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3.1. Sair para o palanque: Honra ou «Gloriosa morte»?

3.1.1. A «Niponização» do Cristianismo

A aceitação e a assimilação do Cristianismo, mais precisamente a ideia de salvação e martírio, foram facilitadas por alguma proximidade entre os preceitos

15 Por exemplo, no contexto das disciplinas realizadas em Nagasaki aquando da promulgação do édito de

expulsão (1614) houve caso de cristãos que, segundo os relatos, de modo voluntário permaneceram ao relente duas noites contínuas, pena também aplicada pelas autoridades aos cristãos do Miyako. Gabriel de Matos, op. cit., fl.75.

16 A título exemplificativo leia-se a descrição realizada por Gaspar Luís a propósito do martírio de vários

cristãos em Novembro de 1619 em Nagasaki. Gaspar Luís, «Relatione del Giappone dell’ Anno 1619» redigida em Macau a 1 de Outubro de 1620 in Relatione di Alcvne cose Cauate dalle lettere scritte ne gli

anni 1619 1620 & 1621 dal Giappone. Al molto Reu. In Christo P. Mvtio Vitelleschi Preposito Generale della Compagnia di Giesv, Roma, Herdeiros de Bartolomeo Zannetti, 1624, fl.25-31.

17 Pedro Morejon, op. cit., fl.187.

18 Veja-se por exemplo os testemunhos de perseverança atribuídos a cada um dos executados em Arima

em Novembro de 1614 durante os tormentos que lhes são infligidos. Ibidem, fl.167-179.

19 A bibliografia é extensa nesta matéria e a ideia é consensual tanto em autores ocidentais, como Jesus

Lopez-Gay, Juan Ruiz-de-Medina e João Paulo Oliveira e Costa, como em autores nipónicos, de que se destacam Ōhashi Yukihiro e Ikuo Higashibaba.

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cristãos e os da religiosidade nipónica. Introduzido pelo Budismo, o conceito de karma levou à interiorização por parte do indivíduo de que este tinha ao seu dispor meios que condicionavam a sua vida futura, deixando assim de se encontrar à mercê das forças misteriosas dos kami veneradas no Xintoísmo. O princípio do karma pressupunha a ideia de vida após a morte, que poderia levar à salvação por via do renascimento num paraíso20. Graças à acção doutrinária do monge Rennyo (1415-1499) abade em

Honganji, à data do início da evangelização missionária no Japão, o paraíso mais popular era a Terra Pura, do buda Amida. Este ramo budista da seita Verdadeira Seita Terra Pura defendia que, pela prática do nenbutsu, isto é, através da invocação sincera do nome de Amida, o indivíduo garantia a salvação eterna pois a iluminação não dependia do seu esforço individual mas dos poderes salvíficos de Amida.

Também no Cristianismo a salvação era obtida através do poder salvífico de um «outro», Deus, misericordioso, compassivo e benevolente21. A proposta cristã de

salvação na fé em Deus teve por isso uma base doutrinária paralela, já enraizada, que facilitou a sua assimilação. Ambos, Deus e Amida, surgem como entidades salvíficas, embora com diferenças substanciais ao nível no que se refere à proposta de salvação. Enquanto no Cristianismo, o caminho passava pela obediência a uma série de preceitos religiosos e litúrgicos, com ênfase nos ritos penitenciais, a Verdadeira seita Terra Pura postulava a fé exclusiva nos poderes salvíficos de Amida e, embora propondo a realização de rituais, remetia-os para um plano secundário.

Já em matéria de práticas religiosas, a tradição xintoísta, ao valorizar a purificação, facilitou a aceitação do Cristianismo22. De facto, desde tempos imemoriais

os rituais xintoístas de misogi e oharae visavam a purgação de todo o tipo de impurezas, como a doença e os erros, que consideravam perturbadoras da harmonia entre o Céu e a Terra, e causadoras dos desastres naturais23. Muito embora constituíssem dois rituais

distintos, – sendo que a oharae se realiza em momentos específicos no decurso do ano e a misogi constitui uma prática usual, inclusive diária para alguns -, ambas incluíam gestos ritualísticos que, envolvendo sempre a água, se acreditava serem purificadores do

20 Seguimos as ideias de Ikuo Higashibaba, op. cit., pp. 76 e ss. 21 Ibidem, p.95 e ss.

22 Seguimos as informações de Jesús López Gay, op. cit., pp.116-117; Minako Debergh, «Deus Nouvelles

études sur l’ Historie du Christianisme au Japon»…, pp.169-172; Minako Debergh «Premiers Jalons de l’Evangelisation d’ Inde, du Japon et de la Chine”…, p.827-828.

23 Veja-se Minako Debergh, «Deus Nouvelles études sur l’ Historie du Christianisme au Japon»...,

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corpo e do espírito. As ideias de purgação e de purificação destes ritos xintoístas aproximavam-se assim, de forma bastante evidente, da ideia cristã da remissão dos pecados por via da penitência. Aliás, a importância destes mesmos preceitos na tradição nipónica tinham sido igualmente determinantes aquando do processo de assimilação do Budismo, acabando por conduzir à valorização de rituais penitenciais entre as seitas budistas. Por exemplo, o shugendō, ritual budista de peregrinação nas montanhas sob a

vigilância de monges ascetas e laicos (yamabushi), compreendia exercícios de mortificação e rigorosas provações com o fim da purgação.

Se a introdução das religiões importadas – primeiro o Budismo (século VI) e depois o Cristianismo (século XVI) – foi facilitada por tradições ancestrais, ela também é reveladora de uma certa predisposição para a assimilação da novidade e a consequente uniformização religiosa. O processo é apelidado de «niponização», e foi amplamente explorado por Hajime Nakamura para explicar a «osmose» entre Budismo e Xintoísmo24. O Budismo terá começado a ser aceite pela ênfase atribuída a rituais que,

pelo recurso a uma ampla parafernália, visavam beneficiar o Estado e a comunidade. Ora a lógica de se procurar obter um benefício terreno através da realização de rituais, era em tudo idêntica à que presidia, desde tempos imemoriais, os rituais xintoístas de veneração dos Kami. E, apesar da evolução do Budismo ter compreendido a aceitação de seitas mais contemplativas, a dimensão ritualística sempre favoreceu a sua popularidade. No seu estudo sobre práticas e crenças cristãs, Ikuo Higashibaba segue a mesma linha interpretativa, afirmando que a difusão do Cristianismo no Japão se ficou a dever à incorporação de características da cultura religiosa popular, num processo que designa de «niponização do Cristianismo»25. O autor sublinha que, desde o início, a

vivência do Cristianismo era motivada, para muitos, pela procura de benefícios terrenos, numa lógica muito próxima das práticas xintoístas e da ritualística budista, e que certos símbolos e rituais cristãos foram compreendidos «quer como um substituto, quer como um complemento a elementos similares já existentes no sistema religioso»26.

É, de facto, no contexto de «niponização do Cristianismo» que têm de ser perspectivadas as reacções dos japoneses conversos à perseguição e à execução. Apesar de identificadas pelos religiosos como expressões inequívocas da fé dos conversos, uma

24 Veja-se Hajime Nakamura em Ways of Thinking of Eastern Peoples. India, China, Tibert, Japan, Philip

P. Wiener (dir.), Honolulu, University of Hawaii Press, 1964, p.362 e ss.

25 Ikuo Higashibaba, op. cit., p. xv-xvi. 26 Ibidem, p.xxii, pp.160-161

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«excelente incorporação da fé cristã e coragem»27, sendo assim descritas como

manifestações de uma nova Igreja primitiva, as atitudes dos conversos perante a perseguição e a morte enquadram-se também nas práticas culturais nipónicas. De facto, tais atitudes são sobretudo reveladoras da «niponização» do Cristianismo pois resultam da sobreposição de preceitos da cultura honorífica dos guerreiros à vivência religiosa cristã. Esta evidência é tanto mais legível quando se tem presente que o objecto da preocupação primeira do regime Tokugawa no âmbito da perseguição foi a elite militar, que se destacara na sociedade nipónica graças à sua cultura honorífica.