O obsceno é o que permite jogar com a morte mediante imagens. Essa imagem obscena do suicídio remete ao que não está aí, ao que não tem imagem, logo ele evoca a falta. Diante do suicídio, há uma necessidade de ver, de saber, de buscar a palavra. “Por quê?”, “Como?”. O que resta é, diante da ruptura absoluta, da ausência da cena, cobrir esse horror com uma tela. Tela essa que encobre o vazio, vela o encontro com a origem.

Sob um aspecto histórico, o termo “suicídio” foi criado em 1643 pelo médico inglês Thomas Browne, primeiramente em grego (autófonos), traduzido para o inglês em 1645 como “suicide”. Além de nominar o fenômeno com a palavra que passou a ser utilizada em praticamente todo o mundo ocidental, a obra abriu as portas para que o suicídio passasse a ser alvo de interesse da medicina, em especial para a psiquiatria (BERTOLOTE, 2012).

Em 1801, o psiquiatra francês Philippe Pinel (1745-1826) afirmou que haveria uma ligação entre o suicídio e a lesão de determinados órgãos, em especial o cérebro, o que causaria uma sensação dolorosa pelo simples fato de existir. Em 1838, Jean-Étienne Esquirol (1772-1840), considerou todos aqueles que

cometiam suicídio como mentalmente insanos. Em 1845, Claude Bourdin (1815- 1886) afirmava que o suicídio sempre era uma doença e sempre um ato de insanidade mental. Finalmente, embora diante de uma obra vastíssima, Sigmund Freud (1856-1939) se dedicou relativamente pouco ao estudo do suicídio, sendo que no contexto de sua teoria psicanalítica, o suicídio era entendido como o resultado do predomínio do impulso de morte sobre o impulso vital, o clímax do autoerotismo negativo e um ato de defesa do ego normal contra a psicose (BERTOLOTE, 2012).

A prática suicida, assim, tem sido interpretada das mais variadas formas no decorrer dos séculos, embora tenha havido, inicialmente, uma compreensão geral de que o fenômeno estaria relacionado, necessariamente, a um aspecto mental, ou seja, apenas cometeria suicídio aquelas pessoas que apresentassem distúrbios psíquicos insolúveis.

Embora se atribua à Émile Durkheim a quebra do paradigma médico – o qual relacionava necessariamente o suicídio à loucura – para se compreender o suicídio, trazendo-se o elemento social que até então se mostrava ausente, foi Karl Marx, em obra pouco analisada e difundida, que abordou as primeiras ideações de que a prática suicida poderia estar relacionada, também, a elementos sociais alheios às doenças de ordem mental.

Em ensaio intitulado “Sobre o suicídio”, Marx descreve, ainda no ano de 1846, o fenômeno da morte autoprovocada como algo que não estaria originariamente vinculado de forma definitiva às doenças de ordem mental. Karl Marx (2006, p. 24), ao analisar quatro casos de suicídio da época, explica que o fenômeno poderia ter diversas causas, para além dos problemas de ordem individual, dentre as quais destaca:

O número anual dos suicídios, aquele que entre nós é tido como uma média normal e periódica, deve ser considerado um sintoma da organização deficiente de nossa sociedade; pois, na época da paralisação e das crises da indústria, em temporadas de encarecimento dos meios de vida e de invernos rigorosos, esse sintoma é sempre mais evidente e assume um caráter epidêmico. A prostituição e o latrocínio aumentam, então, na mesma proporção. Embora a miséria seja a maior causa do suicídio, encontramo-lo em todas as classes, tanto entre os ricos ociosos como entre os artistas e os políticos. A diversidade de suas causas parece escapar à censura uniforme e insensível dos moralistas.

As doenças debilitantes, contra as quais a atual ciência é inócua e insuficiente, as falsas amizades, os amores traídos, os acessos de desânimo, os sofrimentos familiares, as rivalidades sufocantes, o desgosto de uma vida monótona, um entusiasmo frustrado e reprimido são muito seguramente razões de suicídio para pessoas de um meio social mais abastado, e até o próprio amor à vida, essa força enérgica que impulsiona a

personalidade, é frequentemente capaz de levar uma pessoa a livrar-se de uma existência detestável.

Veja-se que o autor indica causas sociais que poderiam remeter à prática suicida, deixando de lado o elemento médico até então dominante nas discussões que permeavam os estudos acerca do suicídio. Embora traga a miséria humana como a principal causa para o suicídio, o autor apresenta que as influências de uma sociabilidade poderão se fazer presentes em todas as classes. É bem verdade que em tal obra Marx tenha se dedicado menos aos aspectos essenciais do próprio suicídio, voltando seus escritos à promoção de uma crítica radical da sociedade burguesa como forma de vida “antinatural”, sendo que o suicídio aparece como sintoma de uma sociedade doente e que necessita de uma transformação radical.

Sobre a influência daquela sociedade na prática do suicídio, bem como da criação de uma visão pejorativa em face desse fenômeno, Marx (2006, p. 26) descreve:

Tudo o que se disse contra o suicídio gira em torno do mesmo círculo de ideias. A ele são contrapostos os desígnios da Providência, mas a própria existência do suicídio é um notório protesto contra esses desígnios ininteligíveis. Falam-nos de nossos deveres para com a sociedade, sem que, no entanto, nossos direitos em relação a essa sociedade sejam esclarecidos e efetivados, e termina-se por exaltar a façanha mil vezes maior de dominar a dor ao invés de sucumbir a ela, uma façanha tão lúgubre quanto a perspectiva que ela inaugura. Em poucas palavras, faz-se do suicídio um ato de covardia, um crime contra as leis, a sociedade e a honra. Como se explica que, apesar de tantos anátemas, o homem se mate? É que o sangue não corre do mesmo modo nas veias de gente desesperada e nas veias dos seres frios, que se dão o lazer de proferir todo esse palavrório estéril.

Como já adiantado, o autor apresenta uma verdadeira crítica social a partir do número de suicídios da época, fazendo com que a problemática se desloque para as relações sociais, especialmente entre Estado e cidadãos, de forma que a imposição de deveres sem a prévia garantia de direitos seriam uma das chaves para se compreender a morte autoprovocada. Assim, encerra afirmando que a prática suicida não pode ser condenada legal ou moralmente pela sociedade, na medida em que o desespero humano causado pela sociedade da época poderia ensejar o suicídio em toda uma população explorada e sem condições efetivas de vida.

Após o enfrentamento do suicídio enquanto uma doença durante os séculos XVII e XVIII efetiva-se no século XIX, por meio da obra de David Émile

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