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O ARCO DE CAÇA (BASE CONCEITUAL)

No documento O Arco e a Flecha do Caçador (páginas 26-31)

2. A Caçada na Floresta (Campos Referenciais)

2.1. O ARCO DE CAÇA (BASE CONCEITUAL)

O meu corpo está em movimento no espaço/tempo, ainda que eu seja um observador dessa dança, desse movimento, dessa tradição simbólica carregada de força de uma herança ética, da própria mística do fenômeno do orixá. Mas tudo isso é, para mim, a aprendizagem cultural da dança.

No decorrer do trabalho, tanto na fase de preparação, quanto na sua execução, precisei fazer uma revisão conceitual para compreender os fundamentos dessa pesquisa.

E dois elementos conceituais se apresentaram como base para o trabalho: o corpo em movimento e o Agueré de Oxóssi.

Figura 09: Caçador africano. Fotografia de Pierre Verger. (Afrique) Bénin: 23 photographies d’hommes et femmes (1935). (Cf.: https://br.pinterest.com/pin/134122895133608598/).

Na figura acima, podemos reconhecer os traços do simbolismo do guerreiro caçador nos povos africanos, segundo a fotografia de Pierre Verger. Nela, vemos os principais elementos que migraram da prática usual, da técnica corporal e dos utensílios de caça; bem como da extensão do movimento no corpo, em ação complexa de uma totalidade de sentidos e significados que transitam do real (uso cultural) para o simbólico (artístico).

Segundo a professora Lenira Rengel (2001, p. 20), “Laban ressalta que atitude, esforço e movimento se dão simultaneamente e que o termo corporal reúne os aspectos intelectuais, espirituais, emocionais e físicos, ou seja, o corpo é uma totalidade complexa”.

Do corpo deriva o movimento, ou seja, a condição que gera a ação, o fator da mudança de tudo. Creio que o movimento é a própria essência da dança. Como elemento da ação e da significação, representa o que o corpo faz no lugar e no tempo, mas também, demonstra partes importantes da motriz cultural desse corpo, quer seja social ou de sua herança ancestral.

2.1.1 Agueré: corpo, movimento, educação

Tudo começa a partir do corpo. O corpo é volume que ocupa espaço, que se move, anda e dança. É vocábulo e instrumento de trabalho do ator, do bailarino, de todos. A dança é a linguagem que aproxima e mobiliza pessoas, capaz de incluir até os mais inibidos dos seres humanos. (ANDRADE, 2017, p. 239).

O corpo é na vida ou a vida é no corpo? O que é o corpo? O quanto precisamos nos orientar a conhecer o próprio corpo? Nós “somos” um corpo ou “possuímos” um corpo?

Para Marcel Mauss (2003), sociólogo e antropólogo francês, responsável pela primeira produção sociológica acerca das “técnicas corporais”,

[...] O corpo é o primeiro e o mais natural instrumento do homem. Ou, mais exatamente, sem falar de instrumento: o primeiro e o mais natural objeto técnico, e ao mesmo tempo meio técnico, do homem, é seu corpo. (MAUSS, 2003, p. 407).

Sendo assim, precisamos aceitar que corpo é um conceito complexo, que envolve diversas áreas de conhecimento. Dessas áreas e dessas bases, podemos detectar que o conceito de corpo, como o lemos na dança, implicava em domínio de outros conceitos, como o de percepção, espaço, tempo, cultura etc.

A corporificação da dança do Agueré de Oxóssi, embora ligada à presença do sagrado nos rituais do candomblé do Ilê Olorum, aqui é compreendida como a união de diversos fatores, entre eles: a festa e a fé; a música e a coreografia; a ancestralidade como escola e a tradição como prática artística; o xirê como expressão artística e ritual espiritual, da forma como a professora Suzana Martins (2008, p. 01) nos apresenta,

[...] Os gestos e os movimentos inscritos no corpo num processo intenso e extenso de aprendizagem, que são internalizados de acordo com os dogmas, os fundamentos religiosos e o arquétipo dos Orixás, sendo transmitidos pelos religiosos mais velhos da comunidade do Candomblé. No processo de corporificação, tanto a dança quanto a música estão intrinsecamente unidas e diretamente integradas ao fenômeno religioso propriamente dito ─ nos rituais e nas cerimônias ─, sendo que essas expressões artísticas são essenciais para evocar os Orixás. Assim, a dança e a música interagem entre si no sentido de que o ritmo se desenvolva em função dos movimentos e gestos, os quais possuem relação direta com a musicalidade da dança do Orixá.

O imaginário ancestral da dança de Oxóssi é um imaginário de caçador. O Agueré é uma estratégia de caçar, de esconder a presença do caçador, no meio da mata, para ofuscar a percepção de sua caça. Neste sentido, a dança é um modo de ação carregado de intenções. Aprender essa dança faz do aprendiz de candomblé um ser atento às possibilidades instantâneas de sobrevivência e vitória em seus intentos.

A dança de Oxóssi é, por si, educativa para a formação de religiosos na nação de Kêtu. No terreiro, fica bem delimitado esse aparato pedagógico, nas práticas cotidianas do abiã e da yaô.

Pensando na possibilidade de elaboração de material educacional para a dança, a partir dos estudos de Agueré de Oxóssi, em sua motriz afrodescendente, uma problemática que nos atravessa seria:

1) de que modo o Agueré de Oxóssi pode servir no processo educacional em dança, como matriz pedagógica?

2) Que contribuição teria a figura de Oxóssi, como divindade mestiça, meio africana, meio ameríndia, na formação de imaginários (religiosos e culturais), possíveis de serem reconhecidos como matéria educacional da dança?

3) Que estruturas de movimento podem ser identificadas no transcurso dos estudos pedagógicos da dança de Oxóssi e como aplicar tais estruturas em estratégias curriculares voltadas à Educação Básica?

4) É possível uma ressignificação da motriz africana do corpo dançante de Oxóssi para um corpo usual, no cotidiano da escola?

Compreendemos, portanto, a necessidade de uma pedagogia, que se venha a desenvolver, que acate o “caçar”, na dança de Oxóssi, não de modo individual, mas como um saber que deve ser pensado no coletivo. E esse coletivo não é apenas da aldeia, mas da mata, com todas as formas de vida que ali se organizam. Assim, o rito da caça significa fartura e renovação. A dança como gesto de aceitação e respeito. O sagrado que nos habita, também habita a caça e os que têm fome.

No sentido de compreender uma pedagogia da dança do Agueré, que não se faz presente neste trabalho, mas que desponta como possibilidade para uma continuidade desta pesquisa, em outros níveis, acatamos a simbologia de Oxóssi como uma esperança na aprendizagem. O corpo que manifesta o caçador, na tradição do candomblé, é também o trajeto de um aprendiz de ancestralidades.

2.1.2. O Agueré de Oxóssi

Pé direito para a frente, para trás e para frente de novo. O corpo se movimenta, balança. Vira para o outro lado, repentinamente, e, desta vez, pé esquerdo para frente, para trás e para frente, seguindo o ritmo do atabaque. O Agueré do grande Caçador Oxóssi, dançado, cantado, tocado, festejado nos salões dos candomblés, é encantador e despertou em mim o desejo de percorrer os caminhos do rei pelas matas do conhecimento. (SANFILIPPO, 2016, p. 9).

O Agueré, como aprendemos nos ensinamentos orais que vivenciamos no terreiro, pode ser executado em uma cadência de batida do atabaque, conhecido como “quebra-pratos”, com duas variações: 1) uma dedicada ao orixá feminino Oyá ou Iansã, a senhora das nuvens escuras, dos raios e das tempestades; e outra, 2) dedicada ao orixá masculino Odé ou Oxóssi, senhor das florestas, da caça, da fartura e da troca cultural.

Da mesma forma, o Agueré pode ser visto como uma dança atribuída a Oxóssi, o caçador, que tem o ritmo do Agueré, quando a entidade dança fazendo uma demonstração coreográfica de uma caçada, nela, o orixá se move como se estivesse atrás de sua caça.

Para isso, na representação simbólica dessa dança, o agente deve construir no corpo movimentos que ambientem sua ação no meio da mata. E mover-se sem fazer ruídos para não ser percebido, utilizam-se de movimentos precisos, com coreografia perfeita dentro do ritmo. Para desenhar, com seus movimentos, ações de vigiar, como a perceber o seu entorno; esconder-se, deslisar por entre as folhas; caçar, espreitar a presa;

atacar, mirar seu ofá (arco e flecha) e atirar, atingir a presa. Em seguida, guardar a presa, recolhê-la em seu bornal e seguir sua jornada, de volta à aldeia, ao seu mundo.

Para compreender o valor significativo do Agueré, faço minhas as palavras do pesquisador Lucio Bernard Sanfilippo (2016), quando diz que é

[...] um complexo cultural. Pelo seu caráter polivalente e polifônico despertado pela pesquisa, tomei a liberdade de tratá-lo ora como ritmo, ora como dança, ora como festa, sem que percamos, entretanto, o entendimento de sua complexidade cultural e educativa. Aproveito para justificar o uso de letra maiúscula na palavra Agueré e em outras manifestações culturais populares como Jongo, Maracatu, Ciranda e Coco, por considerá-las complexos culturais ricos e por acreditar que, assim, possa fazer saltar aos olhos sua importância.

(SANFFILIPO, 2016, p. 10).

No documento O Arco e a Flecha do Caçador (páginas 26-31)

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