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De que modo as travessias propostas por Lygia Clark favorecem a ação e a participação do espectador?

O primeiro aspecto é apresentado no subcapítulo Travessia A, a partir da transferência de interesse do quadro para o espaço como lugar de interação e movimento. A pintura atravessa a moldura e a arte acontece em intervalos que aproximam arte e vida. No subcapítulo Travessia B aparecem as propostas sensoriais da artista e a presença do espectador como principal agente do fenômeno artístico. O corpo é aqui o principal alvo de investigação em um campo que tradicionalmente esteve muito mais focado em questões relativas à visualidade.

Travessia A: Crise da representação ou quando a pintura transborda.

Lygia Clark extravasa limites e localiza a obra na relação, em uma zona liminar. Aos poucos a moldura é incluída ao espaço pictórico do quadro e as bordas sugerem novas organizações espaciais. No percurso de abertura da área fechada do quadro, a moldura é um dos principais focos orientadores desta expansão. Num primeiro momento as fronteiras entre quadro e moldura são amenizadas por uma convenção cromática, na qual a área da moldura é preta e a área da tela é verde, como menciona Ferreira Gullar (1980). No momento seguinte, o preto da moldura é transferido para dentro da tela, ou do quadro, e a cor da tela aparece na moldura, invertendo deste modo os acordos de limitações, áreas e fronteiras. ―O espaço pictórico está agora fora da moldura, liberto dela.‖ (GULLAR, 1980, p.10).

Prestes a invadir o espaço, havia ainda uma questão que deveria ser superada nesta trajetória: o retângulo dentro da superfície, que traz para si toda atenção e torna-se o centro de referência do olhar, impede a articulação da obra com o entorno, ou com a arquitetura, e deveria ser eliminado. É neste momento que a artista destrói esse ―centro‖ e restaura o reencontro da superfície com um espaço livre de delimitações convencionais. Neste período, há um esvaziamento do espaço pictórico e a atenção da artista se volta para o espaço arquitetônico. ―É então para a parede, para a superfície das portas, para o espaço arquitetônico

50 enfim, que a pintura de Lygia Clark, livre do quadro, quer agora se transferir.‖ (GULLAR, 1980, p.11).

Ferreira Gullar no texto ―Lygia Clark: uma experiência radical (1954-1958)‖24 alerta

para o fato de que os quadros da artista não têm moldura de qualquer espécie, ―não estão separados do espaço, não são objetos fechados dentro do espaço: estão abertos para o espaço que neles penetra e neles se dá incessante e recente: tempo.‖(GULLAR, 1980, p.7). O ambiente penetra, participa e faz-se lugar de experiência e acontecimento da obra.

Gullar faz considerações sobre o ato de pintar nos procedimentos da artista:

Pintar para Lygia Clark não é mais resolver uma área dada, dividindo-a em planos e pintando esses planos; não é tampouco inscrever uma ideia pictórica num espaço preexistente, limitado ou ―ilimitado‖. Não existe mais para esta artista qualquer separação entre espaço e obra, entre o espaço material – a tela – e o espaço virtual futuro – a obra. Porque o ―quadro‖ (a tela) não preexiste ao ato de pintar, porque Lygia Clark constrói simultaneamente o quadro como objeto e como expressão, ela trabalha diretamente sobre o espaço real e o transforma sur le champ em pintura. Daí porque os seus quadros são esses objetos vivos, ambíguos, acionados pelo movimento constante de uma metamorfose espacial que, nem bem se faz, já se refaz: absorve, transforma e devolve o espaço, incessantemente. (GULLAR, 1980, p.7-8)

A superfície é explorada pela artista como lugar da realidade imediata, espaço percebido sem o apoio de representações ou alusões a espaços outros. ―Trata-se de uma corajosa tentativa de dar na própria experiência perceptiva a transcendência dessa experiência.‖ (CLARK, 1980, p.8). O quadro é então absorvido e a obra é criada pelo próprio ambiente. ―Da integração do quadro no espaço arquitetônico, passa à integração do quadro no espaço mesmo, em pé de igualdade com a arquitetura.‖ (CLARK, 1980, p.8). A moldura, que costuma separar o espaço real do ficcional, perde sua função à medida que o quadro, ou a obra, se lança ao espaço e confunde os limites entre sujeito, objeto e espaço. Nas palavras de Ferreira Gullar,

(...) liberto o espaço preso no quadro, liberto a minha visão, e como se abrisse a garrafa que continha o Gênio da fábula, vejo-o encher o quadro, deslizar pelas superfícies mais contraditórias, fugir pela janela para além dos edifícios e das montanhas e ocupar o mundo. É a redescoberta do espaço. (GULLAR, PEDROSA, CLARK, 1980, p.9)

Na trajetória de Lygia Clark é possível mapear dois importantes períodos que se relacionam com suas abordagens do espaço pictórico tradicional e do espaço das espessuras do real. Em seus primeiros trabalhos, o quadro foi utilizado como suporte para denunciar

51 problemáticas referentes à representação, às divisões e criações metafóricas confinadas em um lugar que não se relaciona diretamente com o entorno. ―A sucessão de relações que Lygia Clark vai estabelecendo entre tela e moldura, cor e espaço, é como a tateante decifração de um enigma, a procura do suporte essencial do quadro – núcleo puro da pintura.‖ (CLARK, 1980, p.9). A procura pelo núcleo orientador que fomenta a existência do quadro leva à revelação do impulso criador que está no ato de pintar. Os elementos pictóricos vão sendo eliminados e a superfície avança pelo espaço. Real, ficcional, sujeito, objeto e espaço se misturam. A residência da obra amplia-se para o mundo e para os possíveis vínculos com a arquitetura e os elementos que configuram diferentes ambientes.

É neste momento que a artista descobre a linha orgânica ou a linha de encontro – que permite junções entre espaços que são ditos como separados, como a linha entre a tela e a moldura, entre duas tábuas, no assoalho, e entre um móvel embutido e a parede, conforme exemplos de Ferreira Gullar (CLARK, 1980, p. 11). E deste ponto em diante, Clark abandona a tela e experimenta novas possibilidades para o quadro, como a conjugação de placas ou pedaços de madeira cortados. Quando as placas apresentam cores iguais e se tocam a linha de encontro é absorvida pelas cores. Porém, quando as cores são diferentes a linha aparece como elemento da estrutura do quadro.

Lygia Clark se interessa pela arquitetura e pelos encontros possíveis entre o quadro e o ambiente. A pintura que antes repousava sobre o quadro, se movimenta percorrendo novos caminhos. Surge um lugar de tensão entre o quadro e o mundo.

Clark se inspira em Piet Mondrian (1872-1944), artista que se preocupou com a integração da arte no cotidiano, e experimenta relações com um quadro que aparece livre de representações e significações. Este isolamento semântico esvazia o espaço pictórico e o quadro como objeto material tenderá a ser integrado ao entorno.

O quadro de Clark está deserto e é pela linha orgânica, pelas brechas e espaços abertos que ele ganhará vida. Linha-espaço. Vitalidade orgânica. Até chegar à superfície toda branca, onde as ―linhas penetram profundamente‖ (CLARK, 1980, p.12). ―Diante daquela área viva, a percepção atinge um limite de ambigüidade e precisão: o espaço se faz veículo do tempo e o tempo se revela.‖ (CLARK, 1980, p.12).

E ainda sobre a linha orgânica é possível dizer que ela foi a primeira tridimensionalidade descoberta pela artista. Esta linha recebe diferentes nomes, como linha espaço, nas Superfícies

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Unidades; linha de sobreposição, em Contra-Revelos; linha dobra, em Casulos; dobradiças, em Bichos e torção, em Trepantes e Obras-Moles. (Dirce)

No momento seguinte, a artista passa a se interessar mais pelo próprio tempo da obra do que pela revelação do tempo através da obra. ―Atualidade plena que identifica o trabalho criador com a obra criada, que faz da obra a presença integral, sem resíduo, de um fato que não acaba nunca de acontecer.‖ (CLARK, 1980, p.12). Enquanto o quadro deixa de ser suporte de uma representação e perde um sentido que a ele foi dado, o movimento, a ação e a interação passam a mobilizar o fenômeno da arte. A relação do artista com a sua produção e o vínculo do espectador com o acontecimento artístico ganham sentido à medida que o quadro, como lugar fechado de representação, perde sentido.

A abordagem do espaço investigada por Lygia Clark pretende alterar perspectivas de um lugar determinado e estável e anunciar interações entre espectador e elementos do meio ambiente. Seus lugares são vias de ação e interação - espaço configurado por movimentos. A obra ganha espaço, se faz espaço, e se torna, ela mesma, ambiente ou lugar de experiência e interação. Espaço que inclui o espectador ao acionar seu corpo em sensações, forças e percepções. Movimentos que desenham redes, conexões e que mobilizam assim o fenômeno artístico.

Das incursões dos trabalhos de Clark pelo espaço antes destinado ao público, nascem as proposições sensoriais que serão responsáveis pela grande notoriedade da artista. É quando as linhas fogem para o espaço que novas experiências são investigadas e inaugura-se a fase sensorial da artista.

Travessia B. um corpo, um espaço ou o corpo como lugar de experiência.

Na trajetória de Lygia Clark é possível observar que seus trabalhos seguem uma direção que coincide com a perda de identidade da obra de arte como unidade ou objeto. O que vale dizer que suas propostas caminham em uma direção que irá desmistificar a ideia do objeto de arte como elemento dissociado do espaço onde ele aparece. Clark segue então um movimento de integração e fusão entre arte, vida, sujeito, objeto e espaço. Tal impulso parece ter início no momento em que seu quadro absorve a moldura para integrar-se no mundo. Nas etapas seguintes a inserção do corpo, como espaço de experiências, é o foco central das propostas da artista.

O primeiro trabalho de Clark pautado no ato do espectador e em sua corporeidade é

53 reverberação do acontecimento da arte. O objeto artístico não está mais fora do corpo, mas passa a ser o próprio corpo em movimento e em experiência.

―Caminhando‖ é o nome que dei à minha última proposição. Daqui em diante atribuo uma importância absoluta ao ato imanente realizado pelo participante. O ―Caminhando‖ leva todas as possibilidades que se ligam à ação em si mesma: ele permite a escolha, o imprevisível, a transformação de uma virtualidade em um empreendimento concreto. (CLARK, 1980, p.25)

De acordo com Lygia Clark (1980), a proposição se dá do seguinte modo: pegar uma dessas tiras que envolvem um livro, cortá-la em sua largura, torcer e colar de modo que se obtenha uma fita de Moebius. Pegar uma tesoura, cravar uma ponta na superfície e cortar continuamente no sentido do comprimento. O caminhante, ou aquele que executa a proposta, deve prestar atenção para não recair no corte já feito, o que dividiria a faixa em dois pedaços. Após a primeira volta na fita de Moebius, o caminhante deve cortar à direita e cortar à esquerda do corte já feito. O sentido encontra-se no ato de fazer. O ato surge como processo e produção de arte.

Nesta proposição não há um objeto à priori, mas sim uma proposta, uma potencialidade que favorece a criação de um percurso particular para cada participante, onde a noção de escolha é decisiva; o modo que cada pessoa encontrará para cortar a fita de papel, os caminhos escolhidos enquanto cortam o papel. Sujeito e objeto formam-se mutuamente. Espectador e obra tornam-se indissociáveis, superando referenciais dualistas comuns no contexto da arte como objeto ou coisa exposta à apreciação do público.

Quando o público é convidado a cortar uma tira de papel, a obra é o próprio ato de cortar, a ação e o foco no instante presente, enquanto o movimento se desenvolve. Não há uma obra a priori, mas um percurso, um deslocamento e a criação de um espaço de intensidades na relação do corpo com os materiais, neste caso papel e tesoura. O participante é engajado numa atividade que solicita sua presença e atenção. Seu corpo afeta e é afetado. A sequência de ações, desde pegar a tesoura até cortar as tiras de papel, são gestos que engajarão o participante ao instante presente de desenvolvimento e produção do evento artístico. Os percursos e os desdobramentos possíveis desta ação são os principais focos de interesse desta proposição. E de acordo com a artista: ―Se utilizo uma fita de Moebius para esta experiência, é porque ela contrasta com nossos hábitos espaciais: direita/esquerda; avesso/direito etc. Ela nos faz viver a experiência de um tempo sem limite e de um espaço contínuo.‖ (CLARK, 1980, p.26)

54 Clark pontua ainda que não há nada antes e nem depois de Caminhando. Apenas o ato é capaz de revelar a sua existência e transitoriedade. Para a artista, o sentido de caminhando se deu na seguinte experiência:

(...) atravessando o campo de trem, senti cada fragmento da paisagem como uma totalidade no tempo, uma totalidade do ser, de se fazer sob meus olhos, na imanência do momento. O momento era a coisa decisiva. Uma vez também, contemplando a fumaça de meu cigarro: era como se o próprio tempo fizesse seu caminho, sem cessar, se aniquilava, se refazia continuamente... Eu já provei isso no amor, nos meus gestos. E cada vez que a expressão ―Caminhando‖ surge na conversa, ela suscita um verdadeiro espaço e me integra no mundo. Eu me sinto salva. (CLARK, 1980, p.26)

Caminhando, 1964

Sobre o ato ou o instante que marcam a proposição Caminhando, a artista faz as seguintes considerações:

O instante do ato não é renovável. Ele existe por si próprio: o repetir é lhe dar uma outra significação. Ele não contém nenhum traço da percepção passada. É um outro momento. No momento mesmo em que ele se desenrola, ele já é uma coisa em si. Só o instante do ato é vida. Por natureza, o ato contém em si mesmo seu próprio excesso, seu próprio vir-a-ser. O instante do ato é a única realidade viva em nós mesmos. (CLARK, 1980, p.27)

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Caminhando não é um objeto, mas a proposta de uma ação. Ação esta que pode alterar a relação que o participante tem com o mundo. A própria artista lança esta reflexão: ―Eu me pergunto se após a experiência do Caminhando não se toma melhor consciência de cada um dos gestos que fazemos – mesmo os mais habituais.‖ (CLARK, 1980, p.27).

Clark (1980) diz ainda que viveu um ritual muito significativo na primeira vez em que cortou Caminhando. Em suas próprias palavras:

E eu desejo que esta mesma ação seja vivida com a máxima intensidade pelos participantes futuros. É preciso que ela seja puramente gratuita e que ninguém procure saber – quando estiver cortando – o que vai ser cortado a seguir ou o que já foi talhado antes. Aí é preciso concentração e, talvez uma vontade ingênua de apreender o absoluto de fazer o ―Caminhando‖, conservando a gratuidade do gesto. (CLARK, 1980, p.27)

A artista dá ênfase ao instante presente, ao ato, ao momento de ação e interação do corpo. Momento no qual o pensamento se dá na ação. Pensamento e corpo acontecendo ao mesmo tempo. O ato surge como um percurso criado pelo participante. Percurso este definido pela sua ação, pelo engajamento e interação de seu corpo no evento. Sua ação se manifesta como pensamento que só pode pensar enquanto corpo e relação. De acordo com Lygia Clark:

Com Nietzsche todas as projeções religiosas do homem em direção ao exterior são rejeitadas, o sentimento religioso se introverteu: o homem é divino. O mesmo acontece na arte: a proposição, antigamente percebida pelo espectador como exterior a ele, encerrada em um objeto estranho, é agora vivida como parte dele mesmo, como fusão. Todo homem é criador. (CLARK, 1980, p. 29)

Sob esta perspectiva, a obra surge como potencialidade de interação que aciona e vincula o espectador, ou o participante. Não existem diferentes planos ou mediações, tudo se dá na ação e no movimento. A obra não está limitada a um espaço fechado cumprindo regras e se apresentando ao público, ela acontece no espaço compartilhado no qual o espectador transita livremente enquanto cria percursos e sentidos. O sujeito é o grande responsável pelos seus atos, pelas suas transformações e experiências. E segundo Clark: ―O homem deve tomar posição em face dele mesmo, com toda independência que adquiriu em sua terrível solidão.‖ (CLARK, 1980, p.29)

Sob esta perspectiva, o corpo como matéria flexível torna-se o lugar da experiência e interessa cada vez mais a artista. O lugar das experiências de Clark coincide com os movimentos do corpo, com trajetórias particulares que levam a instâncias que não podem ser classificados ou delimitados em categorias. De acordo com Maria Alice Milliet, Lygia Clark:

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Recusa a classificação em categorias estéticas ou estilísticas, porque incompatíveis com a sua poética de desrepresentação, de superação dos suportes, de deslocamento do privilégio do olhar para uma ampla percepção sensorial, de integração do corpo na arte e da arte no corpo coletivo. ( MILLIET, 1992, p.14)

As interações da obra no espaço aproximam elementos que pareciam distantes e dissociados e promovem o início da fase sensorial da artista. Para discorrer sobre esta fase focarei em dois momentos, assim denominados pela artista: Nostalgia do Corpo, quando o sujeito entra em contato com o seu próprio corpo a partir de objetos para a sensibilização; e

Corpo Coletivo, quando os elementos ou ambientes sugeridos atuam como meio para as experiências em grupo. É possível dizer que nos procedimentos de Clark o corpo parte da fragmentação e do trabalho analítico para um corpo integrado. Apenas no final da sua trajetória Lygia voltará a explorar o corpo individualmente, em sessões que ela denominará A

estruturação do self25.

Entre as proposições que solicitam a presença de espectador e consequentemente de seu corpo como elemento fundamental da experiência artística, é possível trazer dois exemplos que podem ilustrar aspectos da discussão aqui proposta.

O primeiro exemplo é da fase Nostalgia do Corpo, de 1966. Clark pretende despertar a consciência do corpo a partir da redescoberta dos sentidos. Nostalgia indica saudade e um possível resgate do corpo perdido. O reencontro com este corpo esquecido acontece por meio de objetos que agem como intermediários dentro do processo de despertar as sensações corporais. Os objetos utilizados são elementos do cotidiano, como água, sementes, conchas e borrachas, por exemplo.

Nesta fase em que as propostas consistem na manipulação de objetos que poderão sensibilizar o corpo, Clark propõe ainda luvas, óculos e cintos, e sugere ambientes e roupas que tendem a estimular a percepção. Como exemplo, tem-se Luvas Sensoriais, que coincide com a redescoberta do tato, e Ar e Pedra, sensação de um organismo vivo em uma cópula da qual se participa. Nestes trabalhos, as experiências são vividas individualmente. O participante está ainda sozinho. Ele manipula objetos e atualiza memórias esquecidas. Nesta fase a artista foca seu interesse nas reverberações possíveis no decorrer da ação do participante. A ativação de sensações, memórias e impressões são as bases por onde transitam

25 O método, considerado terapêutico pela própria artista, admite inúmeras considerações e não será abordado nesta pesquisa. O foco aqui está nos procedimentos de espacialização da obra, instante em que o objeto se dissolve e estimula a ação do espectador a partir da mobilização do seu corpo, e não nos processos e conseqüências psicológicas das práticas propostas nesta fase final da artista.

57 as proposições de Lygia Clark neste momento. A artista pretende acessar forças, tocar em registros adormecidos, acordar e atualizar sentidos.

Entre os trabalhos desta fase destinada às manipulações individuais, destaco Luvas

Sensoriais, de 1968. O participante deve vestir luvas de diferentes materiais para pegar bolas de tamanhos, texturas e pesos diferentes, como aponta Milliet (1992). Após tocar as bolas com as luvas, o participante deve experimentar a mesma ação, porém, desta vez sem as luvas. Há nesta proposta uma redescoberta do tato. O peso e os aspectos materiais das bolas em contato direto com a pele e com o corpo estimulam a sensação do toque. O corpo reage ao tocar e ser tocado pelas bolas. Tocar o objeto diretamente e ser por ele tocado ganha uma nova perspectiva após a experiência de toque com a luva. Enquanto a mão toca a partir de um mediador, neste caso a luva, o corpo recebe diferentes informações sobre as propriedades do objeto que está sendo tocado. Há uma alteração na sensação e memória do objeto, e tal transformação interfere na relação posterior que o corpo estabelece com o mesmo.

Luvas sensoriais, 1968

A experiência dos participantes é fundamentalmente sensorial, o que permite a redescoberta daquilo que não cabe num discurso verbal. O que se pode relatar, verbalmente, do contato com um objeto, é a redução de um ato que envolve ativações, movimentações e deslocamento de forças que só ganham corpo e sentido na reverberação do próprio corpo. Um discurso que não está dissociado daquilo que o corpo experimenta.

As proposições seguintes se destinarão a duplas e por fim a grupos. E ainda sobre a fase