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Fonte: Arquivo Histórico e Museu Dr. Calil Porto (2009)

Alguns autores, como Brandão (1989) e Guimarães (1990), consideram que o prolongamento dos trilhos ao estado de Goiás representou um dos primeiros entraves à polarização que Araguari exercia. Dessa maneira, Guimarães (1990, p. 49) afirma que: “Com o prolongamento dos trilhos ao Estado de Goiás, Araguari perdeu gradativamente sua dinâmica principal, que era a de receber os impulsos da economia paulista e intermediá-los com o sudeste goiano”.

Nesse contexto, deve-se considerar que a ligação da Estrada de Ferro Goiás com a Estrada de Ferro Oeste de Minas (atual FCA), que ocorreu na década de 1930, foi um fator que também afetou a influência regional de Araguari. O trecho dessa ligação era compreendido entre Celso Bueno22 (MG) e Goiandira (GO). Desse modo, o município de Patrocínio (MG) estabeleceu ligações ferroviárias com Catalão (GO), o que contribuiu por limitar o controle de intermediação que era exercido por algumas cidades do Triângulo Mineiro, incluindo-se, portanto, a cidade de Araguari.

É inegável que a perda de posição de ponto terminal em relação ao mercado de Goiás influenciou a dinâmica principal da cidade de Araguari. Todavia, entendemos que atribuir a

      

perda socioeconômica da cidade unicamente ao prolongamento dos trilhos ao território goiano é problemático, visto que as condições em que tal prolongamento ocorreu acabaram se tornando um fator favorável à economia araguarina.

Não obstante o fato de que a função da Estrada de Ferro Goiás era possibilitar o escoamento da produção agrícola goiana, sendo que Araguari iria fazer parte de tal projeto, essa cidade acabou ocupando uma “posição estratégica” em relação à ferrovia. Tornar-se sede da Estrada e assumir a posição de entroncamento ferroviário representou uma forma de intensificar as relações comerciais com o centro-oeste brasileiro e intermediar as transações estabelecidas entre essa região e o litoral do país. Uma reportagem do Jornal Gazeta do Triângulo destacou que

Uma das peculiaridades desta grande cidade de Araguari é, por sem dúvida ser a sede da Estrada de Ferro Goiás, via de penetração a unir o litoral centro-sul às miríficas terras do Paranaíba, Araguaia, Tocantins e Amazonas. É o caminho que nos traçaram as botas rudes do Anhanguera para a verdadeira conquista do sertão, do oeste brasileiro. É a artéria por onde flui generoso o sangue magnânimo do labor goiano e triangulino a sustentar São Paulo, Belo Horizonte e Rio (JORNAL GAZETA DO TRIÂNGULO, 16/02/1954, n. 927, p. 1).

Consideramos que é preciso relativizar a análise antes de afirmar que a cidade deixou de exercer sua polarização, pois ainda conseguiu desempenhar um importante papel devido às transações comerciais que estabelecia com a porção leste do Triângulo (sendo essas divididas com Uberaba e Uberlândia) e também com alguns municípios goianos.

O fato de a cidade de Araguari ter se tornado sede da Estrada de Ferro Goiás foi um fator importante em sua dinâmica socioeconômica, visto que imprimiu transformações no cenário urbano. A estrutura urbana da cidade foi redimensionada com a geração de empregos e com o aumento da população que a instalação da sede ferroviária proporcionou. Muitas pessoas se dirigiram à cidade para trabalhar na colocação dos trilhos, dinamizando o mercado de trabalho e a própria economia araguarina. Nesse sentido, é necessário considerar que o aumento do contingente populacional urbano possibilitou a intensificação da circulação financeira. Um entrevistado23 ressaltou essa questão em sua fala, ao afirmar que:

[...] outra coisa importantíssima para Araguari foi a penetração em Goiás pela ferrovia Estrada de Ferro Goiás. É porque, o quê que aconteceu, milhares de pessoas, até estrangeiros vieram trabalhar na colocação de trilhos, pontes [...]. Então, foi muito importante porque ligou Minas Gerais, ligou São Paulo, porque a Mogiana vinha de lá, que era o polo industrial. Ligou São Paulo ao interior do Brasil, a Goiás, que começava a aparecer para o progresso. Então, Araguari ficou

      

sendo um polo de emprego e de recursos com a vinda da Goiás24 [...]. Eu acho que

o principal surto de desenvolvimento foi quando se decidiu construir aqui a sede da ferrovia. A sede da ferrovia foi colocada aqui, todos os pagamentos saíam por aqui e o comércio floresceu e, de um modo geral, a cidade passou a ter uma importância regional no sentido de transporte, de ligação com o interior.

Assim, conforme nos esclarece essas palavras, a instalação da sede da ferrovia Estrada de Ferro Goiás na cidade de Araguari foi um importante fator do seu incremento urbano, exercendo uma influência na configuração espacial. Tal afirmação justifica-se pelo fato de que próximo à estação foram instalados escritórios, oficinas de reparação do material de tração e transporte, almoxarifado, serrarias, depósitos e armazéns de cargas, locomoção e tipografia. Houve também a instalação de um hospital e de uma escola profissional, formando um grande complexo ferroviário. A escola profissional foi destinada ao ensino profissionalizante dos ferroviários, contando com cursos de mecânica, carpintaria, tornearia, eletricidade, serraria e marcenaria.

Na perspectiva de oferecer serviços educacionais aos filhos dos seus trabalhadores, a administração da ferrovia construiu a Escola Primária Carmela Dutra e a Escola Técnica de Educação Familiar. Também foi construído o clube Goiás Atlética, destinado ao lazer dos ferroviários e de suas famílias, e organizada a cooperativa de consumo desses trabalhadores.

A análise da influência da Estrada de Ferro Goiás na configuração do espaço urbano em Araguari deve levar em conta também que, na década de 1950, essa ferrovia contribuiu para a ampliação do setor habitacional da cidade. Em terreno localizado próximo à estação de embarque, foram construídas, em parceria com a Prefeitura Municipal, 52 casas destinadas a abrigar os ferroviários. A distribuição das residências era realizada de acordo com a renda familiar de cada ferroviário e, assim, deu-se a estruturação de uma vila ferroviária, que recebeu a denominação de Vila Goiás25 e mais tarde, ganhou características de bairro.

Esse complexo ferroviário representou um importante fator de contribuição ao desenvolvimento urbano da cidade à época, o que foi ressaltado na fala de um entrevistado26 que, ao ser questionado sobre a consideração acerca do fato de que esse complexo contribuiu para o incremento urbano de Araguari, respondeu:

      

24 Em algumas partes da entrevista, Miguel Domingues de Oliveira e outros entrevistados que serão citados ao

longo desse capítulo fizeram referência à Estrada de Ferro Goiás simplesmente como “a Goiás”. Isso está em consonância com a forma pela qual a população araguarina refere-se a essa ferrovia.

25 Para saber mais sobre a constituição dessa vila, confira: SOUZA, Alexandre Jairo Campos. A formação da

vila ferroviária da Estrada de Ferro Goiás na cidade de Araguari - MG. 2009. 93 f. Monografia

(Bacharelado em Geografia). Instituto de Geografia, Universidade Federal de Uberlândia, 2009.

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Arsênio Paranhos Lopes, 80 anos, ferroviário, vive na cidade há 68 anos. Foi diretor da Escola Profissional da Estrada de Ferro Goiás por mais de 10 anos. Entrevista realizada no dia 29/07/2009, em sua residência.

Ah, contribuiu muito. Um exemplo, o Hospital Ferroviário, na época era um hospital bem equipado, tinha todo o maquinário, todos os aparelhos para exames, raio-x e outras coisas mais. E o atendimento do hospital, era um hospital moderno, na época, bem equipado e que atendia os ferroviários e os familiares. Tinha da ferrovia médicos excelentes, que atendiam também a cidade e médicos especializados que os funcionários da Goiás não havia necessidade de procurar nenhum outro hospital, a não ser o Hospital da Goiás. Então, era muito bem recebido o funcionário, tinha tratamento de primeira, né? [...] Agora, quanto à Escola Profissional, ela formava artífices para o aproveitamento da empresa. Por exemplo, no meu caso, eu fui aluno da Escola Profissional e depois ingressei como funcionário da ferrovia e, passado algum tempo, eu fui convidado pra ser professor da escola onde eu fui aluno, quer dizer, prata da casa, né? E mais tarde, com a aposentadoria dos chefes, dos diretores, aí eu assumi a diretoria por mais de dez anos, até eu me aposentar. Agora, a Escola Profissional, as atividades da escola era qualificá-lo, preparar o jovem para ser funcionário da ferrovia. Então, nós admitíamos lá na época filhos de ferroviários. Se sobrasse vaga, seria admitido o pessoal de fora, alunos de fora. Então, a duração do curso da Escola Profissional era três anos, e lá nós tínhamos assim, uma infinidade de áreas. Nós tínhamos mecânica, tínhamos carpintaria, marcenaria, tornearia e vários outros. Então, ali qualificava, vamos dizer assim, o jovem para um indicador para ocupar o cargo, desempenhar as funções na própria ferrovia. É claro que depois ele ia pegando com o trabalho que fosse executar, ia pegando experiência, até se transformar num verdadeiro ferroviário.

Em sua fala, ele destacou que não apenas os recursos materiais da ferrovia (representados pelo complexo ferroviário) contribuíram para o desenvolvimento urbano e socioeconômico de Araguari, mas também os trabalhadores que eram responsáveis pelo funcionamento desse complexo, ou seja, os ferroviários. Ao ser questionado sobre sua opinião no que se refere à contribuição que os ferroviários representaram no desenvolvimento da cidade, afirmou:

Os funcionários da Estrada de Ferro Goiás, através dos seus salários, eles aplicavam aqui mesmo em Araguari, comprando terreno, construindo casas, né? E isso foi aumentando, principalmente a Vila Goiás, que inclusive ela tem o nome de Vila Goiás, depois passou para Bairro Goiás. Justamente porque era mais de funcionários que construíam as suas casas e o bairro foi expandindo até chegar ao ponto que chegou hoje. É um dos bairros mais populosos da cidade.27

Essa contribuição dos ferroviários também foi ressaltada na fala de outro entrevistado28, que ao ser questionado sobre a importância social e econômica da presença dos ferroviários na cidade na época da ferrovia, justificou tal importância da seguinte forma:

Porque passaram a residir definitivamente em Araguari. Os filhos continuaram, os pais aposentaram e os filhos continuavam. Criou-se um grupo de famílias ferroviárias, como aqui no bairro mesmo, Bairro Goiás, se você percorrer aqui, 90% é descendente de ferroviário, 95%. Fora dos outros lados da cidade. Se você conversar aí, vai ver que se não é filho, é neto de ferroviário [...].

      

27 Arsênio Paranhos Lopes.

28 Valdote Pereira Marinho, 69 anos, ferroviário, vive na cidade há 65 anos.Entrevista realizada no dia

Percebe-se, em suas palavras, o destaque da perpetuação da importância da profissão de ferroviário pelas gerações familiares. No mesmo sentido, outro entrevistado também ressaltou em sua fala que o “ser ferroviário” é um estado permanente de vida. Desse modo, ele relatou que [...] “ferroviário é ferroviário pra toda vida. Num existe ex-ferroviário, existe ferroviário aposentado, mas não é ex, ele não deixa de ser”29. Nesse contexto, vale comentar o sentido que representava ser um ferroviário à época em que a ferrovia era o meio de transporte mais utilizado no país. De acordo com Alves (2003, p. 159):

Ser ferroviário é um estado de espírito. No mínimo a gente aprende a ouvir, no apito triste das locomotivas, o rugido apertado da saudade nos cilindros do coração. E saber sentir a lembrança de momentos históricos construídos por tantos e tantos bons companheiros!

Neste momento do trabalho, reconhece-se a necessidade de se discutir acerca dos novos conteúdos materiais e da nova dinâmica que a cidade possuía na primeira metade do século XX, conforme será realizado a seguir.

1.5.2. Os conteúdos materiais e a dinâmica da cidade na primeira metade do século XX O desenvolvimento urbano pode ser condicionado pela dinâmica comercial de determinado centro. A despeito da importância do capital agropecuário e industrial para tal desenvolvimento, a apropriação do excedente mercantil, possibilitada pelo capital comercial, imprime mudanças na estrutura urbana. Tais mudanças decorrem do fato de que a atividade comercial só pode se desenvolver efetivamente a partir da prestação de serviços, os quais possibilitam a implantação de infraestrutura essencialmente urbana, levando, assim, a um crescimento e desenvolvimento urbano.

Destarte, esse desenvolvimento compreende a implantação de infraestrutura básica para que o capital comercial tenha condições de reproduzir-se materialmente nesse espaço. Isso nos remete a refletir acerca da divisão territorial do trabalho, pois o processo histórico- geográfico de estruturação de determinado centro urbano obedece aos padrões estabelecidos por tal divisão, que possui sucessivas fases. Tais fases são engendradas pelas necessidades de reprodução do capital, que imprime uma nova dinâmica à sociedade, transformando e redefinindo os papéis, conteúdos e funções dos lugares.

      

Antes de nos atermos à análise dos conteúdos materiais, aqui entendidos como a infraestrutura urbana, e da dinâmica da cidade de Araguari, que foram possibilitados a partir da posição ocupada em relação ao sistema ferroviário, é importante considerar que o aparelhamento urbano promovido na cidade nesse período foi possível devido à ampliação do fluxo de mercadorias que tal sistema proporcionou. Reitera-se que [...] “esta cidade mineira detinha praticamente o monopólio do fluxo de comercialização no sentido Goiás-São Paulo, o que lhe assegurava uma extraordinária capacidade de reter grande parte do excedente goiano” (BRANDÃO, 1989, p. 81).

A função de entreposto comercial assumida pela cidade contribuiu para o crescimento do comércio atacadista, representado pela presença de casas comerciais ligadas a esse setor, o que foi destacado na fala de um entrevistado30:

Então, nós tínhamos o comércio que florescia, grandes casas de atacadistas: Sr. Duvico França; a casa Patrícia, dos Aciolly; a Casa Aníbal, do Pereira e Companhia. Eram grandes entrepostos comerciais, grandes vendas comerciais, que exportavam ou que faziam intermediação da mercadoria que chegava pela Mogiana com o estado de Goiás.

Algumas casas atacadistas foram destacadas em sua fala. A primeira que foi mencionada (Sr. Duvico França) refere-se à “Casa Lindolfo França e Companhia”, que foi o estabelecimento comercial pioneiro da cidade, inaugurado na década de 1920 (foto 22).

A “Casa Patrícia” (foto 23) pertencia ao grupo “Petrônio Accioly S.A. Importação e Exportação”, que na cidade de Araguari também possuía uma oficina da Chevrolet, um depósito de material de construção e um posto de gasolina. É importante destacar que esse posto encontra-se no mesmo local e ainda está em atividade, embora seja pertencente a outros empresários.