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2.2. O Repositório das Práticas Anticristãs

2.2.1. Arbítrio e Dissimulação

A minúcia dos relatos missionários transmite uma imagem de arbitrariedade relativamente ao cumprimento das ordens do bafuku. Num mesmo domínio, os cristãos eram tratados de formas diversas pelas autoridades. Se em alguns casos era aplicada a pena de morte73, noutros retirava-se as exigências de abjuração74; por vezes

simplesmente dissimulava-se, nalguns casos por se tratarem de importantes vassalos, mas nem sempre75. Os missionários entendiam que a discricionariedade das autoridades

se devia ao estatuto social dos cristãos, alguns dos quais eram membros da elite militar que interessava preservar. Porém, certos relatos referem explicitamente o recuo na execução das práticas anticristãs aplicadas a outros grupos sociais. O jesuíta Pedro Morejon refere que do:

«mismo ardil vsaron Safioye [Hasegawa Fujihiro Sahyōe], y los Capitanes cõ los demas cabeças del Pueblo: … despues de auer … sido amarrados, los sacauan fuera, dizendo y publicando que ya auian negado la Fè, sin dexarlos dar razon de si, ni descubrir la falsedad y engane»76.

A mesma arbitrariedade é referida na descrição das perseguições que o mesmo Sahyōe levou a cabo em Kochinotsu. Este oficial acabara por desistir de obrigar os cristãos daquela localidade a apostatar,

«porque como estauã tan resueltos en sufrir qualesquier tormentos, antes que retroceder, o los auian de mandar martyrizar a todos: y esto era destruyr el pueblo, o auian de quedar ellos [as autoridades] deshonrados, no saliendo con lo que pretendian»77.

Esta ideia é consecutivamente reiterada nos impressos. Veja-se ainda o seguinte comentário do jesuíta Luís Pinheiro quando Arima Naozumi recua quanto a sua decisão

73 Vejam-se, por exemplo, os capítulos que Luís Pinheiro dedica às execuções ocorridas em Arima, Luís

Pinheiro, op. cit., fl. 178-188

74 Ibidem, fl.89 e ss. 75 Ibidem, fl.96.

76 Pedro Morejon, Relacion de la persecucion…, fl. 193. 77 Ibidem, fl.153-154.

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de executar certos cristãos no seu domínio de Arima, logo após ser empossado no referido território:

«…eran tantos los que se venian a manifestar por Christianos, que auisado el Tono que no auia quien no se declarasse por tal, y que hasta los que la auian negado, boluian en si, … la tierra quedaria despoblada, y el Tono sin tener quien le siruiesse»78.

Num momento bem tardio da perseguição, em notícias relativas a 1625, era afirmado que um cristão, conduzido às autoridades sob a acusação de prosseguir o trabalho evangelizador dos missionários, foi liberto «com ordine, che fosse custodito dal vicinato, conforme al solito sin’ ad altro auuiso, ma non passò molto, che egli fù liberato»79.

A condescendência aplicada, quer a importantes elementos da comunidade quer a gente comum, remete para uma outra explicação complementar à apresentada pelos missionários: a de que a punição não foi sempre a primeira escolha das autoridades. Na verdade, algumas dessas autoridades não eram adversas ao Cristianismo – quando o eram, eram também mais propensas à punição e à execução.

Em certas circunstâncias, o desinteresse em punir resultava da necessidade de preservar a população dos domínios ligada à administração (vassalos) ou aos rendimentos agrícolas (gente comum) essencial à própria sobrevivência dos seus chefes militares80. Esse desinteresse indicia ainda que parte significativa das autoridades não

considerava os japoneses convertidos um problema. A prática punitiva que vigorava nos domínios decorria da vontade do respectivo senhor, e na medida em que remontava ao período dos sengoku daimyō, sinal daqueles tempos, era brutal e implacável; crimes

«menores» eram punidos com a pena capital81. Se a punição severa não constou como a

primeira acção contra os cristãos numa sociedade em que primava o castigo físico, é porque estes não foram tidos como prevaricadores pelas autoridades. Essa condescendência na punição dos cristãos não quadra assim com a afirmação de alguma

78 Luís Pinheiro, op. cit., fl.80.

79 Carta ânua de 1625 redigida por Giovanni Batista Bonelli em Macau a 15 de Março de 1626 in Lettere

Annue Del Giappone De Gl' Anni MDCXXV. MDCXXVI. MDCXXVII…, fl.18.

80 A mesma ideia é apresentada em Ōhashi Yukihiro, “New Perspectives on the Early Tokugawa

Persecution”..., 1996, p.61, n.r. 24 e 25.

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historiografia sobre o espírito de tolerância dos nipónicos no exercício da justiça, decorrente das suas tradições religiosas, fortemente influenciadas pelo Budismo82.

É também pela razão de os cristãos terem sido encarados como uma ameaça pelas autoridades que se explica que, à excepção das grandes execuções públicas (pontuais, e que serviam de aviso intimidatório aos que persistiam na fé), até bem tarde (1623), os cristãos, quando punidos, tenham sido executados em função do estatuto social e da posição hierárquica assumida no seio do respectivo grupo, em conformidade com a tradição penal nipónica. Ao tempo de Tokugawa Iemitsu esta deferência desapareceu, confirmando assim o endurecimento da política de perseguição.

Além do mais, a resistência inicial à execução de cristãos tem ainda de ser enquadrada na tendência de se procurar evitar o conflito, que se fazia sentir a outros níveis judiciais83. Botsman demonstra que neste sistema social dos Tokugawa, baseado

no estatuto e no privilégio, os dáimios dos domínios menores mostravam alguma relutância em aplicar penas, como a execução por suspensão/crucificação e a de se queimar alguém vivo, temendo que tal viesse a ser considerado um abuso de poder. Por essa razão, aplicavam penas menores ou procuravam o aval do bakufu, solicitando confirmação da sentença84. Este tipo de comportamento foi também aquele que

prevaleceu quanto à punição dos cristãos até 1625/1626.

A documentação impressa testemunha ainda que desde o primeiro momento era frequente propor-se aos cristãos que apenas dissimulassem a sua fé. São inúmeras as situações em que a proposta de «pollo menos no exterior deixassem de ser Christãos»85

é apresentada como uma alternativa à condenação. Esta atitude coaduna-se com a tradição cultural nipónica, que valorizava a concordância do acto exterior com a regra, convivendo bem com o facto de a crença interior se lhe opor, não sendo assim escrutinada pelas autoridades. De facto, os missionários testemunham que a irrelevância da convicção interior era mesmo apresentada pelas autoridades como um argumento para persuadir o japonês convertido a dar um sinal exterior de renúncia. No texto impresso proliferam, contudo, exemplos de recusa dos cristãos, como é o caso da resposta dada por um «soldato nobile» em vias de ser condenado: «Quanto poi al modo

82 Veja-se Hajime Nakamura em Ways of Thinking of Eastern Peoples. India, China, Tibert, Japan, Philip

P. Wiener (dirg.), Honolulu, University of Hawaii Press, 1964, pp.383-385. Veja-se também as considerações de John Owen Haley, op. cit., p.41.

83 Daniel V. Botsman, Punishment and Power in the Making of Modern Japan…, p.81. 84 Ibidem, p.81-83.

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da voi proposto, di potere io restar Christiano, e con la vita ... La Legge, che io professo non ammette [admite] sì fatte viltà, e dissimulationi.»86.

Mesmo no auge da perseguição, a mesma proposta de apostasia pública é apresentada a alguns indivíduos, embora, ao contrário do que acontecia antes, com consequências mais dramáticas em caso de recusa. Assim, em Dewa, o dáimio Satake Yoshinobu, depois de ter assistido a excuções em Edo, ordenou ao seu vassalo «governador» que exterminasse os cristãos do seu domínio. Encontravam-se então aprisionados 42 indivíduos os quais antes da ordem da execução foram «più volte tentati, e pregati à mostrar almeno nell’esterno di abbadonar la fede»87.

Naturalmente, esta atitude vai ser explorada pelos missionários com fins apologéticos, ilustrando como os cristãos optavam por continuar a sofrer pela sua fé. Mas o número de casos descritos no texto impresso não permite que estas situações sejam reduzidas a mera retórica de propaganda missionária. Este tipo de comportamento, que será objecto de reflexão num outro capítulo, ilustra antes que a reacção das autoridades face aos cristãos foi sempre a de procurar obter primeiro um acto exterior de abjuração: «…bastaua temporeggiare nell’esteriore ... che nel resto po poteuano viuere christianamente a lor modo come prima, atteso che dal canto de’ ministri di Canziuge [Kato Kiyomasa] non trouerebbero intoppo [obstáculo, impedimento]»88. Esta foi aliás uma tendência que segundo John Haley se desenvolveu

e enraizou durante o regime Tokugawa. «O que importava era aparência exterior, e não o pensamento privado»89.

Mas, ao contrário do que vai acontecer a partir de 1625/1626, inicialmente a recusa dos cristãos nem sempre levou a penas extremas. Por essa razão, estes comportamentos ilustram não apenas o tratamento dos cristãos através de práticas correntes, como também indicam que, até essa data, as autoridades locais gozavam de liberdade de acção nos respectivos domínios.

86 Luís Cerqueira, op. cit., fl.45-46.

87 Carta ânua de 1625 redigida por Giovanni Batista Bonelli em Macau a 15 de Março de 1626 in Lettere

Annue Del Giappone De Gl' Anni MDCXXV. MDCXXVI. MDCXXVII…,, fl.87.

88 Luís Cerqueira, op. cit., fl.9. 89 John Owen Haley, op. cit., p.62.

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