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O Legado da Cultura Honorífica: Vassalagem e Liberdade

3.1. Sair para o palanque: Honra ou «Gloriosa morte»?

3.1.2. O Legado da Cultura Honorífica: Vassalagem e Liberdade

A cultura da honra tornara-se o símbolo distintivo dos guerreiros nipónicos enquanto elite social, que os distinguia da aristocracia imperial. De facto, apesar de terem existido samurais com capacidade financeira e sofisticação para usufruírem um estilo de vida aristocrático, na sociedade nipónica sempre prevaleceu um forte sentido de estatuto social e cultural, que diferenciava a aristocracia dos guerreiros28.

Desenvolvendo-se ao longo de séculos, a cultura da honra resultou da tentativa por parte dos guerreiros de conciliação do seu individualismo com as suas responsabilidades sociais29. O período de perseguição aos cristãos encerra precisamente

um momento de conflito entre a expectativa individual e as imposições sociais no âmbito da cultura guerreira. Transitava-se de um contexto de pulverização do poder por vários guerreiros hegemónicos para um regime em que a elite militar, embora mantivesse o protagonismo político, se encontrava sob a égide de um poder central, o

bakufu. Esta alteração implicou modificações na estrutura das relações de vassalagem e, consequentemente, nas exigências honoríficas. As relações de vassalagem do ciclo político-militar que agora se encerrava tinham assentado em laços pessoais estreitos e num forte sentido de lealdade e solidariedade para com o respectivo senhor, aspectos vitais à manutenção das alianças militares. Porém, apesar do comportamento honorífico do guerreiro o obrigar a manter a reputação da ie (casa militar) a que pertencia,

27 Masaharu Anesaki, «Wrinting on Martyrdom in Kirishitan Literature» in The Proceedings of the

Imperial Academy, 7: 8 (1931), pp.293.

28 Ikegami Eiko, The Taming of Samurai. Honorific Individualism and the Making of Modern Japan,

Londres, Havard, University Press, 1995, p.49

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pressupunha igualmente o direito à ambição e à preservação da reputação individual30.

Por esta razão, a cultura da honra não se traduzia num código rigoroso e linear de princípios morais, legitimava a indignação ou a reacção à ofensa pessoal, podendo o guerreiro fazer uso da violência para resolver os seus problemas e conflitos.

Ora, as numerosas referências dos missionários à recusa dos guerreiros convertidos em abjurar indicam a transposição da complexidade das relações de vassalagem para a vivência da fé. De facto, até os religiosos consideravam excessivas certas demonstrações públicas de fé dos cristãos nipónicos. Tendo os baptizados sido doutrinados para exprimir a sua fé através de actos e palavras, estes reagiam em conformidade perante a gravidade da exigência de negarem a sua crença religiosa31.

Esta determinação surge logo ilustrada no opúsculo redigido pelo vice-provincial jesuíta Pedro Gomez na sequência da primeira execução de cristãos em 1597. No entanto, o jesuíta Pedro Morejon relata, num exemplo retrospectivo, a propósito da biografia de um martirizado em Ariye, que esse indivíduo não acatara a ordem de resguardo que lhe fora transmitida por um missionário no tempo em que Hideyoshi decretara o édito de 1587 «pareciendole, que … era genero de flaqueza en la Fè»32. Morejon revela assim

como este indivíduo, como guerreiro, fora educado que perante a adversidade o vassalo não se retraía, pelo contrário avançava e expunha-se em defesa do senhor. O missionário esclarece ainda que o guerreiro apenas aceitara comportar-se mais recatadamente depois de ter sido esclarecido que «era licito encogerse en semejantes tiempos (pues se hazia para conseruar alli la santa Fè)»33.

Um outro relato ocupa-se de outro guerreiro cristão que decidira entregar-se às autoridades apesar da indicação contrária de um jesuíta. Este procurara explicar-lhe que mantendo uma vivência resguardada poderia continuar a prestar um serviço à Cristandade apoiando os cristãos na ausência dos padres, ao que o convertido lhe terá respondido: «que ofreciendo le Dios tan buena ocasion [para morrer em nome da fé] le parecia mal, perderla»34. Cite-se, por último, a descrição que o jesuíta Giovanni Battista

Baezza faz de um cristão encarcerado pela fé, o qual, apesar dos conselhos em contrário, assumira no cárcere a mesma postura de um soldado no campo de batalha.

30 Ibidem, pp.82-85, pp. 197 e ss.

31 Gonoi Takashi, «Kirishitan: les chemins qui mènent au martyre. Pour une histoire des martyrs chrétiens

du Japon» in Histoire & Missions Chrétiennes, 11 (2009), p.59.

32 Pedro Morejon, Relacion de la persecucion…, fl.185. 33 Ibidem, fl.185.

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Segundo o missionário, este cristão entendia que, da mesma forma que o bom guerreiro morria no campo de batalha ele, cristão preso pela fé que professava, devia morrer na prisão; da mesma maneira que o soldado quando ferido, não abandonava o campo de batalha para se tratar, também ele na prisão recusava remédios para aliviar ou curar as suas feridas; e, tal como o bom soldado que se concentrava apenas na guerra quando se encontrava no campo de batalha, ele propunha-se manter o espírito centrado na ideia de «vna morte gloriosa per Christo»35. Em vão o seu confessor e padre jesuíta Baezza

procurou dissuadi-lo sob o argumento «che mentre Dio gli daua vita, procurasse di ricuperare, e cõseruare la sanità per mezi, e rimedi ordinarij»36. A atitude deste guerreiro

revela, de facto, a transposição da cultura militar honorífica, que se baseava nos princípios da lealdade e da bravura, para o plano religioso.

No mesmo sentido, os guerreiros são sempre apresentados como gente que se revoltava face à sugestão das autoridades para dissimularem a profissão do Cristianismo. Como foi referido, de acordo com a tradição nipónica as crenças e o comportamento privados eram irrelevantes desde que, na aparência, estivessem conformes aos decretos dominiais e/ou do bakufu e em consonância com o respectivo estatuto social37. Mas como a doutrina cristã não distinguia as esferas pública e privada,

os guerreiros cristãos, absorvendo esta indistinção, viriam a responder ao conflito numa lógica honorífica. A lealdade a Deus exigia, tal como na relação vassalagem, todos os sacrifícios e, se necessário, o sacrifício até à morte. O jesuíta Pedro Morejon transcreve as palavras de um cristão membro da elite militar, proferidas em 1619 ao ser-lhe exigido que renunciasse a sua fé:

«Y porque no digan, que alego cosas ausentes … yo mismo amo, estimo, y estoy tan contento com mi estado, muger, y hijos, como El Emperador com su casa e Imperio. Y desde luego os los entrego, y el cuello, y cuerpo, para que hagais de todo lo que bien os pareciere»38.

35 Valentim Carvalho, op. cit., fl.23-24. 36 Ibidem, fl.23.

37 John Owen Haley, Authority without Power. Law and the Japanese Paradox, Oxford, Oxford

University Press, p.61-62.

38 Pedro Morejon, Historia y Relacion de lo svcedido en los Reinos de Japon y China, en la qual se

continua la persecucion que ha auido en aqlla Iglesia, desde el año de 615. Hasta el de 19. Por el Padre Pedro Morejon de la Compañia de Iesus, Procurador de la Prouincia de Iapon, natural de Medina del Campo, Lisboa, João Rodrigues, 1621, fl.75.

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E, por isso, este homem preferiu aceitar o castigo de ser desterrado a negar a fé. O excerto ilustra também que o guerreiro decidiu livremente o seu destino, atitude que se enquadrava no individualismo característico dos preceitos honoríficos das relações de vassalagem, e que existia uma tensão entre os interesses individuais e os do senhor e da respectiva casa. Desde que começou a ser exigido um sinal exterior de abjuração até ao momento em que praticavam as execuções, a escrita missionária multiplica as referências a guerreiros que afirmavam peremptoriamente a lealdade para com o seu senhor e a sua casa excepto em matéria religiosa. Ou seja, a problemática da fé foi integrada no âmbito da cultura honorífica dos guerreiros, designadamente reclamando para este assunto a autonomia que lhe era reconhecida enquanto elite militar.

«Señor la obligacion que ay del criado al amo, y del vassallo al señor, tiene por termino la presente vida, que en la otra, no tienen jurisdicion alguna: y sino llame a vno de los Capitanes, que murieron en seruicio de su casa, y vea si le responde. De suerte, que en lo que toca a lo presente, yo le seruirè de muy buena gana; mas en cosa de mi saluacion, perdoneme que no puede ser»39.

Os missionários também relataram situações colocando o acento na perspectiva do senhor. A invocação da necessidade do guerreiro respeitar as suas obrigações de vassalo surge no texto impresso como um argumento que terá sido utilizado para obrigar os guerreiros a apostatar. Enquanto os guerreiros tentavam colocar as questões da fé no âmbito da autonomia que lhes era reservada na cultura da honra, os senhores, por sua vez, reclamavam a abjuração invocando a mesma cultura, o que, quando eficaz, era considerado pelos religiosos como obra do demónio.

Em 1612 vive-se um momento crítico para a cristandade nipónica, quando Arima Naozumi Miguel, depois de suceder a seu pai, Arima Harunobu João na administração do domínio de Arima, principal baluarte da Cristianismo no Japão, renegou. Iniciando-se um período de perseguições, os oficiais do domínio que pressionavam importantes vassalos a renegar esgrimiam os seguintes argumentos:

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«Soys vn ladron, soys vn cobarde, y no valeys para nada: y digo que soys ladron, porque comistes hasta agora la renta del Tono, no teniendo animo de obedecerle en todo lo que os mandasse, como agora se ve: cobarde, pues no os atreueys a yr al infierno por amor de vuestro Rey: no soys de prouecho para cosa alguna, pues no sabeys aprouecharos del amor de vuestro señor [Arima Naozumi], que tanto os quiere, y estima»40.

Porém, com o regime Tokugawa (1603-1868) o Japão entrou numa era de pacificação militar. A inexistência dos conflitos armados levou à modificação das obrigações e exigências sociais dos guerreiros, restringindo-se progressivamente a sua margem de liberdade. O conceito de honra passou a ser perspectivado no contexto da colectividade, traduzindo-se na obrigação do indivíduo corresponder às expectativas sociais do grupo a que pertencia, e de agir de acordo com o seu estatuto. A cultura da honra foi transformada num “produto ideológico”, resumindo-se ao cumprimento escrupuloso de regras de conduta, que justificavam a supremacia social do guerreiro41.

No período histórico a que se reportam os textos em análise, que compreende os governos de Ieyasu a Iemitsu, o bakufu emitiu os principais decretos que, como afirma Ikegami Eiko, iriam «domesticar» os guerreiros. Foi neste tempo que a dimensão individual da honra passou de aceitável a comportamento desviante. A liberdade religiosa reivindicada pelos guerreiros, que decorria da autonomia que caracterizara o seu estatuto, colidia agora com as novas exigências impostas pelo xogunato. O conflito entre os desejos dos guerreiros e a imposição das autoridades redundou nas perseguições e execuções públicas dos convertidos.