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Letramentos locais: “O Clube do Travesseiro”

5. ANÁLISE DOS DADOS: LETRAMENTOS

5.1 L ETRAMENTOS LOCAIS , GLOBAIS E ESCOLARES : O CONHECIMENTO DOS

5.1.1 Letramentos locais: “O Clube do Travesseiro”

Um dado tão particular como “O Clube do Travesseiro” que será descrito a seguir merece destaque na análise dos dados. Este dado representa

eventos de letramento que ocorrem na história de letramento de uma das alunas entrevistadas, N, considerada boa aluna, boa leitora e boa contadora de histórias pela professora e pelos seus colegas de turma. Segue o Exemplo e, posteriormente, os comentários:

Exemplo18 (Entrevista com N)

C: E você me falou que vocês se reúnem pra contar história? É isso? N: [Afirma com a cabeça]

C: Como que é isso?

N: É o clube do travesseiro. A gente apaga todas as luzes, fecha a janela, a gente fica contando história de terror, depois fica contando e depois poema.

C: Ah! Clube do travesseiro? E onde é esse clube? N: Na casa da Pa por que ela que inventou.

C: E a Pa estuda aqui também, não? N: Não.

(...)

C: E onde ela mora? Ela mora perto da sua casa? N: Ela mora na minha frente e a Isa. mora na esquina.

C: E aí, esse clube do travesseiro, quem que participa? Você, a Pa... N: E a Isa.

C: São as três sempre na casa dela? N: [Afirma com a cabeça]

C: E de onde vocês tiram as histórias pra contar?

N: A gente vai lendo em livros ou a gente inventa ou a gente vê em filme. E depois ela tem um livro de poemas, caldeirão de poemas52.

C: Caldei...cadê o Caldeirão de poemas? N: Não O Caldeirão de poemas.

C: E de quem que é?

N: É da Pa Ela tem dois livrinhos e a gente lê. C: Tá, mas eu disse assim quem que escreveu? N: Ah! Isso eu não sei a Pa não mostrou.

C: Ah... E os poemas são de terror também? N: Não.

C: São do quê?

N: São de animação, de romance e de comida.

C: Ah que legal! E dos poemas todos quais que você gosta mais? N: É um que o jacaré abre a boca e fala: “Entra!” E os peixinhos entram.

C: Que legal vou procurar Caldeirão de poemas. E esse clube do travesseiro se reúne? N: Sexta e sábado.

C: Toda sexta e sábado? N: [Afirma com a cabeça]

C: Nossa então vocês tem que procurar bastante histórias nos livros né? N: [Afirma com a cabeça]

C: Ou nos filmes... E cada uma conta uma? N: [Afirma com a cabeça]

C: Que a outra não conhece. N: Ou pode conhecer.

C: E você tem alguma que veio aí do fim de semana?

N: Ah tem uma que eu falei, é... Ah! Outro dia eu estava procurando aqui aquele livro que você tem na biblioteca pra ler da cabra.

C: Ah, o do Lendas Brasileiras53?

N: [Afirma com a cabeça]

C: Aquele lá tem a missa dos mortos. Você viu? Eu te mostrei o livro? N: Mostrou. E você já contou essa história.

C: Da missa dos mortos, da cabra não. N: É.

(...)

C: Olha gostei muito desse seu clube do travesseiro, viu? Sexta e sábado à noite, na casa da Pa.

N: É. Das seis e meia até sete, oito.

C: Hum, tá. Começa de tarde e vai até de noite. N: Hum, hum.

C: Daí vocês param pra comer? N: [Afirma com a cabeça]

C: Deve dá fome esse monte de história e poesia aí.

N: [Afirma com a cabeça] É, e depois a gente fica brincando de guerra do travesseiro. C: Ah... Termina tudo com uma guerra de travesseiro.

N: [Afirma com a cabeça] C: Muito bom!

[Risos]

Os letramentos de N são constituídos por práticas que são bastante particulares para uma menina de nove anos, estudante de escola pública, que vivencia uma realidade em que as mídias digitais ditam certos comportamentos e brincadeiras infantis, a mídia analógica como a televisão apresenta determinados programas que muitas vezes são ricos em imagens e cores, mas pouco criativos e instigantes. N mora próximo à escola, se reúne com as vizinhas de sua comunidade que não estudam na escola de N para contar histórias.

O “Clube do Travesseiro” é caracterizado por algumas práticas que remetem a uma prática de contagem de histórias bastante artesanal que é se reunir pela palavra. Como afirma Benjamin (1975), a narrativa está extinta porque perdeu a sua natureza artesanal. As histórias contadas de forma midiática exercem muito menos função catártica e contém menos ensinamentos também. O clube do travesseiro, de alguma forma, parece mostrar que algumas pessoas

53 CASCUDO, L. C. Lendas brasileiras. As mais famosas lendas contadas pelo mais famoso

caminham na contramão dessa inserção na cultura midiática e somente delas se alimentam. O que as meninas do clube do travesseiro fazem pode ser interpretado como uma forma de hibridização da cultura de massa com a cultura local e escolar, típico das culturas urbanas surgidas no momento da alta modernidade e que dificilmente se dicotomizam, como afirmou Canclini (1997). Em suas reuniões, elas contam filmes vistos por elas, lêem poesia e contam histórias pessoais e de conto de fadas.

Para isso as meninas criam um ritual que possibilita a retomada da palavra de forma artesanal na qual é nela e por ela que funções catárticas, criação de imagens e o convite à fabulação e leitura ocorrem. Mais que um ambiente, as meninas do clube criaram o que Benjamin (1975) chamou de comunidade de ouvintes, da qual elas mesmas são participantes. Segue o recorte exemplificando:

N: É o clube do travesseiro. A gente apaga todas as luzes, fecha a janela, a gente fica contando história de terror, depois fica contando e depois poema.

No recorte da entrevista a seguir, vemos claramente a triangulação entre cultura escolar, de massa e vernacular/local:

C: E de onde vocês tiram as histórias pra contar?

N: A gente vai lendo em livros ou a gente inventa ou a gente vê em filme. E depois ela tem um livro de poemas, caldeirão de poemas.

Nesses eventos de letramento e nas práticas que os constituem, estão relacionadas a cultura escolar: vai lendo em livros; a cultura vernacular/local, a

gente inventa, e a cultura de massa, a gente vê em filme.

Essa pequenina comunidade de pequeninas ouvintes e narradoras amplia os horizontes de como a tradição está sendo constituída na alta modernidade. Aponta-nos que as próprias crianças a estão construindo, de forma a hibridizar as culturas, desenvolver suas habilidades letradas de escuta, leitura e contagem de histórias e surpreendendo pelo mais incrível que este dado traz: tudo se passa como uma gostosa brincadeira.