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Aproximações de pontos visuais e cênicos ou a liberação da arte

Nas artes visuais, o declínio da pintura figurativa associa-se à transferência da objetivação para a impressão – Impressionismo. Neste momento é possível observar a dissolução dos objetos em manchas de cor e a representação usual das coisas se confundir entre reflexos luminosos.

A partir daí, o objeto representado vai perdendo cada vez mais a significação, e como consequência, o quadro, como objeto, ganha importância. Como exemplo é possível ressaltar o momento em que Piet Mondrian retira da tela todos os vestígios do objeto, não apenas a figura, mas também a cor, e sobra-lhe então a tela em branco que ressaltará a presença material da tela e a transformará no novo objeto da pintura.

Se para um pintor tradicional a tela em branco representava o suporte material sobre o qual ele representava espaços, para Mondrian a tela em branco é uma alternativa que tem como principal função a transcendência e a realização da obra no espaço real. Vinculada a esta ideia aparece a problemática da moldura, que no primeiro momento atua como um meio- termo entre a ficção e a realidade, e em Modrian esta mesma moldura perde o sentido já que não se trata mais de criar um espaço metafórico protegido do mundo, e sim de utilizar-se do espaço real para criar uma nova significação.

Enquanto os europeus investigavam problemáticas estéticas da pintura no próprio quadro, os artistas americanos (Brasil, México, Estados Unidos etc.) expandem suas experiências para outros domínios ou gêneros. Se a pintura moderna não alcançou nas Américas a profundeza ou a transcendência puramente estética, em termos visuais e formais, como na Europa, conforme Mário Pedrosa (1981), é nos países americanos onde foram feitas as tentativas mais audaciosas de restaurar uma dignidade que insere o homem e o humano nos processos artísticos dos quais ele havia sido excluído.

Os artistas mexicanos ao constatarem as limitações da pintura de cavalete foram os primeiros a experimentar alargamentos no campo pictórico quando dirigiram sua atenção ao afresco, como anuncia Mário Pedrosa (1981). Na tentativa de resgatar a participação da

44 Manifesto Neoconcreto, texto republicado em: ―Neoconcretismo: vértice e ruptura do projeto construtivo brasileiro, de Ronaldo Brito.

88 sociedade no evento da arte, o muralismo mexicano, pintura realista e monumental, liga-se ao contexto social e político do país. O movimento muralista mexicano, baseado nos ideais da Revolução Mexicana (1910-1920), agitou o interesse dos artistas e despertou a necessidade de ir para a rua. Os ateliês são abandonados e os artistas saem às praças públicas em busca de muros para pintar. O programa de pinturas de murais, narrando a história do país e exaltando o fervor revolucionário do povo, adquire lugar de destaque no projeto educativo e cultural do período, conforme informação da ―Enciclopédia de Artes Visuais‖ do Itaú Cultural45.A arte

passa a ocupar espaços públicos, sai dos museus e das galerias para resgatar um espaço mais próximo do cotidiano. Lugares de trânsito onde a arte torna-se coletiva ao romper com o individualismo da pintura de cavalete. Os principais muralistas foram Diego Rivera, José Clemente Orozco e Davi Alfaro Siqueiros que pintaram murais em vários e diferentes lugares da cidade, como escolas, palácios e igrejas. Vinculados à arquitetura e criando o efeito de um novo espaço em um mesmo lugar, os murais – presentes também em civilizações como a grega, a romana e as pré–colombianas – surgem neste período com um caráter social e político que anunciava uma arte nacional popular. O intuito era que a arte tivesse um alcance social e fosse acessível a todos.

Deste modo, a revolução estética explorada no quadro é extravasada pelos artistas americanos que expandem suas ações e rompem com a unidade de superfície da pintura- quadro em um regresso que Pedrosa (1981) aproxima da maneira como os primitivos tratavam a pintura.

Levando-se em conta que os principais interesses do muralismo mexicano são as questões ideológicas e políticas que preveem a mobilização social, interessa-me aqui destacar o impulso fundamental que desloca a arte dos espaços fechados e propõe um encontro com o espaço cotidiano e de circulação das pessoas, favorecendo o contato com o espectador em um lugar que não é aquele da instituição.

Após esse breve comentário sobre a ação dos artistas mexicanos, que influenciaram diretamente os movimentos artísticos brasileiros em suas investidas de criação em espaços que ultrapassam as bordas das molduras, como o Neoconcretismo, é importante destacar que a questão de romper com a moldura na pintura não é uma preocupação meramente técnica ou física. O que se pretende é libertar-se de convenções, libertar-se para reencontrar o instante

45 Site: www.itaucultural.org.br

http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic/index.cfm?fuseaction=termos_texto&cd_verbete=3 190. Acessado em 20.10.2010

89 em que a ―(...) obra aparece pela primeira vez livre de qualquer significação que não seja seu próprio aparecimento‖. (Gullar, 1959).

A partir das considerações acima é possível apresentar um panorama de mudanças ocorridas no teatro que coincidem com a ruptura de limites, regras e padrões. Pretende-se liberar a arte e provocar encontros com o espectador. Assim como no retrospecto anterior referente às artes visuais, é possível de modo bastante sintético e geral destacar pontos de transformação a partir do final do século XIX, quando a doutrina naturalista libera a dramaturgia de regras baseadas na ―Poética‖ de Aristóteles provocando alterações significativas na representação e direção cênica.

Inspirado no ideal naturalista, Constantin Stanislavski (1863-1938), ator e diretor teatral russo, investiga e sistematiza um ―método‖ para a preparação dos atores que revoluciona as técnicas de interpretação e as investigações sobre a arte do ator. Para o diretor, em primeiro lugar o ator precisa aprender a dominar-se, isto é, a localizar as suas tensões e controlá-las para que não haja a perda da sensibilidade. Após as sistematizações e técnicas referentes à preparação dos atores sugeridas por Stanislavski no Teatro de Moscou, novas experimentações práticas e teóricas aparecem, de um modo geral, enquanto afirmação ou negação das propostas deste diretor.

A evolução do naturalismo/realismo proposto por Stanislavski tem como consequência o aparecimento de novas tendências que modificaram substancialmente as práticas teatrais, que já não se interessavam em esconder o jogo que se estabelecia em cena. Ao público são revelados os ―segredos‖ da estrutura teatral, e este é então convidado e a se aproximar deste pacto sem a proteção de uma ―quarta parede‖, que exercia a função de incentivar a ideia da cena enquanto realidade paralela e separada do público.

O teatro passa a se interessar por movimentos que conduzem a cena teatral como acontecimento capaz de estabelecer uma comunicação direta e viva. Traços da obra antes fechada e focada em si escapam favorecendo contatos entre realidade e ficção, entre arte e vida, sujeito e objeto etc. Artistas e público se tocam. Toques visíveis e invisíveis que proporcionam o encontro, como pretendia o ator e diretor francês Antonin Artaud.

Tais mudanças alteram eixos e áreas, e fazem oscilar os campos. A arte não está mais presa a algum suporte definitivo e delimitado, ela percorre caminhos, aciona o espectador e propõe novas experiências.

Levando-se em consideração que no panorama da arte hoje o teatral escapa ao teatral, que a dança escapa à dança e que as artes visuais escapam às artes visuais, é possível afirmar

90 no foco de interesse desta dissertação que há uma revisão de conceitos e estruturas. As verdades absolutas e inflexíveis são transformadas em condições que estão sempre em diálogo com diferentes contextos. As áreas, os campos e as linguagens se influenciam mutuamente. O que acontece no teatro reverbera na dança, o que acontece nas artes visuais reverbera no teatro, por exemplo. E assim a arte se movimenta, transita e não se limita a um suporte específico. As questões subjacentes ao universo artístico tocam na vida e em problemáticas que não se restringem aos aspectos visíveis. Os lugares investigados pelas artes são muito mais zonas que preveem movimentos, percepções, deslocamentos, deslizamentos e trânsitos do que espaços que se configuram em plataformas fixas, estáveis e reconhecíveis logo à primeira vista. Não é o formato que assegura a experiência, mas a ruptura com relações previsíveis que impulsiona o sujeito para novas conexões e experiências.

Neste ponto é possível aproximar o Neoconcretismo do Tanztheater. Embora tais tendências se manifestem em diferentes lugares, o Neoconcretismo nas artes visuais e o Tanztheater nas artes cênicas, existe uma raiz que parece comum a ambos – a arte muito mais como processo e experiência do que como forma e compreensão intelectual. O caráter processual destas práticas, ou movimentos, acompanha as mudanças que marcam as ações de vanguarda do início e meados do século XX.

No Neoconcretismo e no Tanztheater a força propulsora do fenômeno da arte é o principal foco de interesse das investigações que questionam padrões tradicionais e pautados em normas definidas.

Pretende-se resgatar o instante primeiro do ato. O momento em que as coisas não estão separadas umas das outras, mas em constante comunicação possibilitando uma variedade enorme de combinações, entendimentos e sentidos. Aliás, o sentido não está mais separado da experiência direta, do momento em que o espectador é inserido em uma ação. A participação direta ou indireta do espectador em um evento artístico prevê a produção de um sentido particular que nasce da sua relação com os elementos sugeridos. O intuito da arte, neste contexto, não é o de transmitir uma mensagem, mas provocar diferentes relações no espaço concebido como ambiente de produção artística. O espaço da metáfora simbólica se expande e se transforma no espaço da criação e das afecções, como sugere Deleuze.

91 ATO 4 – Trajetos do espectador nas travessias de Lygia Clark e Pina Bausch

O trabalho não mais se interromperia na finitude da espacialidade do objeto; realizava-se agora como temporalidade numa experiência na qual o objeto se descoisifica para voltar a ser um campo de forças vivas que afetam o mundo e são por ele afetadas, promovendo um processo contínuo de diferenciação. (ROLNIK, 2007)

A partir das considerações e colocações dos atos anteriores sigo com apontamentos e investigações sobre possíveis trajetos do espectador em percursos e práticas de Pina Bausch e Lygia Clark.

A compreensão da obra como um ambiente ou paisagem que pressupõe a habitação do espectador através de forças que se cruzam e apagam as bordas que separam objeto e sujeito, é o principal ponto de contato entre as práticas de Lygia Clark e Pina Bausch, na perspectiva desta pesquisa. Propostas que rompem com paradigmas da representação e promovem movimentos e tensões entre obra e espectador.

Promover o acontecimento da obra na expansão de um plano que reverbera em todas as direções e que convida o espectador a uma experiência particular de movimento é o eixo fundamental que sustenta esta dissertação. Tal eixo pode ser observado nos diferentes vínculos entre obra e espectador e nas movimentações sugeridas neste encontro. Trafegar pela quarta dimensão pode ser, um última instância, o efeito provocado pelo toque entre sujeito e objeto.