• Nenhum resultado encontrado

É importante destacar que o mundo – lugar de passagem e trânsito – costuma ser estudado, analisado e classificado de acordo com medidas abstratas que se prestam ao objetivo que fixar e definir uma ideia e um conceito sobre um território incomensurável. O mundo real é um mundo descrito a partir de abstrações, como medidas de tempo e espaço, que projetam experiências quantitativas e explicações que procuram reter um lugar que está em constante movimento. Há uma tendência que visa medir a qualidade e transformá-la em quantidade como modo de assegurar uma área limitada e controlável. E sobre este aspecto, é interessante notar:

Quando um cozinheiro, preparando um ensopado, acrescenta sal, acrescenta sal, prova o sabor, põe um pouco mais de sal, prova de novo e então diz: ―Agora está perfeito‖, podemos ter alguém atrás dele registrando a afetiva quantidade de sal acrescentada. E isso seria a abstração quantitativa que corresponde a uma experiência de sabor que não foi absolutamente uma abstração. Entretanto, para trazer as pessoas de volta ao mundo real, você precisa suspender temporariamente o pensamento abstrato delas, porque é através da abstração que se divide tudo em diferenças. É através da abstração que você chega à noção de que você é uma coisa e eu sou uma outra e de que os acontecimentos são separados uns dos outros do mesmo modo como os minutos são separados. (WATTS, 2002, P.61)

Então o mundo como compreensão intelectual é uma abstração e não algo concreto. O conhecimento do mundo, neste caso, parece coincidir com o conhecimento de medidas abstratas e não com a experiência do espaço. Neste contexto, vale à pena pontuar tal questão a partir da seguinte reflexão:

80

Como um cientista trata o que ele chama de mundo material? Resposta: através de métodos quantitativos. Como se estabelece a quantidade? Pela medição, pelo número, isto é, representando a natureza em termos de categorias abstratas – metros, centímetros, segundos, graus e assim por diante -, todas elas exatamente tão abstratas quanto as linhas de latitude e longitude em um globo. (WATTS, 2002, p.60)

Entretanto, a experiência do mundo e do espaço é algo que ultrapassa os entendimentos abstratos e acontece diretamente na interação do sujeito com o entorno. Considerando os apontamentos de Alan Watts:

O mundo que pode ser visto e sentido sem abstrações é o mundo no qual você está ligado a tudo que existe, ao Tao e a todo o curso da natureza. No entanto, você tem sido ensinado de modo diferente porque tem sido logrado e manobrado por pessoas que tagarelam e explicam, e que já hipnotizaram a si mesmas com uma visão do mundo que é bastante abstrata, bastante arbitrária e não necessariamente do modo como as coisas são. (WATTS, 2002, p.62)

A partir desta abordagem de espaço é possível trazer a noção de espaço potencial de Donald Woods Winnicott (1896-1971), que deriva do seu conceito de espaço transacional. Para o psicanalista inglês, o espaço transacional está relacionado com as maneiras de captar e apreender o mundo. Tal espaço pode ser compreendido a partir das relações que as crianças estabelecem com objetos por elas escolhidos, como bonecas, fraldas de pano, chupetas etc.

Depois de alguns meses de vida a criança começa a perceber a separação entre o seu corpo e o da sua mãe. E é desta experiência que a criança sentirá a necessidade de encontrar meios e elementos que a auxiliem em sua relação com o mundo. Surgem então os objetos transacionais e com eles o espaço transacional. E é deste lugar que a criança parece lidar melhor com as suas angústias e dialogar com o entorno. Acontece um jogo particular que permite à criança interagir com o meio.

Segundo Josette Féral (2003), o espaço transacional é potencial e virtual, podendo ser físico ou mental. Ainda de acordo com a autora ―Winnicott toma esta ideia como base de sua análise e mostra que a cultura cria seu espaço potencial através da arte. Para que a arte exista deve haver o espaço potencial.‖ (FÉRAL, 2003, p.42).

O espaço potencial, na concepção de Winnicott, não se limita aos aspectos reconhecidos visualmente, da esfera das propriedades físicas, mas também aos princípios e às dinâmicas mentais. De modo que este espaço pode estar nos olhos daquele que vê, como nos olhos do espectador, como afirma Féral.

Ao tomar então como base o espaço potencial, que não é aquele onde coisas são dispostas, mas sim aquele que surge da relação, é possível seguir com o movimento seguinte.

81 Movimento 2. Espaço e corpo, instâncias entre a obra e o espectador

Os procedimentos de Pina Bausch e Lygia Clark mencionados no ato anterior sugerem possíveis diálogos com a noção de espaço investigada no contexto da arte contemporânea no que se refere ao lugar como campo potencial. Tal noção se interessa pela transformação do espaço ordinário, favorecendo alterações na percepção e na experiência do acontecimento artístico.

Um espaço de relação surge entre obra e espectador. O corpo e o espaço aparecem como instâncias, dinâmicas, interações e movimentos. O corpo aparece como suporte da experiência artística e uma nova perspectiva quanto à configuração de espaço é apresentada. As relações preveem o deslocamento do corpo em suas interações e reverberações.

Corpo

No âmbito desta pesquisa destaco a presença do corpo do espectador, muito embora a preparação e o modo como os corpos dos bailarinos-atores da Cia. de Pina Bausch se colocam diante da plateia sejam um dos principais fatores desta ativação.

A noção de corpo aqui adotada coincide com a ideia de um ―corpo à espera de‖, como sugere José Gil em seu livro ―O Movimento Total‖; ou como ―becoming-body‖, (―tornando-se corpo‖, em português) como indica Erin Manning38. Ambas as noções favorecem a

compreensão de um corpo que está em constante mobilidade e transformação. Seus movimentos são atravessados por pequenas interferências que provocam contrastes, diferenças e a ativação da memória.

Enquanto a função da arte é questionada, o corpo do espectador em sua presença ativa no espaço é alvo de especulações e propostas que compreendem a arte como experiência. Tal experiência implica na ativação de forças que impulsionam o corpo em direção à construção de novos sentidos. Há então uma ação de mão dupla. O ambiente estimula – muitas vezes em sua própria presença – e o corpo ao interagir com o ambiente aciona conexões, trajetos e redes que se atualizam no espaço onde ele transita. O corpo se altera e altera o ambiente. O ato acontece em curvas. As interferências do meio afetam os movimentos através de pequenos desvios que alteram os trajetos lineares previstos. A linha reta se desestabiliza e percorre

38MANNING, Erin, no artigo ―Prepositions for the Vergue – William Forsythe´s Choreographic Objects‖. Inflexions No.2 ―Nexus‖ (December 2008) www.inflexions.org

82 caminhos que sugerem diferentes direções. Na mudança do sentido do movimento acontece a curva, o instante em que a trajetória surpreende. Um novo direcionamento é apontado e novos caminhos podem ser percorridos – no âmbito artístico ou cotidiano.

No contexto abordado acima, o corpo aparece como ―poder de transformação e devir‖, conforme síntese criada por José Gil (2007) em suas reflexões sobre Deleuze e Guattari.

A redescoberta do corpo sugerida e proposta por ações de vanguarda coincide, de algum modo, com a descoberta do espaço (ou vice-versa) como lugar que não está dissociado das coisas e dos acontecimentos, e favorece uma renúncia à representação. Análises e julgamentos são reconsiderados em prol de uma ―percepção total‖ que prevê a premência da subjetividade e da experiência estética em relação aos códigos conceituais que delimitam zonas de ação para o evento da arte.

Ao discorrer sobre a presença do corpo nas vanguardas artísticas, Renato Cohen (1989) aponta:

Jackson Pollock lança a idéia de que o artista deve ser o sujeito e o objeto de sua obra. Há uma transferência da pintura para o ato de pintar enquanto objeto artístico. A partir desse novo conceito, vai ganhar importância a movimentação física do artista durante sua ‗encenação‘. O caminho das artes cênicas será percorrido então pelo approach das artes plásticas: o artista irá prestar atenção à forma de utilização de seu corpo-instrumento, a sua interação com a relação espaço-tempo e a sua ligação com o público. (COHEN, 1989, p.44)

No contexto dos processos artísticos que se concentram nas interações e na presença do corpo, os aspectos visíveis e invisíveis deste mesmo corpo desencadeiam análises, estudos, práticas e reflexões que pretendem promover o acontecimento da obra na ação, na interação do sujeito com o ambiente. O corpo é descoberto pelas vanguardas como possibilidade de suporte, em uma concepção que o anuncia como espaço móvel, maleável, vulnerável e sujeito a interferências em distintos campos da arte. Para elucidar tal condição do corpo é possível mencioná-lo como órgão que capta as mais sutis vibrações do mundo, como anuncia José Gil (2004).

Espaço

Para tratar do espaço, inicio com a seguinte citação de Didi-Huberman, estudioso de psicanálise, crítico e teórico da arte:

Portamos o espaço diretamente na carne. Espaço que não é uma categoria ideal do entendimento, mas o elemento despercebido, fundamental, de todas as nossas experiências sensoriais ou fantasmáticas. (...) As imagens — as coisas visuais —

83

são sempre já lugares: elas só aparecem como paradoxos em ato nos quais as coordenadas espaciais se rompem, se abrem a nós e acabam por se abrir em nós, para nos abrir e com isso nos incorporar (DIDI-HURBERMAN, 1998, p.246- 247, apud Tania Rivera39)

O espaço concebido no Ocidente como lugar dentro e fora constitui o interior no sujeito ou no objeto e o exterior na realidade que o cerca. Assim, sujeito e ambiente aparecem separados na sua origem, mobilidade e apresentação no mundo. E é pautada nesta cisão que a arte ocidental se desenvolve, até que sejam lançadas as interrogações anunciadas pelas vanguardas no final do século XIX e início do século XX na Europa. Neste momento concepções menos dualistas, muitas vezes fundamentadas em princípios de procedimentos orientais sobre a concepção do espaço, do objeto e do sujeito, tratam de reformular o lugar do acontecimento da arte. Os planos se tocam e uma plataforma móvel e comunicante assegura o trânsito entre objeto, sujeito e espaço.

Sobre tais transformações afirma Mario Pedrosa:

Não se trata mais de um espaço contemplativo, mas de um espaço circundante. Já em 1922, Maholy-Nagy, com Alfredo Kemeny, lançavam, nas pegadas de Gabo- Pevsner, um manifesto sobre o sistema de forças dinâmico-construtivo que, ―ativando o espaço‖, permitiria ao homem, ―até aqui meramente receptivo em sua observação das obras de arte, experimentar uma intensificação de suas próprias faculdades, tornando-se ele mesmo um parceiro ativo das forças que por si mesmas desabrochavam. (CLARK, 1980, p. 17)

Este novo espaço que surge após rupturas e alterações em estruturas pautadas em normas e referenciais fixos revisa princípios fundamentais para os processos artísticos. O ato, ou a ação desencadeada, é um dos principais alvos de interesse nos procedimentos no início do século XX e, sobretudo, na década de 1960. Neste ato está implicado o espaço, o sujeito e o objeto. A interação entre eles provocará transformações na concepção do evento artístico, assim como em outras áreas do conhecimento.

As vanguardas do início do século XX experimentaram na performance, no happening, na live art e em movimentos outros, rupturas que provocaram expansões de limites entre um e outro campo artístico e questionamentos sobre a função e o espaço da arte. O espaço das representações foi transformado em tempo-espaço ―vivo‖. As influências de práticas orientais são percebidas principalmente nas orientações de aqui-agora e arte e vida. Aproximações

39 Localização, http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S151614982008000200004&script=sci_arttext. Acesso dia 17.05.2011

84 entre o cotidiano e o fenômeno artístico transportam a arte de uma posição sacra e inatingível para os movimentos do cotidiano.

Sobre investigações das vanguardas artísticas, Jorge Glusberg aponta que havia:

(...) uma busca de envolvimento do público na atividade artística. Poetas, pintores, dramaturgos e músicos denunciavam a estagnação e o isolamento da arte de então. O que se buscava era uma vasta abertura entre as formas de expressão artística, diminuindo de um lado a distância entre vida e arte e, por outro lado, que os artistas se convertessem em mediadores de um processo social (estético-social). (GLUSBERG, 2009, p.12)

No livro ―Performance como Linguagem‖, Renato Cohen utiliza as palavras de John Cage: ―Gostaria que se pudesse considerar a vida cotidiana como um teatro‖. (1989, p.38).

O lugar que surge, da revisão de conceitos apontada acima e das aproximações entre arte e vida exploradas pelos movimentos de vanguarda é um espaço de interações ou conforme considerações de Beatriz Scigliano Carneiro40: ―espaços onde se reuniram resquícios de vários outros espaços e tempos formando um conjunto que se deslocaria do cotidiano, permitindo experiências paralelas diversas‖ (CARNEIRO, 2004, p.40). Foucault, em considerações de Carneiro (2004), afirma ainda que no século XIX o foco era o tempo e que ―nossa época atual será talvez a época do espaço.‖41

Sob este enfoque, o tempo não aparece de modo independente ou deslocado do evento, mas como agente e distribuidor de elementos no espaço, como indica Carneiro (2004). Inaugura-se então um espaço compreendido como sistema de relações e não como lugar vazio que abriga coisas e pessoas. Lugar é espaço vivenciado, descrevê-lo é descrever as relações que o configuram.