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1. A ARTE DE CONTAR HISTÓRIAS E LETRAMENTO LITERÁRIO

1.4 APROXIMANDO VISÕES

Ricardo Azevedo, escritor, ilustrador, folclorista, estudioso da cultura popular6, chama atenção para a relação entre a cultura popular e o chamado universo literário infantil. Vários pontos são discutidos em seus artigos a respeito desse tema, como: a forma com que essa relação pode contribuir na formação de leitores de todas as idades, independente da faixa etária; a própria questão da divisão das pessoas em faixas etárias e como isso, em se tratando de literatura e arte, é um equívoco; a questão dos tipos de discurso: científico e poético, rebuscado e simples, direto, claro e indireto, obscuro, etc.; o poder que a arte – literária, no caso – tem de transformar, de partilhar experiências, de levar a refletir sobre temas que não têm uma explicação lógica, racional, definida, como a morte, o amor, o medo, a felicidade.

Segundo o autor (2005), a formação do leitor está vinculada a todos esses fatores supracitados de forma complexa, entremeada intimamente com a visão da sociedade dominante imposta pela escola, pelas editoras e pelos próprios escritores. De toda sua discussão, de grande importância para esse trabalho é a visão positiva em defesa de uma literatura que traga para dentro da escola o diálogo entre esses dois mundos: a cultura local, com os conhecimentos que meninos e meninas trazem de suas casas e que dialogue de maneira

6 Para o autor (2000) “a cultura popular, ou o folclore é, como queria Varagnac, ‘um conjunto de

crenças coletivas sem doutrinas e de práticas coletivas sem teoria’. Essa ‘ciência’ popular busca também interpretar e domar as forças da natureza, mas o faz a partir, principalmente, da visão analógica e intuitiva, da aproximação afetiva, corporal e subjetiva da realidade.” Disponível em http://www.ricardoazevedo.com.br/Artigo03.htm Acesso em 11 de janeiro de 2008.

saudável e crítica com os conhecimentos, ou melhor, dizendo, com os discursos que a escola valoriza.

Neste ponto, a literatura pode ser um instrumento poderoso para essa troca de idéias, pois é o espaço das ambigüidades, dos temas inquietantes, da motivação estética, da maneira nunca antes pensada de se enxergar o mundo, da poesia, das metáforas, do estranhamento, das brincadeiras com a linguagem escrita e/ou oral. Porém, se a literatura for transformada em mais um discurso da escola, em que tarefas são impostas aos alunos de forma arbitrária e utilitária como todo discurso didático, então, formar leitores será um desafio muito maior. A literatura defendida por Ricardo Azevedo é considerada tanto do ponto de vista da forma quanto do conteúdo, uma literatura ligada às manifestações populares. Segundo suas palavras, dessa maneira, “teremos uma literatura mais rica, complexa e humana.” (AZEVEDO, s.d.7)

Para Azevedo (2007)8, a cultura popular e, em particular, os contos populares podem aproximar os leitores da literatura valorizada:

Na minha visão, os contos populares9, independentemente de

rótulos como “cultura popular”, “folclore” e outros, podem ser considerados uma excelente introdução à literatura pois nada mais fazem do que trazer ao leitor, de forma acessível e compartilhável, enredos, imagens e temas recorrentes na ficção e na poesia.

As características dos contos em relação ao estilo, conteúdo e forma, permitem que todo o tipo de público, adulto ou infantil, de diferentes níveis de escolaridade e letramentos variados, possam compartilhar dessas imagens, enredos e temas sem dificuldade. Isso porque os contos populares são originalmente construídos na oralidade, base do pensamento dos povos de cultura ágrafa.

7 Disponível em: http://www.ricardoazevedo.com.br/Artigo07.htm Acesso em 07 de janeiro de 2008. 8 Disponível em: http://www.ricardoazevedo.com.br/Artigo13Contos.htm#_ftn1 Acesso em: 08 de

janeiro de 2008.

9 Ricardo Azevedo considera como sendo “contos populares”, os contos de fadas, contos de

encantamento, contos maravilhosos e histórias de trancoso, chamadas dessa maneira no nordeste brasileiro.

Segundo o autor (2005), vários estudiosos da oralidade, como Ong (1982), Olson (1995), entre outros, identificaram que certas características, entre crianças e adultos de cultura ágrafa, são comuns, porque o pensamento oral é construído através da fala, do gesto e da memória. Dessa maneira, Azevedo aponta que essa construção deve ser levada em consideração dentro das escolas que recebem alunos vindos de uma experiência familiar muito mais ligada à cultura oral, típica das camadas populares10, que à escrita, ligada à elite

e das classes sociais mais abastadas.

Em relação ao estilo ou discurso, os contos são marcados pela linguagem direta, concreta, clara, cheias de expressões pré-fabricadas, devido ao contato direto entre ouvinte e narrador que o discurso oral exige. Segundo o autor, o mesmo ocorre em obras literárias destinadas ao público infantil: vocabulário acessível, linguagem direta, clara, marcada por repetições e frases feitas.

Em relação ao conteúdo, de acordo com Azevedo (s.d.)11, a relação entre literatura infantil e contos populares se dá por alguns aspectos, como: 1) elemento cômico; 2) o uso da fantasia e da ficção; 3) personagens movidos muito mais por questões subjetivas, pela busca da felicidade, baseados nos próprios sentidos do que por uma ética geral, moralista, que define certo e errado de forma impessoal e imparcial; 4) temas tradicionais, geralmente ligados às narrativas de iniciação, em que o assunto trata da busca de identidade, do auto- conhecimento ou da disputa do velho contra o novo. Esses temas são recorrentes nos contos de fadas de maneira geral e em algumas obras literárias autorais; 5) uso de personalidades e formas humanas para objetos, animais,

10 Azevedo chama de “camadas populares” as “populações rurais, as camadas empobrecidas das

periferias urbanas e os grupos de indivíduos que, embora materialmente próximos das camadas privilegiadas, manifestam uma visão de mundo semelhante àquela da cultura popular”. Ou a “classe operária de baixo poder aquisitivo, os pobres dos grandes centros e o homem do campo. Como inferência dessa falta de poder aquisitivo, a cultura do grupo se baseia na oralidade ou numa incipiente escolarização, o que impede a equiparação com o saber sistemático, erudito, da classe dominante”. Disponível em: http://www.ricardoazevedo.com.br/artigo10.htm Acesso em 07 de janeiro de 2008.

11 Disponível em: http://www.ricardoazevedo.com.br/Artigo07.htm. Acesso em: 08 de janeiro de

plantas, lugares etc.; 6) possibilidade da metamorfose; 7) uso de palavras mágicas; 8) característica iniciática, como o enfrentamento de desafios, a partida para encarar tais desafios, a luta, o retorno do herói modificado e transformado; 9) imagens recorrentes como vôos mágicos, monstros, dragões, etc.; 10) o final feliz, indicando, do ponto de vista do autor, a completude do ciclo do eterno retorno. Dito por palavras do autor (s.d.)12: “tudo é fecundado, nasce, cresce,

prospera, decai, apodrece, morre e renasce. Em outras palavras, tudo, no fim, acaba voltando à pureza original, portanto, no fim, tudo dá certo.”

Esses elementos, também estudados, como veremos por Vladmir Propp, são constitutivos do universo popular. A estes, unem-se outros elementos ligados à forma, que segundo Azevedo (1998)13, baseando-se nos estudos de Zumthor (1993), são chamados de “índices da oralidade”. São eles: 1) adaptação à platéia por meio da linguagem familiar e cotidiana; 2) sedução da platéia através de recursos como o tom da voz, as pausas, silêncio, as frases de efeito, os trocadilhos, rimas, refrões, etc.; 3) concisão das frases, uso da voz ativa, conceitos e imagens concretas.

Nas manifestações populares e nos contos da tradição oral é que Azevedo (1998) acredita que deva estar a raiz da literatura infantil, pois os autores podem encontrar neste vasto e rico universo fonte para uma literatura que seja capaz de estabelecer uma comunhão entre leitor e livro, entre ouvinte e narrador e que preze pelo prazer, pela apreciação do belo, do inusitado e pela liberdade de interpretação. É por essa literatura que Azevedo pretende formar educadores e leitores. Segundo ele (2005, p. 79),

falar em literatura, como sabemos, significa falar em ficção e discurso poético, mas muito mais do que isso. Significa abordar assuntos vistos, invariavelmente, do ponto de vista da subjetividade. Significa a motivação estética. Significa remeter ao imaginário. Significa entrar em contato com especulações e não com lições. Significa o uso livre da fantasia com forma de experimentar a verdade. Significa a utilização de recursos como a

12 Disponível em: http://www.ricardoazevedo.com.br/Artigo07.htm. Acesso em: 08 de janeiro de

2008.

13 Disponível em: http://www.ricardoazevedo.com.br/Artigo02.htm - _ftn1 Acesso em: 15 de agosto

linguagem metafórica. Significa o uso criativo e até transgressivo da língua.

Esta pesquisa aborda, pois, com base em tais fundamentos, a arte de contar histórias em relação com o letramento literário, como contribuição para a formação do leitor literário. Seu objetivo geral é investigar o impacto de vivências com contos da tradição oral como elemento de apropriação do letramento literário. A hipótese adotada na pesquisa é a de que os contos de tradição oral incentivam a leitura dos livros em que as histórias estão escritas.

Para atingir este objetivo principal, a pesquisa busca responder às seguintes questões:

1) Quais os letramentos locais dos participantes da pesquisa, que estão entremeados às experiências de (re)contagem de histórias no espaço escolar? 2) Nos eventos de letramentos de (re)contagem de histórias em espaço escolar, como se relacionam culturas locais e cultura valorizada escolar?

3) Que tipos de narrativas emergem nestes eventos? 4) O que propõe o contador de histórias neste contexto?

5) Qual a recepção dos alunos em relação a essas narrativas e eventos de letramento?

6) O que os resultados apontam em relação à formação do leitor literário? Diante destas perguntas de pesquisa, fez-se necessária a convocação de diversas áreas do conhecimento para o estudo; assim, este trabalho procura subsídios em diversas disciplinas/teorias/áreas do conhecimento, como a narratologia, as artes cênicas, os conceitos de letramento(s) e de letramento literário, os estudos sobre imaginação, sobre oralidade, entre outros, a fim de iluminar teoricamente as questões levantadas. É, portanto, um trabalho interdisciplinar, já que “estabelece fronteiras estreitas e porosas entre as arenas intelectuais relacionadas”, como afirma Kumaravadivelu (2006, p. 129).

Por causa destas fronteiras, esta dissertação foi desenvolvida começando por este capítulo introdutório, em que se ressaltou o objeto de estudo do trabalho, a relação da arte de contar histórias com o letramento literário, como complexa e multifacetada. O segundo capítulo aborda os estudos sobre a narrativa, dos estudos estruturais, como a narratologia, até os estudos sobre a recepção das narrativas. O terceiro capítulo abrangeu a arte de contar histórias na figura do contador de histórias contemporâneo, as relações entre conto e contador, um pequeno histórico sobre os contos da tradição oral ocidental. O capítulo quatro traz a metodologia de pesquisa e os capítulos cinco e seis as análises dos dados, seguidas de conclusão.

2. Estudos formais, estruturais e funcionais sobre a