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O DESPERTAR DO ABIÃ (A ESCOLHA DO TEMA)

No documento O Arco e a Flecha do Caçador (páginas 17-23)

1. Introdução

1.1. O DESPERTAR DO ABIÃ (A ESCOLHA DO TEMA)

Figura 06: Lucas, abiã no Ilê Olorum, em 2017. (Acervo Pessoa; fotografia Makarios Maia).

O candomblé é uma cultura que obedece muito às hierarquias. Abaixo das mães de santo e dos pais de santo, existe toda uma família a quem obedecer.

O respeito à hierarquia também parte de um dos preceitos do candomblé acerca do processo de iniciação. Aprender no candomblé é vivenciar inicialmente um desconhecimento ritual e também a performance da submissão no cotidiano da comunidade religiosa (Rabelo, 2014). Segundo essa mesma autora, o iniciado deve “sujeitar-se” a regras e procedimentos rituais, a fim de que possa ir aprendendo não apenas em termos da aquisição de conhecimentos, mas também da possibilidade de manejar energias e aspectos que apenas o tempo e a realização de rituais orientados por membros mais experientes podem proporcionar (CAMARGO; SCORSOLINI-COMIN; SANTOS, 2020, p. 10).

Nesse universo, o abiã é uma pessoa que ainda não foi iniciada, mas que está no terreiro para aprender e para se preparar para a iniciação. Por isso, realiza serviços gerais na casa, no terreiro, que não são dos fundamentos religiosos. A aprendizagem do abiã é fundamental, para quando chegar o seu momento de iniciação.

Quando cheguei no Ilê Olorum, era para assistir a um evento do Dia da Consciência Negra. Naquele espaço que é tão maltratado pelo preconceito que sofre, por parte de algumas pessoas da cidade, vivenciei um dia de encanto e saberes. E as primeiras coisas que vi lá pareciam diferente de tudo o que se vê numa festa de outras religiões. Na figura 06, podemos ver a minha chegada e meu encantamento pelo que presenciava no universo do terreiro, que, a meu ver, aquele dia ia para além do dia da consciência negra, mas que marcaria minha vida como filho de Oxóssi.

O que achei mais interessante foram as pessoas vestidas com roupas brancas, com os pés descalços, em contato com o chão do barracão, organizadas em uma grande roda.

Me chamava a atenção a simplicidade dos “Iaôs”, que eram os iniciados, e a beleza das indumentárias, ainda mais, das Ialorixás (mães de santos) e dos babalorixás (pais de santos) e dos ebomis (No Ilê Olorum, usualmente, chamamos “ebamis” as irmãs ou os irmãos mais velhos).

Iaôs é o nome que recebem, no candomblé, os “filhos de santo”, ou seja, as pessoas que estão em preceito, isto é, cumprindo os deveres e encargos do curso de iniciação ou recém iniciados. (CASCUDO, 1988, p. 377). Ialorixás e babalorixás são sacerdotisas e sacerdotes do candomblé, responsáveis pela iniciação das iaôs e pela manutenção das casas, dos terreiros (CASCUDO, 1988, p. 455).

Depois daquele dia, passei a me interessar pelo candomblé, como uma coisa presente na minha ancestralidade. Queria conviver mais com a tradição africana, dos povos negros, que formam meu corpo e minha vida. Passei a frequentar o terreiro.

Foi quando assisti a um primeiro xirê. Era um domingo e a festa era dedicada para o orixá Ogum. Xirê é uma expressão utilizada para definir a sequência na qual os orixás são invocados, se manifestarem e são cultuados na roda de dança do candomblé. A palavra é mais uma herança africana de onde se tira o significado de brincar, dançar, festejar o candomblé. O xirê organiza-se em uma sequência coreológica da hierarquia de manifestação de santos, por assim dizer. Oxumaré, Omolu, Xangô, Irôko e Logun Edé; seguidos pela apresentação dos orixás com evidências femininas (as aiabás): Iansã, Oxum, Iemanjá, Nanã, Ewá e Obá. Nessa ordem, no padê, as iaôs dançam “acordados”, isto é, são as pessoas, mesmas, não são os orixás que se manifestam no transe. O xirê, propriamente dito (a segunda ordem), é quando os filhos de santos estão manifestados com os orixás. E começa pelo orixá “dono da festa”, ou seja, o orixá que tem seu filho (iaô) iniciando-se no candomblé, um orixá que está sendo iniciado na formação de um ou mais iaôs. A apresentação de orixás, no xirê, não obedece a ordem do padê, segue a sequência de uma hierarquia, onde os orixás de iaôs iniciados há mais tempo (os “mais velhos”) vêm primeiro que as iaôs que são recentemente “feitos” (os “mais novos”) iniciados. Segundo Cascudo (1988), “Os atabaques são os tambores primários, feito com peles de animais, distendidas sobre um pau oco, que são utilizadas para marcar o ritmo das danças religiosas e produzem o contacto com as divindades” (CASCUDO, 1988, p. 83).

Mas para quem é de candomblé, os tambores são muito mais que instrumentos de percussão, são uma divindade. E, no dia que assisti ao meu primeiro xirê, logo no começo do padê, me encantei com a dança. Era uma dança em roda (gira), muito interessante, com pessoas cantando e dançando, mexendo seus corpos, ao som dos atabaques.

O barracão do terreiro, em dias normais, é organizado como uma casa simples, onde os filhos da casa fazem suas obrigações do dia a dia: limpeza, arrumação, cuidados com as ferramentas, as plantas, os utensílios, as comidas, enfim, cuidados domésticos, afinal, “Ilê” é o mesmo que “casa”, segundo a tradução literal do termo, do ioruba. “Ilê Olorum” pode ser lido, assim literalmente, como a “casa de Deus”. Já em dias de festa, quer seja de iniciação ou qualquer outra celebração de santo, o barracão passa por uma ornamentação diferente, celebrativa, onde são destacadas as cores, as formas, as simbologias dos orixás celebrados.

Os orixás que mais se destacaram na primeira festa que fui, no terreiro de Mãe Isa, na minha observação, foram Ogum e Oxóssi, pela dança (em que as pessoas se agitavam muito), e as Aiabás (orixás femininos), pela elegância, pelo brilho e a suavidade dos movimentos e Oxalá, pela calmaria nos seus passos.

As danças dos orixás variam de acordo com o som do atabaque e com a melodia que está sendo cantada. Os passos variam do mais rápido ao mais suave, de acordo com o som do atabaque. O que eu pude observar nas danças dos orixás foi que cada orixá tem seu ritmo, sua velocidade e tempo de dançar, alguns mais calmos e outros mais rápidos, de acordo com o som do atabaque.

Os elementos que faziam a harmonia das danças dos orixás eram as palmas, atabaques, a canção e a energia que cada pessoa que estava lá passava. No meu primeiro contato com a dança dos orixás, fiz várias observações, nas festas que fui como espectador, até me tornar abiã e começar a frequentar os primeiros ensaios (como também chamamos os encontros de treino para a dança das festas de candomblé, no Ilê Olorum).

Foi como abiã que comecei a trabalhar as repetições dos passos, com a ajuda de algum irmão mais velho, da casa auxiliando e dizendo qual a intenção dos movimentos das danças que cada orixá tem.

Os primeiros ensaios foram para observar e tentar reproduzir os movimentos da dança, de cada um dos orixás. Pensamos que, porque já dançamos, será fácil. Talvez seja mais difícil, por causa de vícios corporais que já se encontram no nosso corpo. Então temos que desconstruir, para poder construir esses movimentos delicados desses orixás.

Os vícios corporais são as ideias “certas” do que nós achamos que é dança em nossos corpos. E são construídos no mergulho que fazemos em nossas práticas culturais, nos hábitos que vivemos sem perceber.

Desconstruir, eliminando, ao máximo possível, toda essa “ideia” de uma dança já dançada, para trazer ao seu corpo os movimentos de uma outra dança, para fazer seu corpo despertar e encontrar-se com elementos primordiais, essências de postura e movimento, de sua origem ancestralidade. Assim como, também, para se apresentar, no fazer da dança, percebendo como se dá essa movimentação que está descobrindo.

Existe diferença entre as danças populares mais comuns e a dança dos orixás.

Muitas dessas diferenças são de ordem material, física; outras, de ordem cultural. Por exemplo, no candomblé é comum achar uma diferença de ordem corporal quando nas danças populares busca-se estimular o uso dos quadris em grande expressividade. Na dança dos orixás os quadris são a parte do corpo que é menos usada, para dançar os santos, usa-se muito mais os ombros e os joelhos, sem mexer muito os quadris.

Além das leituras na pesquisa, nos estudos de observação da dança de Oxóssi, pude notar que transparece, simbolicamente, que ele é o orixá da caça e dos caçadores, um dos mais antigos e famosos no candomblé.

Figura 07: Imagem símbolo do Ofá de Oxóssi.

Oxóssi usa como ferramenta o Ofá (Figura 07), objeto sagrado em forma de um arco e uma flecha, que é venerado pelos que praticam o candomblé como ferramenta de Oxóssi e, como símbolo de brasilidade, em muitos espaços simbólicos da nossa cultura.

O Ofá é um símbolo muito significante, na tradição afrodescendente. O Ofá de Oxóssi dialoga com sua energia, sua matriz simbólica e sua dança. Essa matriz simbólica é uma extensão do poder do orixá, no culto da fé.

Segundo a filósofa e professora Marilena Chauí (2000),

A figuração do sagrado se faz por emblemas: assim, por exemplo, o emblema da deusa Fortuna era uma roda, uma vela enfunada e uma cornucópia; o da

deusa Atena, o capacete e a espada; o de Hermes, a serpente e as botas aladas;

o de Oxossi, as sete flechas espalhadas pelo corpo; o de Iemanjá, o vestido branco, as águas do mar e os cabelos ao vento; o de Jesus, a cruz, a coroa de espinhos, o corpo glorioso em ascensão. (Idem, 2000, p. 383).

Esse símbolo, assim como outros da cultura do candomblé também são representados na pintura, a exemplo da pintura modernista do pintor Abdias do Nascimento.

Figura 08: Okê Oxóssi, de 1970, tela de pintura modernista, marco simbólico da persistência cultural da motriz afrodescendente, criação do advogado, ator, pintor, deputado e diplomata Abdias do Nascimento.

(Cf: https://www.quatrocincoum.com.br/br/resenhas/arte/invisibilidade-oceanica).

Orixá, como sabemos, é um tipo de força que herdamos da ancestralidade da religião iorubana (na África), que se localiza simbolicamente entre os devotos e a suprema divindade, inacessível às súplicas humanas. Simbolizam forças naturais e possuem atribuições na vida e nas práticas religiosas de seus fiéis.

Minha opção pelo trabalho por ser esse um estudo que diz respeito não apenas à luta dos povos negros e indígenas, da tradição cultural brasileira, mas por ser essa dança de Oxóssi um lugar de fala da minha própria existência pessoal. Em paralelo ao que sinto

e penso, devemos considerar que se faz necessário vivenciar a cultura constitutiva da nossa etnia para, inclusive, conhecer os saberes locais, os modos diversos em que cada povo dança, cultua, festeja e celebra seus rituais, possibilitando a luta contra o racismo e contra os preconceitos, além de propor estratégias de ensino dessas danças no âmbito escolar.

Optei por realizar esse trabalho por ser um negro, descendente dos povos de África, que também é do candomblé de Kêtu e, ainda mais, filho iniciado do orixá Oxóssi.

Assim, como negro do candomblé, iniciado no Ilê Olorum, também sou dançarino de danças populares brasileiras, tendo me dedicado a essa temática durante todo a minha vida e, ainda mais, na graduação na UFRN, no Curso de Licenciatura em Dança.

Por isso, o trajeto metodológico que buscamos visa atender ao objeto de estudo e não aos desdobramentos de discursos de ódio ou de preconceitos. A dança de Oxóssi é cultural na mesma medida que é um saber corporal, uma construção estética, um fenômeno artístico, um rito sagrado, uma manifestação estética, um conhecimento passível de entrar na escola e ajudar a formar pessoas.

No documento O Arco e a Flecha do Caçador (páginas 17-23)

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