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2.2. O Repositório das Práticas Anticristãs

2.2.4 O Novo Ciclo de Perseguição

A partir da década de 1640, a clandestinidade acabou por conduzir a um novo ciclo de punição, deixando de se centrar no tormento público e na tortura.

Primeiro, retomou-se a postura inicial, isto é, a execução sumária do acusado. Em 1657 dava-se o chamado «desmantelamento de Kōri», localidade no domínio de

184 Alexandre de Rhodes, Relation de ce qvi s' est passé en l'année 1649. Dans les Royaumes où les Peres

de la Compagnie de Iesvs de la Prouince du Iapon, publient le Saint Euangile, Paris, Florentin Lambert, 1650, fl. 3.

185 Trata-se de uma colectânea de textos de difícil identificação. George Elison atribuiu a responsabilidade

da sua compilação a Inoue Masashige (1585-1661) em vésperas de transição do cargo de inquisidor do xogunato (shumōn aratame yaku) para Hōjō Ujinaga (1608-1670). Martin Nogueira Ramos corrobora a

tese de Anesaki Masaharu, que atribui a inciativa a Ujinaga; afirmação que é igualmente seguida por Gonoi Takashi. George Elison, Deus Destroyed…, p.204; Martin Nogueira Ramos, op. cit., p.7-8; Gonoi

Takashi, «Kirishitan: les chemins qui mènent au martyre. Pour une histoire des martyrs chrétiens du Japon» in Histoire & Missions Chrétiennes, 11 (2009), p.57. Veja-se-se também Anesaki Masaharu «A Collection of Documents belonging to the Inquisition Office against the Kirishitans» in The Proceedings

of the Imperial Academy, 8: 8 (1932), pp.331-334.

186 Kirishito ki citado a partir de George Elison, op. cit., p.204.

187 Peter Nosco, “Early Modernity and the State’s Policies toward Christianity” in BPJS, 7 (2003), p.9;

Ikegami Eiko, The Taming of Samurai. Honorific Individualism and the Making of Modern Japan, Londres, Havard, University Press, 1995, p.153; Peter Nosco «The Experiences of Christian During the Underground Years and Thereafter» in JJRS 34:1, p.86.

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Ōmura onde foram descobertos mais de 600 cristãos188, dos quais 400 recusaram a

apostasia. As autoridades do xogunato não consideraram o recurso à tortura como forma de obter uma declaração de abjuração189. Seguindo as instruções do bakufu, do universo

dos interrogados, cerca de 10% dos indivíduos considerados úteis para inquirições futuras seria mantido na prisão; outros 10%, aqueles que tinham colaborado de forma mais activa com as autoridades, seriam enviados para as respectivas localidades; e os 80% remanescentes seriam decapitados190.

Depois, a partir de dada altura, os cristãos deixam em regra de ser executados. Em 1660, mediante a descoberta e o aprisionamento de mais 30 cristãos ocultos em Usuki (Bungo), nenhum foi executado191. A partir de 1697 desaparecem completamente

os registos de execução de cristãos. Várias razões explicam esta inflexão na política de extermínio do Cristianismo no Japão. Para Yukihiro esta atitude do bakufu foi o mecanismo encontrado para «evitar as apostasias superficiais»192. Na opinião de Nosco,

esta nova atitude reflecte o desinteresse das autoridades pela execução de cidadãos cumpridores e trabalhadores193. Tal como acontecera inicialmente, procurava evitar-se o

êxodo de população essencial à economia do país.

Johannes Laures refere esta preocupação logo no tempo de Toyotomi Hideyoshi a propósito de perseguições desencadeados pelo senhor de Hirado, Matsura Shigenobu, que procurou evitar o êxodo de centenas de vassalos que seguiram os Koteda quando estes rejeitaram a apostasia e largaram o seu senhor194. De facto, a mesma ideia é

corroborada pelas fontes impressas como é o caso da descrição de Pedro Morejon a propósito da atitude de Sahioye num dos surtos persecutórios que promoveu em Kochinotsu:

«porque como estauã tan resueltos [os cristãos de Kotchinotsu] en sufrir qualsquier tormentos, antes que retroceder, o los auian de mandar martyrizar a todos: y esto era destruyr el pueblo, o auian de quedar ellos deshonrados, no saliendo con lo que

188 Sobre o acontecimento veja-se Martin Nogueira Ramos, op. cit., p.38 e ss. 189 Ōhashi Yukihiro in “Orthodoxie, hétérodoxie et Kirishitan…”, p.143. 190 Ibidem, p.145-147.

191 Jurgis Elisonas, “Christianity and the Daimyo”…, p.369-372; Peter Nosco, “Early Modernity and the

State’s Policies...”, p.15.

192 Ōhashi Yukihiro, op. cit., p.149.

193 Peter Nosco, “Keeping the faith: the bakuhan policy towards religions in seventeenth-century

Japan”..., p.150-151.

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pretendian: de lo qual los demas // Christianos auian de tomar nueuo animo, para estar constantes en la Fè, con el exemplo deste de Cuchinotzu 195».

A mudança de inquisidor do xogunato, cargo que transitou de Inoue Masashige (1585-1662) para Hōjō Ujinaga (1609-1670), também deve ter contribuído para esta mudança196.

Em vez da execução, o regime Tokugawa apostou em procedimentos que impunham um apertado controlo à generalidade da população e enveredou pela política de aprisionamento dos cristãos, que ganhou o estatuto de pena. A ideia de um longo cativeiro nunca antes fora ponderada pelas autoridades, que até aí viam na punição corporal e na pena capital a solução para a erradicação do Cristianismo197.

Desde o início do decreto de perseguição, ocorrem no texto impresso menções esporádicas a espaços que funcionavam como cárcere. Por exemplo, na sequência do édito de 1614 Pedro Morejon reporta situações de indivíduos que são aprisionados em Bungo, em Kumamoto, em Arima ou no Miyako. Descreve então o cárcere de Arima como «vn campo raso, sin pared ninguna, sino vna rejas de palo gruesso» que mais se assemelhava a uma jaula, e a propósito do Miyako descreve um local que efectivamente se aproximava do padrão de uma prisão pois dispunha de argolas e de ferros para prender os prisioneiros. Porém, com o decorrer do tempo as referências tornam-se mais frequentes, sendo descritos estabelecimentos com áreas diferenciadas para «malfeitores» e para presos por «delitos», nos quais os cristãos eram encarcerados. Enquanto uns eram publicamente executados outros permaneciam no presídio até à morte198.

Se os métodos eram distintos, a política anticristã manteve-se vigorosa e a simples acusação de professar o Cristianismo era motivo de prisão. Em simultâneo, o regime Tokugawa apostou na elaboração de vários discursos ideológicos anticristãos, baseados nos fundamentos da ordem e da conformidade, que tinham como objectivo

195 Pedro Morejon, Relacion de la persecucion…, fl.154. 196Ōhashi Yukihiro, op. cit., p.146-149.

197 A valorização da prisão foi, no entanto, uma tendência comum a toda a prática judicial nipónica.

Daniel V. Botsman, op. cit., p.127.

198 Cf. Pedro Morejon, Relacion de la persecucion…, fl.60-61; fl.73; fl.181; fls. 248-249; João Rodrigues

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último, tal como a execução, a estabilidade política e social199. Os nipónicos baptizados,

esses, foram encontrando sofisticados mecanismos de dissimulação que lhes permitiu manter a sua crença e práticas religiosas de forma oculta.