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3.2. O Discurso do Mártir: Representação e Devoção

3.2.2. Os que se «deixaram ficar»

Não obstante a atenção dada aos mártires nos textos impressos, também se descrevem comportamentos cristãos considerados não exemplares, designadamente os casos de apostasia. Sendo uma atitude desfavorável ao Cristianismo, a sua menção atestava, por um lado, a veracidade do testemunho dos missionários, e por outro, servia de contraponto à exaltação ao martírio procurando a sua valorização. Este último aspecto vai-se reforçando à medida que a perseguição se intensifica. Durante as primeiras perseguições (1604 e 1609), o bispo D. Luis Cerqueira atribuiu o fenómeno da apostasia a «edifici fondati di fresco”112, adiantando, porém, que o dilema não era

pequeno: «Finalmente come da vn canto gli atterriua lo spauento della morte, con la ruina, e distruggimento delle case, mogliere, e figliuoli»113. Em situações imediatamente

posteriores à emissão do édito que proibia a profissão do Cristianismo (1614), a abjuração é ainda apresentada como um gesto sem validade: «Iuntos ali os Christãos no riguroso exame, que delles fizerão, tornarão atrás alguns assinaãdose no liuro, que ali tinhão pêra isso; outros que se não quizerão assinar, seus parente & amigos Gentios por força fizerão por elles assinados falços; a outros também fizerão assinar por força, metendo-lhe a pena na mão, & constrangendeos a fazer seu assinado»114. Pouco depois,

os casos de apostasia assumem contornos progressivamente mais edificantes. Regra geral as abjurações são seguidas de actos de arrependimento – “E os que cairão, arrependidos, & envergonhados de sua fraqueza, forão logo buscar hum padre que estaua em outro lugar de Christãos»”115 já que voltar a si exigia a presença de um padre

e obrigava à confissão; enquanto outros «fueron despues insignes Martyres: y otros padecieron grandes trabajos, y pobreza por la Fè»116.

112 Luís Cerqueira, op.cit., fl.9. 113 Ibidem, fl.9.

114 Esta descrição surge a propósito de perseguições ocorridas em Chikuzen em 1614, quando todos os

cristãos são convocados pela autoridade local para renegarem a Fé. Gabriel de Matos, op. cit., fl.56v.

115 Fernão Guerreiro, Relaçam Annal [sic] das covsas qve fezeram os Padres da Companhia de Iesvs nas

partes da India Oriental, & no Brasil, Angola, cabo verde, Guine, nos annos de sesicentos & dous & seiscentos & três, & do processo da conuersão, & Christandade daquellas partes, tirada das cartas dos mesmos padres que de là vieram. Pelo padre Fernam Guerreiro da Companhia, natural de Almodouar de Portugal. Vay dividido em quatro liuros. O primeiro de Iapã. O II da China & Maluco. O III do Brasil, Angola, & Guiné, Lisboa, Jorge Rodrigues, 1605, fl.29.

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Em 1626 são ainda citadas algumas situações envolvendo renegados que, em arrependimento, faziam penitência pública (na presença de outros cristãos)117, partiam

voluntariamente para o exílio e optavam por viver pobremente, suportavam todo o tipo de privação, ou chegavam mesmo a declarar-se cristãos diante das autoridades118. Estes

exemplos não constituem, contudo, a regra. Neste momento a apostasia surge referida num quadro em que se desenrolam atitudes opostas numa mesma situação: os que renegavam e os que persistiam na fé apesar de toda a violência. Por exemplo, em 1627 o jesuíta Cristóvão Ferreira mencionava a pressão de que mulheres cristãs em Arima e Arie tinham sido objecto, contrapondo o facto de que «alcune tornorno à dietro, mas molte altre non mostrorno fiacchezza». Dois anos mais tarde, descrevendo um momento de grande violência, o mesmo jesuíta menciona a apostasia de Aleixo e contrapõe-na à perseverança do seu irmão, Simão Suetake, o qual padecera todos os tormentos até à morte119. Ou seja, quando mencionados, os casos não edificantes ou terminavam em

comportamentos exemplares de virtude ou eram compensados por outros que surgiam assim engrandecidos.

Dentro desta lógica não cabia, contudo, a divulgação da prática do fumi-e, ritual em que os cristãos eram obrigados a pisar uma imagem, que podia ser de Cristo, do crucifixo ou da Virgem Maria120. Materializando a apostasia, a prática foi

provavelmente iniciada em Nagasaki em 1628. Menos conveniente ainda era a menção à apostasia por missionários. N a década de 1640, uma única excepção ocorre no conjunto dos textos impressos. O protagonista do episódio era um japonês que se tinha deslocado à Europa na embaixada promovida pelo franciscano Francisco Sotelo, e que fora ordenado em Roma pelo próprio Papa Paulo V (1605-1621). O episódio contém importantes aspectos que estiveram na base da rivalidade entre jesuítas e mendicantes, mas ainda assim a notícia é colocada em termos edificantes. A apostasia surge como uma etapa de um percurso, que terminou, tal como relata Alexandre de Rhodes, no

117 Carta ânua de 1625 redigida por Giovanni Batista Bonelli em Macau a 15 de Março de 1626 in Lettere

Annue Del Giappone De Gl' Anni MDCXXV. MDCXXVI. MDCXXVII. Al Molto Reu. In Christo P. Mvtio Vitelleschi Preposito Generale della Compagnia di Giesv, Roma, Francesco Corbelleti, 1632, fl.51-52.

118 Ibidem, fl.58-59.

119 Cristovão Ferreira, «Relatione della persecutione solleuata nell Tacacu contra da S. Fede, nell’ anno

1627» in Lettere Annue Del Giappone De Gl' Anni MDCXXV. MDCXXVI. MDCXXVII…, fl.310;

Cristovão Ferreira, «Relatione della Persecvtioni, che ne gl’anni 1629 e 1630 si solleuò nel Giappone contro la nostra S. Fede», redigida a 20 de Agosto de 1631, in Relatione delle Persecvtioni Mosse Contro

la Fede di Christo in varii Regni del Giappone ne gl' anni MDCXXVIII. MDCXXIX e MDCXXX, Roma, Francesco Corbelletti, 1635, fl.78-86. Cf. Juan Ruiz-de-Medina, op. cit., p.634.

120 Sobre o exercício da prática de fumi-e enquanto instrumento de controlo religioso veja-se Martin

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triunfo da Fé. Sem identificar o individuo, Rhodes refere o exemplo de alguém que depois de haver esquecido o seu dever de padre e cristão, e ter vivido décadas como renegado, «il fut si changé par les mouuemens de la grace… il étoit viuement touché du saint Esprit»121.

Mesmo a persistência na abjuração é diminuída na narrativa através do recurso à ideia de que «alguns» ou surgem mencionadas sob os eufemismos de «esfriarão», «se deixarão ficar», «nõ era stato costãte nella Fede»122. Mas, na verdade, em 1600 foram

contabilizados trezentos mil conversos, incluindo importantes dáimios123. Ora, entre

1597, data da primeira execução, e 1643, ano do último registo de uma execução de missionários, contabilizaram-se 1653 mortes – nem todas por execução já que alguns morreram na sequência dos tormentos ou na prisão124. Esta discrepância vai ao encontro

dos estudos que têm vindo a apontar que, escapar à dicotomia martírio / abjuração, a vivência da fé foi remetida para uma solução intermédia: negava-a a fé através de actos exteriores, mantendo-a enquanto crença interior e praticando-a na clandestinidade125. A

atitude entroncava aliás na tradição nipónica de desinteresse pela crença privada de cada um. Não surpreende assim que numa narrativa de carácter apologético as referências a estes indivíduos sejam diminutas. Aos missionários interessava antes sublinhar que a perseguição aos cristãos induzia vivências edificantes. Deste modo, construíram um discurso fundamentado numa nova imagem de sucesso da missão nipónica: ao êxito da conversão sucedia o triunfo dos que perseveravam na fé.

121 Alexandre de Rhodes, Relation de ce vi s' est passé en l'année 1649. Dans les Royaumes où les Peres

de la Compagnie de Iesvs de la Prouince du Iapon, publient le Saint Euangile, Paris, Florentin Lambert, 1650, fl.16.

122 Exemplo Gabriel de Matos, op. cit., fl.42v. Para o ano de 1616, na sequência da pressão exercida por

Tokugawa Hidetada veja-se Pedro Morejon, Historia y Relacion de lo svcedido en los Reinos de Japon y

China…, fl.64v. Para exemplos numa época mais avançada da perseguição veja-se Carta ânua de 1625

redigida por Giovanni Batista Bonelli em Macau a 15 de Março de 1626 in Lettere Annue Del Giappone

De Gl' Anni MDCXXV. MDCXXVI. MDCXXVII…, fl.107-108.

123 Números apresentados por João Paulo Oliveira e Costa, op. cit., p.95.

124 O número apresentado resulta do inventário martirológio realizado por Juan Ruiz-de-Medina, op. cit.,

pp.287-755.

125 Ikuo Higashibaba, op. cit., pp.154-159. Veja-se também os estudos de Stephen Turnbull citados na

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