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Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC Centro de Artes - CEART Programa de Pós-Graduação em Teatro

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Academic year: 2019

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Universidade do Estado de Santa Catarina

UDESC

Centro de Artes - CEART

Programa de Pós-Graduação em Teatro

Giselly Brasil

Trajetos do espectador nas travessias de Lygia Clark e Pina Bausch

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Giselly Brasil

Trajetos do espectador nas travessias de Lygia Clark e Pina Bausch

Dissertação apresentada como requisito à obtenção do grau de mestre em Teatro, Curso de Pós-Graduação em Teatro, Linha de Pesquisa: Teatro, Sociedade e Criação Cênica.

Orientador: Prof.Dr. Edélcio Mostaço

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GISELLY BRASIL

Trajetos do espectador nas travessias de Lygia Clark e Pina Bausch

Dissertação apresentada para a obtenção do título de mestre, na linha de pesquisa: Teatro, Sociedade e Criação Cênica, em sua forma final, pelo Programa de Pós Graduação em Teatro, da Universidade do Estado de Santa Catarina, em 03 de setembro de 2011.

Profa Vera Regina Martins Collaço, Dra Coordenadora do PPGT

Apresentada à Comissão Examinadora, integrada pelos professores:

Orientador:

--- Prof. Dr. Edélcio Mostaço

Universidade do Estado de Santa Catarina

Membro:

--- Profa. Dra. Sandra Meyer

Universidade do Estado de Santa Catarina

Membro:

--- Profa. Dra. Elisabeth Lopes

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Agradecimentos

Gostaria de agradecer a todos que, de forma direta ou indireta, ajudaram no desenvolvimento desta pesquisa. Pessoas, coisas e situações que alteraram caminhos, despertaram novos trajetos e proporcionaram encontros valiosos. Agradeço também aos desencontros que estimularam o meu pensamento e me permitiram seguir desbravando possibilidades de acesso a um espaço que só se constrói em movimento. Espaço por onde transitei durante o tempo de confecção desta dissertação. Idas, vinda, observações, anotações, desenhos, inúmeros rabiscos, esquemas, papéis, muitas canetas, reflexões, frases soltas em algum papel que já não encontro, fotografias de lugares, pausas, palavras, muitas palavras, silêncio, viagens, trânsitos, amigos e a vida toda acontecendo ao mesmo tempo. Percursos de uma aprendizagem na qual fui guiada por um mestre. Alguém que observou com cautela e me permitiu experimentar o pensamento em seus inúmeros movimentos e variantes. Agradeço ao professor Edélcio Mostaço, meu orientador, pelas conversas, pelas referências e pelo cuidado em permitir que a pesquisa fosse mais do que um registro de informações, mas um ato de aprendizagem. Pela qualificação cuidadosa e generosa agradeço às mulheres fortes que me inspiram. À professora Sandra Meyer agradeço o carinho, a presença do corpo, as referências, os tantos encontros na graduação e a continuidade deste vínculo após a conclusão do curso. À professora Elisabeth Lopes agradeço as palavras, a escuta, a atenção e a oportunidade de perceber que é possível sensibilizar. À professora Rosângela Cherem agradeço a aula maravilhosa sobra a História da Arte e o cuidado em apontar com lindas e justas metáforas os meus acertos e equívocos. Agradeço à CAPES pela possibilidade de dedicação exclusiva ao meu projeto de pesquisa e ao PPGT pelo incentivo ao desenvolvimento de uma investigação que pode contar com auxílio de viagens para a coleta de materiais em diferentes centros de referência. Obrigada às secretárias maravilhosas Mila e Sandrinha pelo carinho e eficiência.

A lista de agradecimentos seria imensa, por isso gostaria de agradecer a todos e finalizar agradecendo aos meus pais pela enorme dedicação à minha educação. Agradeço à minha mãe pela força, pela luz, pela alegria, pelo amor que não pode ser medido e pela presença constante em minha vida. Agradeço ao meu pai por ter me deixado o registro de que a vida é amor, trabalho, muito esforço e dedicação. Agradeço aos meus irmãos pelos laços de amor e afeto. Agradeço às histórias impossíveis inventadas pelo meu irmão, quando era pequena, e que hoje influenciam na minha escolha em transitar por lugares onde as coisas todas são possíveis. Ao Bernhard, agradeço os anos em transformação e as lições austríacas de muita disciplina, determinação e foco.

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“Eu te digo: estou tentando captar a quarta dimensão do instante já que de tão fugidio não é mais porque agora tornou-se um novo instante-já que também não é mais. Cada coisa tem um instante em que ela é. Quero apossar-me do é da coisa.”

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RESUMO

Esta dissertação tem como objetivo investigar processos de produção da arte contemporânea que se fundamentam em princípios de interação e experiência estética. Para tanto, serão analisados os procedimentos sugeridos pelas artistas Lygia Clark e Pina Bausch. A obra como dispositivo que provoca a ação e a percepção do espectador é o eixo central desta pesquisa. O fenômeno da arte, neste contexto, se dá na articulação entre sujeito, objeto e espaço. Todos acontecendo ao mesmo tempo. Público e obra pretendem formar uma única paisagem. Eles não estão separados, mas se constituem reciprocamente. O lugar do espectador torna-se também o lugar da obra. Este trabalho se constrói sobre referências bibliográficas que abordam a experiência como evento que incentiva a participação do espectador a partir de aproximações, questionamentos e revelações. Movimentos estes que coincidem com o deslocamento do olhar e com a transformação de sentidos instituídos. As propostas e reflexões sugeridas pelas artistas fornecem material para a especulação da arte e do ambiente teatral contemporâneo como campo em expansão – lugar que ultrapassa os limites das linguagens e se legitima como campo de experiência que solicita um olhar antropofágico, olhar que observa e absorve o mundo como pela primeira vez.

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ABSTRACT

This dissertation aims to investigate processes of production of contemporary art that are based on principles of interaction and aesthetic experience. To this end, we will analyze the procedures suggested by the artists Lygia Clark and Pina Bausch. The artwork as a device that causes the spectator's perception and action is the core of this research. The phenomenon of art in this context occurs in the relationship between subject, object and space. All of them happening at the same time. Public and artwork as an unique landscape. They are not separated, but constitute each other. The place of the spectator also becomes the place of the artwork. This work is built on references that addresses the experience as an event that encourages participation from the spectator trough approaches, questions and revelations. These movements coincide with the displacement of the gaze and the transformation of meanings imposed. The proposals and reflections suggested by the artists provide material for speculation of art and contemporary theatrical environment as a growing field - a place that pushes the boundaries of languages and is legitimated as a field of experience seeking a cannibalistic look, look which observes and absorbs the world as the first time.

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Imagens

Why not sneeze Rrose Sélavy? ou Por que não espirrar Rrose Sélavy? (1921) (21)

First Papers of Surrealism (1942) (22)

Caminhando (1964) (54)

Luvas Sensoriais (1968) (57)

Mandala (1969) (59)

Dominique Mercy em Bandoneon (69)

Nelken (1982) (72)

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Sumário

Introdução (11)

Ato 1 – ao abrir

Movimento 1. A noite de Marcel Duchamp e o encontro com os Dadaístas (18)

Movimento 2. Duchamp: entre moderno e contemporâneo (21)

Movimento 3. O passeio do espectador pela quarta dimensão (25)

Movimento 4. Experiência, estética, relação (27)

Movimento 5. A arte como campo em experiência ou “um mundo sem vis-à-vis” (33)

Movimento 6. Interferências: Oriente e Ocidente (35)

Movimento 7. O espectador: que sujeito é esse? Ou que espectador é esse que afeta e é afetado? (37)

Ato 2 – ao atravessar

Movimento 1. Percurso de Lygia Clark (43)

Movimento 2. O neoconcretismo e Lygia Clark (46)

Movimento 3. Travessias de Lygia Clark (49)

Travessia A) A crise da representação ou quando a pintura transborda (49) Travessia B) Um corpo, um espaço ou o corpo como lugar de experiência (52)

Movimento 4. Percurso de Pina Bausch (60)

Movimento 5. Tanztheater e Pina Bausch (63)

Movimento 6. Travessias de Pina Bausch (68)

Travessia A) Quebra de representação e zonas de intensidade (69)

Travessia B) Memórias, registros, perguntas, respostas e desdobramentos ou o sensível do método Bausch (74)

Movimento 7. Breves considerações sobre o corpo neste contexto (78)

Ato 3 - ao espacializar

Movimento 1. Quando o espaço se molda (79)

Movimento 2. Espaço e corpo, instâncias entre a obra e o espectador (81)

Movimento 3. A obra como lugar de habitação (84)

Movimento 4. Uma obra, do objeto ao quase-corpus (86)

Movimento 5. Aproximação de pontos visuais e cênicos ou a liberação da arte (87)

Ato 4 – Trajetos do espectador nas travessias de Lygia Clark e Pina Bausch

Movimento 1. Considerações sobre a interação em Pina Bausch(91)

Movimento 2. Espaços móveis contemporâneos ou as relações entre obra e espectador (94)

Movimento 3. A situação do espectador neste novo lugar: notas de Susan Sontag (102)

Movimento 4. O sensível (102)

Considerações finais ou linhas finais que se iniciam (106)

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Introdução

Inicio. Seleciono movimentos que me parecem fundamentais para o mapeamento do campo de investigação aqui proposto. Inquietações minhas que justificam esta pesquisa. Escrevo aqui uma espécie de síntese. Um possível recorte de um assunto amplo e que certamente não terminará nas últimas páginas desta dissertação. Os motivos que me trazem às discussões aqui expostas coincidem com o meu percurso como artista, pesquisadora e espectadora do mundo. As coisas que eu vejo, que me transformam e alteram meus padrões de relação com o entorno e comigo mesma são alguns dos estímulos principais que me conduzem a esse trabalho. As coisas que não estão separadas de mim e que por isso me afetam, me deslocam, me movem e acionam movimentos antes desconhecidos. Uma coisa

toca na outra. E nas palavras de Clarice Lispector: ―O mundo: um emaranhado de fios

telegráficos em eriçamento. E a luminosidade no entanto obscura: esta sou eu diante do

mundo.‖ (LISPECTOR, 1998, p.28).

Muitos artistas se propõem trabalhar nessa zona de contato, nesse limite que provoca o toque entre as coisas. Obras que contém rachaduras, fissuras, frestas. Aberturas que favorecem a superação da noção de obra como coisa separada e pertencente a um suporte específico. Obra que vibra e aciona um espaço amplo. Obra que transborda, que extravasa os limites convencionais e que admite o espaço do espectador como o seu próprio campo de ação.

E é a partir deste princípio de ação e interação, que pode se dar de diferentes maneiras, que escolho refletir sobre procedimentos artísticos que de algum modo alteram padrões operativos tradicionais. Padrões que delimitam a obra numa área distinta daquela ocupada pelo espectador. Interessam-me então as experiências que, de maneiras diversas, criam espaços de interação, passagens e travessias que tendem a dissolver fronteiras e aproximar obra e espectador.

A aproximação, o toque. Instiga-me a aventura de tentar escrever sobre esse lugar de contato onde as coisas se tocam. Lugar-movimento-trânsito que justifica o assunto aqui escolhido.

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12 Por algum motivo essa dissertação começa numa exposição do artista francês Marcel Duchamp no Museu da Arte Contemporânea de São Paulo no ano de 2008. O nome da

exposição: ―Marcel Duchamp: uma obra que não é uma obra de arte‖. Este foi um dos pontos

de partida para o meu pensamento sobre a arte que acontece num lugar que escapa às molduras, às configurações e aos padrões vigentes para se fazer num espaço onde espectador e produção artística se conjugam em um ambiente de interações.

A obra é aquilo que acontece no intervalo, em um espaço entre o que se convencionou chamar de obra e o que se convencionou chamar de espectador. Cabe ao artista o estímulo e a construção de potencialidades que provocarão percepções, sensações, movimentos e a criação de um espaço contínuo que não diferencia obra e espectador. O público não está mais à parte, mas integrado ao evento. Aliás, é possível que neste lugar já não exista mais o espectador como o conhecemos e o concebemos. Entre questionamentos sobre o espaço do público é possível trazer as palavras do artista Hélio Oiticica no seguinte texto:

A questão do público: público, que, aliás, não tô mais usando essa palavra, eu tava lendo um negócio do Nietzsche, que ele diz que o público não existe, eu acho isso muito importante, detesto a palavra público! É uma grande generalização, é uma individualização assim duma coisa de massa, que na realidade significa o quê? A preferência mediana. Bom, ele falava isso em relação à coisa do Eurípedes, que Eurípedes tinha criado o espectador , dois espectadores, um era ele mesmo, o outro seria o espectador que ele supunha que seria igual a ele. Que na realidade é o que passou a ser o público. (OITICICA, 2009, p.123)

A partir daí, meu interesse investigativo encontra um foco que me permite observar, através dos exemplos das ações de vanguarda e de artistas do contexto das artes visuais, problemáticas pertinentes às artes cênicas e mais precisamente ao teatro no que se refere à crise da representação e à expansão do campo de ação da experiência artística. Assim como o quadro escapa da moldura, a cena escapa do palco. O evento se dilata e toca o espaço antes reservado à contemplação do espectador.

Inquietações minhas procuram respostas referentes ao exercício cênico. Muitas pistas aqui e ali, e a experiência que mais me instigou, na abertura para conexões que expandiam o meu olhar sobre a prática teatral, aconteceu nos estudos de propostas e procedimentos de artistas inseridos num contexto das artes visuais e conectados com problemáticas filosóficas.

Encontrei, em letras brancas numa parede cinza do Museu de Arte Moderna de São Paulo, durante uma exposição de Marcel Duchamp, uma frase que viria a me acompanhar:

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13 Um novo campo de perguntas e respostas surgiu. Lá estava eu, imóvel e observando a rede de conexões invisíveis que interliga todas as coisas. Nesta mostra retrospectiva dos trabalhos de Duchamp, muitas de suas proposições ativaram uma memória minha de ambientes já conhecidos. Eu conhecia sem poder localizar o objeto do meu conhecimento. Os procedimentos do artista acessavam, de algum modo, questionamentos meus sobre a ação teatral. Eu não estava no teatro, mas o teatro estava presente. Percebia um encaixe inexplicável entre as propostas de Duchamp e um tipo de teatro que me mobiliza à ação como artista, espectadora e pesquisadora. Despertava-me a percepção de tal modo que eu, como público, não estava na posição de observadora ou deslocada do espaço expositivo. Ver não era sinônimo de passividade, de recepção, na noção primeira do termo. Ver era estar presente num espaço que se produzia entre mim e os elementos todos que estavam compondo o ambiente. Encontrar um objeto do cotidiano, como um ready-made, em um museu, me fez perceber o entorno, os objetos outros deste lugar, como o cenário montado para a exposição, os sons, o silêncio, as frases que não se explicavam, as imagens de situações imprevistas, o aleatório e o acaso. Lá estava eu. Um ambiente me absorveu. Fui devorada pelo espaço. A experiência antropofágica do lugar. Um ambiente me movia e esse parecia ser o movimento que eu buscava no teatro. Interessava-me compreender a ação teatral sob outros pontos de vista. E neste trajeto, pensar sobre uma área a partir de um campo distinto pareceu-me coerente e fundamental para revisitar conceitos e provocar deslocamentos.

Meu foco de investigação tornava-se mais nítido e direcionava meu interesse para as crises anunciadas no final do século XIX e início do século XX. Deste período, quando as perguntas se multiplicam e os campos todos se questionam sobre as suas fronteiras, interessam-me os procedimentos artísticos que atuam no limite entre linguagens, entre a arte e a vida, e que estimulam a ação do espectador.

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14 É importante dizer ainda que não pretendo comparar os trabalhos das artistas, mas sim destacar procedimentos que dialoguem com o tema em questão. Práticas e propostas que alargam o lugar da obra e incluem o espectador fazendo seu corpo vibrar em experiência.

As práticas das artistas Lygia Clark e Pina Bausch auxiliarão na investigação de procedimentos estéticos que visam a participação e a ativação do espectador em um lugar que pode ser comparado a uma zona liminar1. As texturas do real, a vida, o particular de cada um e o meio entram em consonância como material de um fazer artístico que poderá provocar e estimular experiências, memórias e a ressignificação do evento da arte.

A inserção do espectador vem sendo significativamente investigada tanto nas artes cênicas quanto nas artes visuais. Contudo, parece ainda predominar o discurso que classifica como interativa a proposta que solicita a manipulação da obra e contemplativa aquela que se apresenta sem um envolvimento físico do espectador – quando este não ocupa fisicamente uma suposta zona de ação do evento.

No contexto desta dissertação centrarei meu foco sobre duas diferentes possibilidades de interação que surgem a partir da análise dos procedimentos e propostas de Lygia Clark e Pina Bausch. No recorte aqui sugerido, Clark propõe o toque a partir da presença física do corpo do espectador e Bausch incita movimentos na plateia que coincidem com a presença de um corpo de afeto que é acionado na relação. Mesmo apresentando diferentes alternativas de interação com o espectador, ambas exploram caminhos de acesso ao sensível, lugar por onde se cruzam forças, afetos e memórias. Lugar que acontece na reverberação de movimentos que escapam a moldes e padrões. Espaço de revelação de forças que habitam a forma. Lugar que não está condicionado e que promove transformações no participante.

O teatro será aqui investigado em sua extensão ou saturação, como ambiente ou movimento de interação presente em diferentes práticas.

Então serão destacados procedimentos da arte contemporânea que privilegiam a ação, a relação entre espectador e obra e a criação de um espaço de tensão por onde transitam forças. Surge uma zona de indeterminação na qual somente a ação do espectador ou o seu engajamento ao evento poderá gerar um sentido particular da experiência. Arte e vida, real e ficcional, visível e invisível se tocam e inauguram um ambiente que é atualizado por interferências e contaminações. Não há isolamento. Tudo está em constante relação e os movimentos aparecem sempre como pela primeira vez. Uma rede de conexões é ativada a

1 Conceito desenvolvido pela autora Ileana Diéguez Caballero no livro ―Escenarios Liminales: Teatralidades,

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15 cada ato, refazendo assim o terreno do fenômeno da arte. Destas ações e relações resulta o que pode vir a ser a experiência estética.

A produção de arte pretende, sob esta perspectiva, dar-se como modo de ultrapassar os limites daquilo que é previsto pelos olhos. O olhar busca novas orientações, espaços desconhecidos e possibilidades de relações imprevistas. O olhar se alarga e acontece nos intervalos dos demais órgãos dos sentidos. Ver-se-á com o corpo todo. A obra de arte e seus contornos já não se limitarão à esfera das suas bordas, pedestais, molduras e da ideia de uma quarta parede2. Pequenas ou grandes fissuras tratarão de aproximar obra e público de tal maneira que se tornará imprescindível a presença de um e de outro.

E é no contexto deste panorama que conceitos como o de obra de arte e espectador serão revistos. Onde começa e onde termina a obra de arte? Onde começa e termina o espaço do público? Neste sentido, o toque do espectador auxilia na descoberta de novos conceitos para aquilo que se convencionou chamar arte e público.

As questões lançadas aqui aparecerão como estímulos que pretendem sugerir um olhar que ultrapassa o olho e um toque que invade a pele. O corpo, sob esta perspectiva, aparecerá como vibração, como ato no qual o sujeito absorve e recebe o meio ambiente. Um corpo que se constitui enquanto percorre trajetos e é afetado pelo entorno. Corpo que não está separado dos lugares que percorre.

É importante ainda considerar que esta pesquisa não pretende se filiar a discursos que supervalorizam procedimentos da arte contemporânea em detrimento de produções tradicionais e fundamentadas em ideias e regras pré-estabelecidas. Pretende-se apontar questões, como vínculos e reverberações entre obra e espectador, com o intuito de refletir sobre a redescoberta do espaço como um ambiente de integração e interação que promove toques entre obra e espectador - que tradicionalmente ocupavam campos distintos.

As informações e os discursos acerca desta ou daquela forma de arte serão aqui confrontados com alternativas que questionam paradigmas dualistas e investigam possibilidades outras para o acontecimento artístico. Não se trata de um julgamento de valores sobre os melhores ou piores métodos e procedimentos, mas sim de uma tentativa de identificação de diferentes possibilidades de abordagem e prática da arte.

Com base nesta perspectiva, aprofundar os estudos das artes cênicas com base na aproximação de diferentes campos das artes é uma possibilidade de ampliar as leituras dos processos artísticos, humanos e existenciais e de contribuir com uma bibliografia que trate da

2 Termo, que no contexto do teatro, corresponde a uma parede imaginária localizada na frente do palco. Através

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16 arte como evento que reside para além de conceitos pré-estabelecidos, de limites entre linguagens e de fronteiras entre obra e espectador.

Deste modo esta dissertação percorre o campo da estética e apresenta como eixo principal a discussão sobre possíveis modos de ativação e incorporação do espectador ao evento artístico.

Para abrir a reflexão aqui proposta serão levantadas considerações iniciais sobre os vestígios da criação de um campo no qual obra e espectador se tocam. Tais apontamentos serão pautados, inicialmente, nas propostas e conceitos presentes nos trabalhos do artista Marcel Duchamp e em seu contexto de atuação.

Em seguida, e como núcleos de investigação, serão investigados os procedimentos das artistas Lygia Clark e Pina Bausch. Os distintos campos de Clark e Bausch serão explorados a partir de diferentes alternativas no que se refere à criação de um espaço que inclui o espectador.

O terreno proposto ou o lugar da experiência será aqui abordado, inicialmente, a partir de questões que colocam em diálogo princípios encontrados em relações que caracterizam uma estética ocidental e uma oriental, de acordo com as reflexões sugeridas pelo músico alemão Hans-Joachim Koeulheutter (1915-2005). Posteriormente será sugerida uma reflexão sobre o termo estética e sobre o espectador, como sujeito da experiência. Em seguida, serão apontados movimentos e produções da arte contemporânea que têm como fundamento a criação da obra no mundo, na relação com o meio.

O espectador aqui abordado é aquele da experiência, solicitado em suas memórias, rastros, percepções e sensações que reverberam no ambiente do acontecimento da arte.

Proponho como pano de fundo desta investigação a sugestão de quatro grandes atos que coincidem com indícios de possíveis movimentos de espacialização da obra – momento no qual esta se dilui e se faz no espaço. Os atos serão os seguintes: ato primeiro, ao abrir; ato segundo, ao atravessar; ato terceiro, ao espacializar; e ato quarto, trajetos do espectador nas travessias de Lygia Clark e Pina Bausch. A abertura se localiza em um cabaré dadaísta, onde tensões, conflitos e reflexões girarão em torno de experiências e propostas lançadas pelas vanguardas europeias e, sobretudo, por Marcel Duchamp e pelo movimento Dadaísta no que se refere aos novos acordos propostos entre obra e espectador. As principais questões e os embasamentos teóricos serão discutidos nos movimentos3 deste ato primeiro. No ato segundo aparecerão reverberações desses acordos e seus efeitos nos encaminhamentos das artistas

3 Os quatro atos, correspondentes aos capítulos, serão divididos em movimentos, como tópicos de um mesmo

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17 Lygia Clark e Pina Bausch. Na sequência, no ato terceiro, serão apontados desdobramentos desta abordagem que incluem o espectador no fenômeno artístico a partir da compreensão do espaço e do corpo como instâncias e campos de ação. No ato quarto apresentarei movimentos que insinuam interações e dinâmicas entre espectador e obra nos procedimentos de Clark e Bausch.

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ATO 1- ao abrir

Movimento 1. A noite de Marcel Duchamp e o encontro com os Dadaístas.

Uma noite no ano de 1911. Marcel Duchamp (1887-1968) e Francis Picabia (1879-1953) foram assistir ao espetáculo Impressões da África, inspirado em romance de Raymond Roussel (1877-1933). ―Foi extraordinário‖, diria Duchamp referindo-se àquela noite, como aponta Rosalind Krauss (1998, p. 85). Duchamp diria ainda: ―Havia no palco um modelo e

uma cobra que se movimentava lentamente – era a absoluta loucura do inesperado. Não me

lembro muito do texto. Na verdade, nem prestamos atenção nele.‖ (KRAUSS, 1998, p.85). Segundo Rosalind Krauss, Duchamp assistiu a uma das curiosidades da literatura

francesa que conta a ―história de uma requintada festa de gala para comemorar a investidura de um rei africano na coroa de uma nação vizinha derrotada.‖ (KRAUSS, 1998, p.85). A festa foi constituída por uma série de espetáculos apresentados sem nenhum vínculo narrativo entre eles.

Todavia, a impressão de descontinuidade entre esses espetáculos desaparece tão logo o espectador ou o leitor apreende o tema subjacente a cada ato do festejo. Unificando todos eles, a imagem de uma série de máquinas primitivas que trabalham para gerar um produto semelhante; cada qual envolve um intrincado

conjunto de mecanismos que terminam produzindo ―arte‖. (KRAUSS, 1998, p.85

-86)

Um dos espetáculos apresentados pode ser visualizado no seguinte trecho:

Há, por exemplo, uma máquina de pintura: uma chapa fotossensível presa a uma roda com vários pincéis. As imagens de paisagens que incidem na chapa são registradas e transmitidas ao mecanismo que impulsiona os pincéis, que, por sua vez, registram a imagem em tinta sobre a tela. (KRAUSS, 1998, p.85)

A cena do espetáculo acima citado pretende criticar os processos de mecanização das produções artísticas. Forças biológicas e físicas são transformadas em máquinas que criam imagens que atuam como base da experiência considerada ―arte‖, conforme Krauss (1998). Neste cenário, estruturas análogas ao funcionamento repetitivo e padronizado das máquinas são alvos de comparações e questionamentos em relação aos modelos e padrões vigentes no contexto da arte.

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19

Ao automatizarem a produção artística, no entanto, as máquinas chegam a um resultado no qual a estrutura da imagem está absolutamente desvinculada da estrutura psicológica e emocional do indivíduo que dá início à arte, que põe a máquina em funcionamento. (KRAUSS, 1998, p.86)

A partir do espetáculo e das referências mencionadas acima, é possível dizer que movimentos do final do século XIX e início do século XX promoveram críticas decisivas que alteraram mecanismos de funcionamento do evento artístico. A engrenagem toda precisou ser revisada e novas propostas incentivaram trocas, desterritorializações, mudanças de lugar, aberturas e intercâmbios constantes que desenharam um novo lugar para o acontecimento da arte.

Neste contexto, trarei inicialmente para o mapeamento do campo de discussão desta pesquisa o Dadaísmo, que não constitui um movimento de vanguarda no sentido tradicional do termo, mas antes uma atitude de questionamento e ruptura que transformará radicalmente o modo de fazer e pensar arte. Os dadaístas negam os padrões estéticos, negam a arte do passado, e negam ainda a arte como estrutura pautada em estilos e tendências. O intuito do Dadá foi o de romper radicalmente com as regras que definem o lugar da arte e promover uma revisão dos movimentos que acionam o fenômeno artístico.

O dadaísmo prevê uma revisão de conceitos que começa no próprio nome do grupo. O movimento dadaísta traz em si e em seu nome um dos primeiros estímulos que explodirá a concepção da palavra como vocábulo dotado de sentido. Surge uma composição de letras e sílabas que já não se limita a uma associação imediata. Aparece então a palavra como sugestão, som, lugar poroso e flexível logo no nome do grupo de artistas – os dadaístas4.

O elogio ao ilógico foi uma das principais motivações do Dadá. Desejavam ―(...)

destruir os enganos lógicos do homem e recuperar uma ordem natural, irracional.‖ (ADES,

1976, p.17). O espontâneo deveria agir livremente. E o acaso e a indeterminação foram

4 Considerações sobre o dadaísmo e sobre a palavra Dadá: Embora seja ainda discutida a significação da palavra

Dadá o poeta Richard Huelsenbeck (1892-1974) afirma que a descoberta do nome foi acidental. Ele e Hugo Ball (1886-1927) descobriram a palavra num dicionário alemão-francês. O vocábulo Dadá, que significaria

(20)

20 trazidos como elementos ordenadores que regem uma ordem que encaminha a natureza e as produções de arte.

Estes breves apontamentos aparecem aqui como estímulos para a reflexão sobre algumas transformações que alteraram padrões de sentido e, consequentemente, dos vínculos entre obra e espectador. O foco sai da compreensão de discursos visuais ou teóricos e se dirige a uma multiplicidade de relações que acionam vínculos entre espectador e obra. Mesmo que o objetivo dos dadaístas não estivesse na criação de novas coordenadas para o evento da arte, mas sim na desarticulação dos padrões vigentes, o movimento antecipou importantes deslocamentos e alterações que influenciaram inúmeras práticas e procedimentos posteriores. O fenômeno da arte se torna livre de condicionamentos que até então impõem formatos e estruturas; novas ações e relações são sugeridas.

Aos poucos, as vanguardas apontam novas possibilidades de compreensão e experiência. O dadaísmo desarticula sentidos constituídos e provoca novas compreensões que se fazem na relação entre espectador e obra.

A partir daí, meu interesse reside na mobilidade adquirida pela noção de sentido, relação e experiência no período que coincide com os movimentos de vanguarda. Os sentidos já não podiam ser construídos a partir de certezas e ideais conhecidos e assimilados pelo senso comum. Havia uma nova proposta em sua organização e produção. O espectador passa então a integrar esse processo que prevê significações e experiências particulares. O que está em pauta não é a apreensão de um significado, mas os movimentos de interação que provocam diferentes experiências no espectador.

Os vínculos possíveis a partir de novas organizações, de questionamentos sobre lugares já conhecidos e de um retorno a uma materialidade ignorada em prol de ideias formatadas e concebidas sobre as coisas são algumas das principais heranças da vanguarda. Tais iniciativas formarão um dos principais eixos de conexão na relação direta e viva que se pretende estabelecer entre público e obra. Não há um discurso prévio e preparado como um simulacro que se apresentará ao espectador. As construções e as experiências se localizam nos trânsitos de um lugar no qual se fazem presentes público e evento artístico.

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Movimento 2: Duchamp, entre moderno e contemporâneo

Movimentos e intervalos no trânsito entre a arte moderna e a arte contemporânea - períodos denominados e classificados cronológica e historicamente – parecem coincidir com o aparecimento de um terreno no qual as relações e interações são ressaltadas em detrimento das formas.

Nesta transição, regras, nomes, práticas e conceitos são questionados de forma radical em algumas manifestações artísticas. E para dar conta de algumas das questões levantadas neste período proponho considerações sobre um dos lugares mais restritos e mais livres - o

conceito de ―obra de arte‖.

A ―obra de arte‖ costuma se vincular à ideia de um objeto irreparável, completo e inteiro em si. A obra que se constrói em um espaço delimitado e que constitui um sistema

independente daquele que a observa. A obra de arte limitada aos aspectos ―retinianos‖,

criticada e rompida por Marcel Duchamp, é a obra da apreciação, da reprodução de técnicas e

formas. A ―obra‖ que reproduz um sistema de normas e regras que serão contempladas em

suas categorias e enquadramentos. Uma ideia distinta daquela que prevê a obra como processo que é recriado continuamente.

A crise da representação anunciada por Duchamp favorece o desdobramento de ações que convocarão novos movimentos no contexto artístico. A desarticulação de fórmulas que priorizam o apelo visual e a manutenção de padrões estéticos e artísticos pré-estabelecidos, ditados pelo mercado e pelo senso comum, serão os principais alvos de discussão no trânsito entre a arte moderna e contemporânea.

Tais configurações e suas reverberações serão aqui discutidas a partir do território da vanguarda5, que orientará a ruptura de modelos e sentidos assimilados pelo senso comum. Para tanto, localizo tal território, neste primeiro momento, no continente europeu.

Marcel Duchamp, artista francês, descendente do movimento dadaísta e um dos precursores da arte conceitual, inicia sua carreira como pintor inspirado pelo Impressionismo, Expressionismo e Cubismo. O conceito de ready-made, por ele desenvolvido, coincide com o deslocamento de um objeto do cotidiano para o campo das artes. O ready-made mais comentado e discutido de Duchamp é a Fonte, mictório comprado em uma casa de construção e assinado pelo artista com o pseudônimo de R. Mutt. A Fonte provocou questionamentos e reflexões sobre a arte e o espectador em um ambiente que legitima a arte pelas suas

5 Termo utilizado no livro O moderno e o contemporâneo: O novo e o outro novo, de Ronaldo Brito e Paulo

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22 propriedades formais e pelos valores de mercado. Segundo o crítico e historiador Giulio Carlo Argan (1992), os ready-mades podem ser lidos como atos de protesto contra o conceito

―sacro‖ da ―obra de arte‖. E conforme considerações apontadas no artigo ―Duchamp, o sensível, a indiscernibilidade‖6, de Marcos Martins (2007), os ready-mades propõem ainda

uma temporalidade complexa por indicarem o registro de uma ação do artista. O objeto pela inscrição da data, que indica o momento em que ele foi deslocado de seu espaço e inserido num contexto artístico, anuncia um tempo, um ato, tornando-se ele mesmo a revelação de uma ação ou percepção de Duchamp.

Há nos ready-mades vestígios de uma experiência do tempo como a permanente presença da memória em vias de atualização, como aponta Martins (2007). O objeto, descolado de seu espaço e livre de uma condição padrão e cotidiana, tende a se fazer agora como um novo lugar, um espaço em vias de, um devir, uma zona de indiscernibilidade. E assim os intervalos e deslocamentos entre sujeito e objeto, ou espectador e obra, sugerem que as propostas do artista anunciem um espaço sensível, lugar que não separa, mas que conjuga a visão e a matéria cinza7.

Quando Duchamp leva um mictório para o museu, ele desloca um objeto cotidiano e provoca, com muita ironia, um confronto do espectador com uma materialidade ignorada no dia a dia. Duchamp vai além, questiona os parâmetros que classificam um trabalho como obra de arte e propõe uma reflexão sobre o estatuto do espectador.

A crítica ao espaço considerado ―retiniano‖ e a utilização de novos recursos em suas produções indicam novas condutas no ambiente das artes ditas ―visuais‖ e, como cita Martins

(2007),

(...) o empenho de Duchamp em rejeitar os procedimentos da pintura como forma de escapar ao risco de uma apreensão da obra de forma puramente visual dada pela impregnação de convenções pictóricas de ―leitura‖ já cristalizadas. (MARTINS, 2007, p. 2)

Como exemplo é possível citar o trabalho Why not sneeze Rrose Sélavy? ou Por que não espirrar Rrose Sélavy?, de 1921, no qual ele apresenta uma gaiola branca que ―contém 152 cubinhos de mármore, como torrões de açúcar, um termômetro e um osso de siba.‖8 O título

do trabalho e os elementos apresentados indicam que todas as associações são permitidas, como sugere o próprio autor.

6 Artigo publicado na VISO – Cadernos de estética aplicada. Revista eletrônica de estética. Localização:

http://www.revistaviso.com.br/pdf/Viso_2_MarcosMartins.pdf. Acesso: 12/02/2011.

7 Relação com o conceitual, com o cerebral - alvo de seus trabalhos.

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23 A seguir, o trabalho mencionado acima:

Why Not Sneeze Rrose Sélavy? ou Por que não espirrar Rrose Sélavy?( 1921)

Marcel Duchamp, que estimulará as vanguardas do século XX ao acionar o pensamento, recupera o corpo como lugar potencial para a realização do evento artístico. O espectador é aos poucos inserido ao acontecimento da arte. Em seus trabalhos como curador, as propostas são mais radicais no que se refere à presença e ativação do corpo. O artista cria espaços ou

environments9 por onde o público circula e é afetado por experiências sensoriais. Em uma das exposições que realizou, do movimento surrealista, linhas foram colocadas no espaço expositivo, de modo que o espectador precisava se livrar dos emaranhados para conseguir se aproximar dos quadros. A experiência tátil e os estranhamentos assim sugeridos provocaram a

inserção do corpo do espectador na relação com a ―obra‖. A ―obra‖, aliás, já não estava

apenas na parede, mas também nesse percurso que possibilitou a criação de uma nova relação

entre a ―obra‖ e o ―espectador‖.

Este exemplo se refere à exposição First Papers of Surrealism, realizada em 1942 na Whitelaw Reid Mansion, em Nova York.

9 Termo que pode ser ―traduzido como meio ambiente ou envoltório‖, de acordo com Glusberg (2009, p. 29). E

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24 First Papers of Surrealism (1942)

Neste contexto, modelos são rompidos e novos espaços e conceitos são sugeridos. Contudo, ao romper com um modelo não teria Duchamp criado outro? Duchamp estava inserido em um contexto em que suas propostas surgiram como respostas a um sistema que supervalorizava a figura do artista, as técnicas, a apreciação e a contemplação. Suas questões propunham um novo olhar sobre a ação criadora. Contudo, quais são as bases e as questões que provocam tais rupturas hoje? Não estariam muitos artistas reproduzindo um modelo que tem sua origem nas inquietações pertinentes de Duchamp ou de algum outro artista? Com sarcasmo e ironia o artista perturbou o ambiente tranqüilo dos museus e lançou perguntas que continuam instigando propostas artísticas.

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25 experiência estética. Pelo contrário, constroem um conjunto novamente emoldurado com base apenas em novos arranjos e associações.

Ao provocar deslizamentos, rupturas e criar zonas de instabilidade, alguns movimentos de vanguarda provocaram a descoberta daquilo que se pensava saber e conhecer. As sugestões tornam-se mais relevantes do que a obra como objeto e o espectador é solicitado em uma experiência que extravasa padrões e categorias.

Aquilo que estava ali, está agora aqui. Aquilo que se vinculava a esta forma se vincula agora àquela forma.

Deslocamentos provocam alterações em concepções e encaminhamentos. O processo, o acontecimento ou o evento são categorias móveis, lugares de trânsito, que talvez possam melhor retratar o movimento das tendências que surgem em um contexto de ruptura com padrões e fórmulas fixas. Rupturas estas que promovem aberturas para a interação do espectador.

E ainda sobre a interação do espectador é possível trazer as seguintes considerações sobre trajetos sugeridos por Marcel Duchamp:

Movimento 3. O passeio do espectador pela quarta dimensão

Apresento breves considerações sobre o espaço que surge como interação e movimento a partir da ideia de quarta dimensão investigada por Marcel Duchamp.

Em setembro de 1918 Duchamp viaja para Buenos Aires e lá permanece até junho de 1919. Existem diferentes explicações e especulações sobre os motivos desta viagem. Contudo, interessam-me aqui as reflexões subjacentes que surgem com este acontecimento.

De acordo com o autor Gonzalo Aguilar10, Julio Cortázar foi o primeiro a escrever sobre a viagem de Duchamp a Buenos Aires. Cortázar aponta para o fato de Marcel Duchamp ter viajado para a Argentina após ter assistido à Impressões da África, de Raimond Roussel. A apresentação que impactou Duchamp, e descrita no início desta dissertação, narra, entre outros episódios, uma viagem para Buenos Aires. De acordo com uma declaração do próprio artista presente no texto de Aguilar, o caminho que ele devia adotar foi indicado pelas suas impressões da obra de Roussel.

10 No texto ―Viaje a la ciudad de la quarta dimensión‖ publicado no CD que acompanha o Catálogo da exposição

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26 O tom de ironia, presente nos comentários e produções de Marcel Duchamp, permite que cada ato seu possa ser interpretado e abordado sob diferentes pontos de vista. Não há como saber se a viagem de Duchamp a Buenos Aires foi mesmo influenciada por Raimond Roussel, entretanto, o mais relevante é discorrer sobre o importante trajeto que o artista percorreu durante sua estadia na cidade.

No ambiente tranquilo e em crescimento cultural da capital argentina, o artista investiga a desmontagem da perspectiva renascentista, ou euclidiana. Segundo Aguilar, o tema e as investigações de Duchamp, neste período, coincidem com interesses que dão ênfase às

―relações da percepção do espaço físico com o desejo, a volição, a intuição e o entendimento.‖11O artista propõe uma ―reflexão sobre o estatuto do espectador numa arte que

já não é regida pelas leis da perspectiva tridimensional e o afã da representação, senão uma

arte que procura conseguir um novo espaço, quadrimensional e mental antes que físico.‖12 A

partir destas considerações é possível prever que o interesse de Duchamp não estava na obra como matéria, como elemento físico, mas como via de acesso e mobilização do pensamento e da reflexão. Aliás, pensamento este que por não estar dissociado do corpo prevê um acionamento integral do espectador.

Marcel Duchamp se dedica à investigação de um espaço que permite o trânsito e a descoberta do avesso da obra. O que é oferecido ao espectador não se limita aos efeitos de uma tridimensionalidade representativa, ele é agora convidado a atravessar a obra, a continuá-la e completá-continuá-la. O movimento, o efeito pertubador que desloca o espectador de sua zona de conforto e passividade é o ato que está sujeito às interferências do acaso e do tempo. Em última análise, é uma quarta dimensão que não pode ser fixada em abstrações geométricas, porém apenas experimentada como afirmação do instante. A quarta dimensão como uma sucessão de movimentos que se apresentam entre um ato e outro, um momento que não pode ser apreendido, uma intuição que impulsiona diferentes percursos, movimentos que surgem sempre novos, um início que não tem início e nem fim, uma sucessão de interferências que alteram as rotas previstas. As inquietações e produções de Marcel Duchamp como pano de fundo de alterações e perturbações que reverberam em todos os cantos favorecem a compreensão de uma abordagem estética que prevê a experiência.

11

AGUILAR, Gonzalo, 2008, p.7 in ―Viaje a la ciudad de la quarta dimensión‖. Original: ―investigar las relacionesde la percepción del espacio físico con el deseo, la volición, la intuición y el entendimiento.‖ Tradução nossa.

12 AGUILAR, Gonzalo, 2008, p.7 in ―Viaje a la ciudad de la quarta dimensión‖. Texto original: ―reflexión sobre

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27 As primeiras perturbações e desconfortos provocados nos espectadores por Duchamp reverberam e cruzam práticas, procedimentos, artistas e propostas. Retornam destacando que o fundamental não pode ser visto e nem mesmo medido. O motor que aciona a obra aciona a vida. Uma toca na outra e entre loopings eis que o evento artístico se dá. A obra se abre, transborda e atravessa lugares enquanto se constitui como quarta dimensão e experiência estética.

Movimento 4: experiência, estética, relação

Em alguns instantes antes da apresentação do próximo movimento questiono-me sobre possíveis modos de participação do espectador no contexto do fenômeno da arte. Será que todo modo de interação pressupõe um contato físico? É possível mobilizar e tocar sem que dois corpos se aproximem fisicamente? Em quais condições é criado um terreno no qual os espaços individuais se dissolvem dando lugar a um campo compartilhado de relações? Quando as molduras, as quartas-paredes e os pedestais se rompem favorecendo o acontecimento da obra no mundo? Quando sujeito e objeto se afetam?

Falar de relação é falar de experiência, de estética. Neste ponto fundamento alguns dos pensamentos subjacentes aos vínculos que se pretende criar entre espectador e obra no contexto dos questionamentos levantados pelas vanguardas, sobretudo pelo Dadaísmo e por Marcel Duchamp. É importante ressaltar ainda que tais referências de movimentos e rupturas de vanguarda aparecem aqui como ambientes que dialogam com as práticas das artistas Lygia Clark e Pina Bausch, e não como lugares que inauguram pensamentos inéditos. O que interessa é a fissura, a abertura apontada pelas transformações das ações de vanguarda que irão reverberar nos trabalhos e práticas das artistas em questão.

A experiência

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28 Entre os pioneiros da escola filosófica americana conhecida como pragmatismo estão os pensadores Charles Peirce (1839-1914), William James (1841-1910) e John Dewey (1859-1952).

Para iniciar essa discussão é interessante partir das propostas levantadas pelo filósofo americano John Dewey (1859-1952) quanto à experiência. O autor propõe que ela pode ser geral ou estética, que pode acorrer tanto no cotidiano quanto em situações de produção de arte. A experiência, deste modo, não se volta a um objeto, mas a uma atividade da própria percepção. E segundo Dewey (1974), um dos inimigos do estético é a submissão à convenção nos procedimentos práticos e intelectuais. A experiência estética implica uma reconstrução do supostamente conhecido. Há movimento e mudanças constantes. E nas palavras do autor: ―a

experiência constitui-se de um material cheio de incertezas, movendo-se em direção a sua

consumação através de uma série de variados incidentes.‖ (DEWEY, 1974, p.253).E ainda:

Não é a experiência que é experienciada, e sim a natureza – pedras, plantas, animais, doenças, saúde, temperatura, eletricidade, e assim por diante. Coisas interagindo de determinadas maneiras são a experiência; elas são aquilo que é experienciado. (...) Portanto, a experiência avança para dentro da natureza; tem profundidade. É também dotada de largura infinitamente elástica. Estira-se. Esse estirar-se constitui a inferência.‖(DEWEY, 1980, p.163)

Para o autor, é importante abordar a experiência estética como o próprio e o único método para atingir a natureza, penetrar seus segredos, e o lugar no qual a natureza, revelada empiricamente, aprofunda, enriquece e dirige o desenvolvimento posterior da experiência (DEWEY, 1980).

Neste contexto, experiência e natureza convivem harmoniosamente juntas, e segundo Dewey:

A experiência, se a investigação científica se justifica, não é alguma camada infinitamente fina ou um primeiro plano da natureza, mas penetra dentro dela, atingindo suas profundezas, e de maneira tal que seu apoderar-se é capaz de expansão; constrói túneis em todas as direções, e ao fazê-lo traz à superfície coisas anteriormente ocultas – tal como os mineiros amontoam sobre a superfície da terra tesouros trazidos do subsolo. (DEWEY, 1980, p.162)

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29

(...) se imaginarmos uma pedra, a qual esteja rolando por uma colina, para ter uma experiência. (...) A pedra parte de algum lugar, e movimenta-se, conforme o permitam as condições, para um lugar e para um estado onde possa permanecer imóvel – para um fim. Agreguemos, pela imaginação, a tais fatos externos, as ideias de que a pedra olha para diante desejando um resultado final; que se interessa pelas coisas que encontra pelo caminho, condições que aceleram e retardam seu movimento em relação a seu término; que atua e sente com respeito a elas de acordo com a função de impulsioná-la ou detê-la que lhes atribua; e que a chegada final ao repouso seja relacionada com tudo o que aconteceu antes enquanto a culminância de um movimento contínuo. Então a pedra teria uma experiência, e dotada de qualidade estética. (DEWEY, 1974, p.250)

A experiência estética, deste modo, relaciona-se diretamente com a ação, com o ato. Ato como evento que assume interferências, pausas e suspensões. Ação que não se limita à repetição ou a uma atividade mecânica. Uma ação que acontece enquanto padrões se desfazem. A percepção é assumida em seu próprio ato. Percepção que se distingue de reconhecimento, já que reconhecer prevê uma antecipação de uma possível ação ou experiência. Quando há o reconhecimento há também um esquema previamente organizado. Reconhecimento é a percepção detida antes que esta tenha oportunidade de desenvolver-se livremente, segundo Dewey (1974). A arte neste contexto assume-se como ato, ação, movimento e experiência estética.

Neste ponto, seria possível discorrer sobre a postura reforçada por Jorge Larrosa Bondía13, ao afirmar:

Começarei com a palavra experiência. Poderíamos dizer, de início, que a experiência é, em espanhol, o que nos passa‖. Em português se diria que a experiência é ―o que nos acontece‖; em francês experiência seria ―ce que nous arrive‖; em italiano, ―quello che nos succede‖ ou ―quello che no accade‖; em inglês, ―that what is happening to us‖; em alemão, ―was mir passiert‖. A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece. Dir-se-ía que tudo o que se passa está organizado para que nada nos aconteça. (LARROSA, 2001, p.21)

Esta abordagem apreende na palavra experiência os vestígios de uma compreensão que a situa em um território de passagem, uma zona de encontros, de aproximações e agenciamentos onde a experiência se distingue da informação. Receber ou dar uma informação não corresponde necessariamente ao ato de promover uma experiência. Experienciar, segundo Larrosa, requer suspensões, pausas, silêncios, (...)

13 * Conferência proferida no I Seminário Internacional de Educação de Campinas, traduzida e publicada, em

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requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço. (LARROSA, 2001, p.24)

Assim, algo acontece e algo se transforma. No desdobramento de um evento – que não se limita a um campo ou área determinada - acorre a experiência investigada nesta dissertação. Ela é um acontecimento complexo que implica no cruzamento de diferentes conceitos, práticas e teorias que neste estudo está centrado na questão do espaço que emerge como manifestação de interconexões entre espectador e obra. O espaço metafórico é superado e um espaço de trânsitos e contatos é inaugurado.

A experiência, nesta esfera de inter-relações, altera o vetor de uma situação. Sua característica fundamental é a reconfiguração de hábitos a partir de propostas que incitam alterações, mudanças nas relações e nas configurações.

A estética, a relação

O pensamento aqui apresentado levanta questões relativas à aisthesis, como meio das relações que se estabelecem entre o mundo e o sujeito – aqui escolhido como o espectador - os modos como a percepção cria as intermediações entre o interno e o externo, e como a consciência é afetada pelas informações fornecidas pelas sensações, afetos e emoções.

A estética, como domínio da ciência e do conhecimento, tem origem na segunda metade do século XVIII e o filósofo alemão Alexander Gottlieb Baumgarten (1714-1762) é considerado uma espécie de fundador desta disciplina filosófica. A partir dele a estética reúne distintos campos do conhecimento e passa a se situar num âmbito que congrega conceitos como os de obra de arte, percepção e beleza. Tais conceitos, que pertenciam a distintos domínios, aparecem como variantes de um mesmo fenômeno – o fenômeno estético.

A estética proposta por Baumgarten propicia e avalia a produção de conhecimento, seu grande interesse de estudo. Sua zona de ação abrange aspectos sensíveis, como percepção e faculdades racionais.

Antes de escrever ―Aesthetica‖, entre 1750 e 1758, o filósofo propôs a ―tese de que o

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31 condicionada à superação a partir de uma lógica racional. Somente após inúmeros ajustes e modificações em suas abordagens é que ele sugere uma visão mais abrangente sobre a percepção e a sensibilidade, incluindo o não-racional nos processos cognitivos humanos. Assim, suas colocações podem ser apreendidas:

Baumgarten, contrariando a tendência predominante em sua época, investe sobre a percepção de um valor cognitivo positivo, concebendo a estética como disciplina que propicia e avalia a produção do conhecimento desde o seu lado sensível, dado pela percepção, até o seu lado lógico, avaliado pelas faculdades racionais. De forma simplificada, pode-se dizer que o lado perceptivo do conhecimento corresponde, para Baumgarten, àquelas impressões que possuímos dos objetos antes de formularmos o seu conceito. (KIRCHOF, 2003, p.147)

A arte e o belo eram compreendidos, antes de Baumgarten, como técnica e concepção moral, respectivamente, conforme indicação de Edgar Roberto Kirchof (2003). A integração de diferentes aspectos para a discussão do fenômeno estético cria uma área de conhecimento que, paralela ao pensamento cartesiano e lógico, sugere brechas para a discussão do sensível.

Ela indica uma capacidade primordial do ser humano de sentir a si próprio e ao mundo num todo integrado, como anuncia o autor João Francisco Duarte Júnior (2001). Ela restitui o conhecimento sensível e é contra o privilégio tradicionalmente concedido ao conhecimento conceitual, conforme anuncia Hans Robert Jauss (1979):

Enquanto experiência estética receptiva básica, a aisthesis corresponde assim a determinações diversas da arte: como ―pura visibilidade‖ (Konrad Fiedler), que compreende a recepção prazerosa do objeto estético como uma visão intensificada, sem conceito ou, através do processo de estranhamento (Chklovski), como uma visão renovada; como contemplação desinteressada da plenitude do objeto‖ (Moritz Geiger); como experiência da ―densidade do ser‖ (J-.P. Sartre); em suma, como ―pregnância perceptiva complexa‖ (Dieter Henrich). (JAUSS, 1979, p.101)

Entretanto, por um longo período a estética esteve vinculada às qualidades relativas ao objeto ou à obra da arte, como aconteceu no Renascimento, quando os aspectos formais e analíticos estipulavam valores e padrões artísticos. Neste momento, cabia ao espectador uma função muito mais analítica e orientada pelos valores constituídos do que o exercício da percepção e da sensibilidade. A obra de arte ocupava uma área delimitada por regras e parâmetros tão claros quanto os limites construídos entre esta e o público.

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32 considerados como eventos distintos. Parece-me pertinente então levantar breves considerações sobre aspectos fenomenológicos da questão, como modo de exemplificar pensamentos e reflexões que se propõem romper modelos pautados pelas dicotomias.

A fenomenologia, que tem sua origem no início do século XX com o filósofo alemão Edmund Husserl (1859-1938), traz como principal alvo um retorno ao homem em suas relações imediatas com as coisas, com o mundo, com o entorno e consigo próprio. A alternativa fenomenológica não aparece como um método, mas como uma atitude frente aos eventos da vida. Nas considerações de Maurice Merleau-Ponty, os alvos de interesse são: a essência que se esconde por detrás da aparência e os atos praticados, como o da percepção, que são em si a própria consciência sobre as coisas. Tal abordagem prevê ainda o corpo como lugar da percepção, do sentido e da experiência. E nas palavras do autor:

A experiência revela sob o espaço objetivo, no qual finalmente o corpo toma lugar, uma espacialidade primordial da qual a primeira é apenas o invólucro e que se confunde com o próprio ser do corpo. Ser corpo, nós o vimos, é estar atado a um certo mundo, e nosso corpo não está primeiramente no espaço: ele é no espaço‖ (MERLEAU-PONTY, 1999. p.205)

A percepção, deste modo, manifesta-se como evento de corporeidade, como relação estabelecida, e não como uma representação analítica e racional. Merleau-Ponty critica a supremacia da razão e anuncia que o conhecimento do mundo se dá através de experiências que desenham continuamente um novo corpo. Corpo este que aparece como o próprio lugar do conhecimento.

Um outro nome da fenomenologia é Martim Heidegger, que aparece no contexto desta pesquisa por conta das suas considerações sobre a percepção como acontecimento e não como

faculdade do homem. ―A percepção não é um modo de comportar-se, que o homem possui, como uma propriedade. Muito pelo contrário: a percepção é o acontecimento, que possui o

homem.‖ (HEIDEGGER, 1978, p.165).

Sob este enfoque e reconhecendo o conhecimento do mundo como superação de categorias dicotômicas, é possível vislumbrar aproximações entre pontos da fenomenologia e a noção de estética em seu sentido mais original. Assim, segundo João Francisco Duarte Júnior, a experiência estética seria um vibrar em comum, sentir em uníssono, experimentar coletivamente e colocar-se face a face com os estímulos do mundo.

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33 e relações. Experimentar o mundo como pela primeira vez, quando o entorno interfere na apreensão e incorporação do conhecimento.

A arte, nesta acepção, é um ―estado de encontro‖, conforme a noção do crítico Nicolas

Bourriaud, e um espaço de produção e troca que dá testemunho das efêmeras relações com o outro. Assim, ele ratifica sua abordagem fenomenológica da estética relacional. Tais encontros tendem a transformar as relações com o entorno e possibilitar experiências que desestabilizam padrões de interação e movimentos. Padrões estes que de algum modo anestesiam os sentidos. O tecido conectivo proposto pela estética que investe em relações que não se fundamentam em regras e padrões vigentes é um lugar de passagem onde se negociam trocas, deslocamentos, contaminações e agenciamentos.

Movimento 5: Arte como experiência estética ou “um mundo sem vis-à-vis

Ainda na abordagem da arte enquanto experiência estética e relação é possível citar procedimentos recorrentes em pensamentos e práticas orientais que dialogam com o objeto desta pesquisa, favorecendo a visualização de campos que se fundamentam em condições nas quais obra e espectador se aproximam.

Para levantar algumas considerações sobre essa abordagem serão considerados apontamentos do músico e compositor Hans-Joaquim Koellreutter (1915-2005) a partir da

troca de cartas com o músico japonês Satoshi Tanaka, no livro ―Estética: à procura de um mundo sem vis-à-vis‖. Uma das principais questões levantadas já no início das

correspondências trata de expor contextos ideológicos e estéticos do Oriente e do Ocidente. Para tanto, Takana sugere o desenho das condições que diferem as relações ocidentais e orientais a partir da imaginação de uma superfície, metáfora para a compreensão de um terreno de relações e engajamentos no mundo. Tal superfície, sob o ponto de vista da estética ocidental, tende a se relacionar com um ponto deslocado e situado logo acima da mesma. Takana descreve a imagem do seguinte modo:

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34 Nesta imagem estão sugeridas analogias que procuram viabilizar a compreensão de diferenças que estão na base dos procedimentos estéticos orientais e ocidentais. O oriental localiza-se na superfície e é de lá que estabelece seus vínculos. Ele não consegue visualizar o Absoluto, o ponto acima da superfície, e se compreende num plano bidimensional em que tudo é relativo e depende do ponto de vista. Neste contexto não há separação. O ocidental, em oposição, se dirige ao Absoluto e assim se separa, analisa e constrói sistemas de apreensão. A não separação oriental inclui e aproxima. Arte e vida não estão separadas e são consideradas

―caminho‖, do vocábulo japonês ―Dô‖. Assim ―sa-dô‖ é traduzido como cerimônia do chá, e

―ka-dô‖, arranjo de flores. Tais práticas não são consideradas como arte no sentido isolado do

movimento da vida, mas sim como ―caminhos‖, um caminho para filosofar e viver. Portanto,

as relações do oriental com a arte parecem se dar de modo imediato e direto. Ao contrário da relação do ocidental, que passa pelo contato tridimensional com o Absoluto.

Dos agenciamentos possíveis, os orientais constroem elos que se fazem no contato com seus pares e com o entorno. E somente quando este elo se rompe ele se sente isolado. No caso dos ocidentais, os indivíduos estão na superfície e isolados, cada um conectado ao seu Absoluto, ou ao seu Deus. Os elos são construídos em relação ao Absoluto e não em relação ao outro.

Neste ponto é possível destacar apontamentos no texto de Tanaka sobre aspectos negativos que podem se fazer nessa conexão oriental e bidimensional. Uma das questões é a dificuldade dos japoneses em se distanciar dos objetos que não são próprios da sua cultura e criticá-los de modo objetivo. O déficit de crítica anuncia também uma falta de auto-conhecimento. O japonês não se defronta verdadeiramente com outras culturas porque facilmente se entrega a elas, se mistura, se relaciona sem o auxílio de um ponto de fuga que o auxiliaria na visualização do contexto. A não visualização do outro parece demonstrar então a não visualização de si.

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35 Tais considerações lançam as bases para uma reflexão estética que não pretende formatar ou delimitar zonas, como Ocidente e Oriente, mas sim fomentar uma discussão que admite distintas possibilidades de agenciamentos do sujeito com a vida e com a arte, e diferentes vínculos entre obra e espectador.

Ao se fazer nos eventos diários, a arte não se isola em um espaço destinado a sua execução e ainda promove constantes encontros com o sujeito, seja ele artista ou espectador. O espaço entre obra e espectador aparece como um lugar de conexões e vínculos. Neste contexto, a obra é sugestão de relação e contato.

Contatos entre Ocidente e Oriente provocam alterações em noções e conceitos. Vestígios de uma zona conhecida pela orientação geográfica como oriental irão influenciar e reverberar em diferentes direções.

Movimento 6. Interferências: Oriente e Ocidente

Ainda sobre as interferências e trocas entre Ocidente e Oriente, é possível dizer que em diversos momentos da História da zona ocidental do mapa-mundi, e mais precisamente das regiões que se somam e compõem aquilo que conhecemos como Continente Europeu, ocorreram contaminações que alteraram profundamente padrões e referenciais. Tais alterações não foram e não são privilégio deste continente. Contudo, o interesse aqui é mapear e localizar interferências que parecem ter provocado a agitação de uma grande placa tectônica no campo das artes no Ocidente. Bases se alteram, o chão conhecido se rompe e um novo paradigma encontra solo para o seu desenvolvimento. Configura-se aqui um momento da História no qual processos de transformação alteram eixos e referenciais daquilo que se conhece como Arte.

No que se refere à arte contemporânea ocidental ou aos movimentos de vanguarda, é possível relacionar o campo em expansão que surge vinculando obra e espectador às influências de princípios como os de unidade, silêncio, vazio e fluxos espontâneos, originários de práticas como o Zen Budismo e o Taoísmo, principalmente. Tais princípios trouxeram ao contexto ocidental fundamentações que pretendiam romper com regras e esquemas binários e dualistas.

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