• Nenhum resultado encontrado

3. HISTÓRIAS E CONTADORES DE HISTÓRIAS

3.2 CONTO E CONTADOR

A contemporaneidade tem se deparado com o “boom” dos contadores de histórias (Sisto, 2001), fenômeno que ocorreu no Brasil há aproximadamente 15 anos, relacionado às políticas públicas de incentivo à leitura, melhoria da educação no país, etc. A atividade de contar histórias deixa de ser função exclusiva de professores e bibliotecários e conquista outros adeptos: atores, músicos, estudiosos da literatura (oral e escrita), poetas e escritores, donas - de casa, avós, recreacionistas, ou simplesmente aqueles que gostam de contar e ouvir histórias.

Sisto (2001) aponta para a necessidade de um preparo para contar histórias a fim de garantir a qualidade dos momentos nos quais se contam histórias.

Segundo o autor (2001, p. 81): ler o mundo através da contação30

de histórias implica também opção estética, linguagem artística coerente e bem definida, sem a qual o ato de contar histórias não adquire o status de Arte, e fica sendo apenas um apanhado de histórias sem um fio condutor que as organize na forma de espetáculo.

Sendo assim, diversos autores (Coelho, 1987; Machado, 2004; Matos, 2005; Sisto, 2001; Tahan, 1957) apontam que o preparo do contador e a escolha dos contos devem ser feitos de maneira criteriosa, cuidadosa e demandam preparo interno e externo do contador, desde a observação e percepção cuidadosa das coisas, até o domínio de recursos técnicos. Além também da aprendizagem com a experiência prática de ouvir e contar, para que a qualidade literária das histórias contadas e o momento compartilhado entre narrador e ouvintes façam parte de uma experiência significativa de apreciação estética.

É mais que necessário, na formação de um contador de histórias, um trabalho que valorize o autoconhecimento, o conhecimento do outro; um exercício de percepção das ressonâncias que cada história nos revela num momento, em outro e outro; ter em mente que contar histórias também significa salvar o mundo imaginário, pois vivemos num mundo rodeados de imagens prontas e acabadas, muitas vezes opacas de significado estético, que são reproduzidas desenfreadamente pela mídia analógica e digital impedindo o exercício da imaginação criadora (Sisto, 2001). Apesar disso, algumas produções que se preocupam com a qualidade das provocações estéticas das imagens utilizam a mídia de maneira criativa, original e plena de significado estético. São exemplos: Hoje é Dia de Maria (minissérie televisiva), os Mangás japoneses, Histórias em Quadrinhos da Marvel como também ilustradores de livros como Fernando Vilela no livro Lampião e Lancelote ou Demóstenes Vargas que teve suas ilustrações bordadas pelas Irmãs Dumond para o livro A moça

tecelã de Marina Colasanti.

Contar histórias deve ser encarado como um grande desafio, por ser uma qualificação de muitas responsabilidades. Como pensa Sisto (2001, p. 46), “contar histórias não é só dizer um texto, mas “vivificar” a história de uma forma quase ritualística, se pensarmos na evocação. O contador evoca algo que já aconteceu”. Tarefa que exige uma delicada preparação.

O preparo para contar uma história não pressupõe enumerar técnicas ou receitas para ser um contador. É preciso avaliar a própria experiência, tirar dela as aprendizagens de cada momento, de movimento, de cada olhar, de cada gesto. É este caminho que, quando percorrido, nos mostra as transformações ocorridas no contador ao preparar uma história. Nesse estudo das histórias é necessário fazer a tão destacada pergunta que Machado (2004, p. 55) traz em seu livro: “O que eu tenho para você, história? E o que você tem para mim?”; é então estar à serviço da história a ser narrada (Sisto, 2001).

Uma história nunca é escolhida por acaso. Ela vem ao encontro do contador, permitindo-lhe (re)encontrar um pouco de si mesmo. A partir dessa primeira aproximação, a história torna-se uma assídua companheira, respira e pulsa dentro do contador. É preciso gostar muito da história para poder contá-la.

O trabalho com a leitura não é apenas decorar as palavras do texto, mas perceber as qualidades literárias do texto, seu estilo, conhecer suas personagens, visitá-las em suas paisagens. Perceber que sensações esse contato causa. Não é uma fácil tarefa; é arte. Como questiona Pinheiro (2004, p. 15): “se a intenção do contador é emocionar, como fazer da história um ato mecânico e decorado?”

O trecho que segue abaixo foi retirado do diário de campo dessa contadora-pesquisadora de histórias, numa situação em que ela registrou a sensação de uma experiência após contar uma história em um projeto da prefeitura municipal de Campinas, promovido pela Secretaria Municipal de Assistência Social, no qual o objetivo era formar novos contadores de histórias:

Me centrei em mim, na minha história. Como se a tivesse “acordado” dentro de mim “Vamos lá, é hora de você (história)

brilhar, de te dar vida” mas tudo isso em questão de segundos...Virei para o grupo e comecei. Vi que as pessoas – mesmo aqueles que já haviam me ouvido contar essa história – riam e se encantavam com o sapinho e a cobrinha. Ao recolher esses olhares fui me enchendo de luz e vivendo cada vez mais a história. E quando, o sapinho reencontrou a cobrinha e disse que não poderia mais rastejar... senti a dor e a vontade reprimida daquela personagem... quis chorar... mas acabei rindo de mim, Lívia, a contadora-pesquisadora emocionada e mexida com a história que contava (4 de maio de 2004).31

Essa necessidade de um estudo, de aproximação com a história remete a outras reflexões: não é qualquer história que deve ser escolhida, deve-se procurar ter um olhar crítico e minucioso na sua escolha levando em consideração para quem contar, onde contar e o que contar. Nada pode passar despercebido aos olhos de um bom contador, que deve levar essas perguntas sempre consigo.

O trabalho da arte de contar histórias se inicia nesse encontro entre conto e contador. Depois, há se iniciar uma busca pela história nos movimentos do corpo, para que este acompanhe o ritmo e o pulsar pedido por cada parte da história.

Segundo Machado (2004, p. 54): experimentar essas qualidades, sempre como fruto dessa conversa entre imagens internas do contador é um exercício de ir “colorindo” a história, trazendo à tona a variedade de tonalidades, brilhos, ênfases, nuances, o movimento vivo, o ritmo da narrativa.

É importante ressaltar que o preparo para contar histórias vai além do conto e do contador. É preciso um ritual semelhante à chegada de alguém muito importante. Receber uma história também exige esse ritual e o contador tem à sua disposição inúmeras formas de convidar os ouvintes a receber a história. A forma mais comum, mas não menos importante é o “Era uma vez...”, essas três palavras que marcam a passagem da vida cotidiana, do mundo do dia-a-dia, para o mundo imaginário, das possibilidades, que presentifica a história para contador

31 PINHEIRO, Lívia Rodrigues. Essa historia de contar historias: a contribuição desta arte na

formação do pedagogo. 2004. 47 p. Monografia (Trabalho de conclusão de curso de Pedagogia) - Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2004.

e para a audiência. A realização dessa passagem é tão importante quanto o conto, pois ela faz parte da arte de narrar (Machado, 2004). Também existem formas de finalização desse ritual que muitos conhecem bem: “Entrou por uma porta e saiu por outra...”, “Entrou com um pé de pinto, saiu por um pé de pato. Manda El-Rei meu senhor que me conte quatro”, “Acabou história e morreu vitória” e assim por diante. Podemos perceber que tais finalizações também estão fortemente associadas à cultura oral de cada sociedade, principalmente sociedades com pouco contato à cultura ocidental que preservam seus rituais de finalização. O importante deste momento é marcar a ruptura, voltar ao tempo- espaço reais, despedir-se daquela história e ficar com a sensação da experiência estética que ela provoca.

A escolha do espaço físico onde se contar histórias é fundamental. O olhar do contador deve estar voltado à escolha do local que pode variar conforme sua especificidade. Lugares aconchegantes de paredes neutras, ou de baixo da sombra de uma árvore, a biblioteca, ou a própria sala de aula com uma disposição diferente da habitual, delimitando-se o espaço entre o público e o contador. A organização do espaço se dá devido a diversos fatores: o ambiente deve estar preparado de forma que todos consigam ver e ouvir o contador; ter pouca ou nenhuma movimentação; buscar a neutralidade do espaço, evitando paredes que contenham desenhos, cartazes, escrita, janelas etc., de forma que a atenção não seja desviada para outros focos. A neutralidade desse espaço é justificada para que as imagens formadas na imaginação dos ouvintes possam se projetar sem qualquer interferência alheia à história (Machado, 2004).

A formação do público em meio círculo auxilia o contador, pois nesta disposição, ele mantém em foco o olhar de seus ouvintes, capta suas emoções e sentimentos durante a história, convidando-os assim a entrar nesse fantástico mundo imaginário.

Como pensa Sisto (2001, p. 66): o olhar funciona como cordão umbilical, que mantém o vínculo do contador com o público, e, portanto, não pode ser falseado! O olhar no olho das pessoas é trazê-las para dentro da história. Fingir que olha é afastá-las para o desinteresse e para o não envolvimento.

O ritual de contar histórias se inicia com uma conversa, uma música, uma brincadeira; alguns elementos que aproximam afetivamente o contador do seu ouvinte. Trata-se de um convite para ouvir ir conquistando a atenção dessa escuta. A participação dos ouvintes durante a história é bem vinda, já que os imprevistos podem e devem ser usados como um diálogo entre ouvinte-história- contador, sempre em prol da história e daquele momento que se torna único. Mesmo que o contador conte a mesma história em outro momento, ela nunca será igual.