• Nenhum resultado encontrado

3 O MESMO E O DIVERSO: O CONCEITO DE CULTURA NA UNESCO O élan que motivou a constituição da Organização das Nações Unidas para Educação,

4 EM DIREÇÃO À CONVENÇÃO DA DIVERSIDADE CULTURAL: ANTECEDENTES SÓCIO-HISTÓRICOS

4.1 ARENAS DE CONFLITO: A INVENÇÃO DA EXCEÇÃO CULTURAL E O TRATAMENTO DO TEMA DA CULTURA NA OMC

Alguns autores voltados para análise do tema da Convenção da Diversidade Cultural apontam as rodadas de negociação em torno do comércio de bens simbólicos travados no seio da Organização Mundial do Comércio (OMC) como o principal fator deflagrador para que uma variedade de agentes (países, organizações internacionais e organizações não- governamentais) se mobilizassem em torno da idéia da criação de um instrumento normativo em prol da chamada diversidade cultural. Não se pode negar que a repercussão de um evento como as rodadas para liberalização do comércio de bens e serviços ocorridos no seio da OMC tenham detonado importantes debates em torno da espinhosa questão acerca das especificidades das trocas comerciais de bens portadores de sentido. Contudo, não se pode aqui correr o risco e tomar tal evento como fator primordial para a compreensão do nascimento da Convenção da Diversidade Cultural. Seria por demais redutor. A análise de um

fenômeno social tala qual a Convenção requer uma leitura mais acurada e menos superficial, de modo a contemplar as variadas nuances e facetas que tal fenômeno aporta.

Contudo, não se pode deixar de reconhecer que o debate travado em torno da idéia de exceção cultural, ocorrido no quadro das negociações de liberalização do comércio internacional no seio do GATT (Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio), constitui-se num dos principiais episódios que deram estofo à emergência em torno da temática da diversidade cultural no plano internacional que culminou na promulgação do referido tratado pela pela Unesco em 2005. Sendo assim, torna-se necessário para este trabalho contextualizar historicamente o surgimento, os principais atores sociais envolvidos bem como os princípios que sustentaram as disputas travadas na arena da OMC acerca da propalada noção de exceção cultural.

Ainda que as raízes dos preceitos que sustentam o conceito de exceção cultural datem de períodos anteriores à deflagração do debate no âmbito do GATT/OMC, grosso modo, pode-se dizer que a idéia de exceção cultural ganha evidência no debate público internacional a partir do momento em que a França se recusa a aceitar os termos das negociações acerca da liberalização do comércio de serviços – uma das pautas polêmicas que marcaram a célebre Rodada do Uruguai (1986-1994). A posição assumida pela França e seguida por boa parte dos países da Comunidade Européia e pelo Canadá amparava-se na idéia de que as obras audiovisuais são portadoras de sentido e identidade, logo, não poderiam ser reduzidas ao status de simples mercadorias. Ou seja, as “obras do espírito” não poderiam estar subordinadas aos mesmos princípios de liberalização das trocas que regiam a complexa cartela de bens e serviços ordinários regidos pelas regras comercias do GATT/OMC.

Deflagrava-se assim uma das mais célebres contendas que a esfera da cultura conheceu nas ultimas décadas, a saber: a luta simbólica, travada no plano internacional, acerca da definição da especificidade dos bens culturais. Luta essa em torno do poder de nomeação e classificação, na disputa pela imposição da definição de categorias de compreensão social de acordo com interesses que lhe são específicos (BOURDIEU, 2007). Partindo-se do princípio que o poder smbólico é um poder que constrói a realidade e ordena o mundo ao lhe conferir sentido, Bourdeiu sustenta que os sistemas simbólicos (instrumentos estruturados e

estruturantes de conhecimento) cumprem uma função política de imposição e legitimação da dominação de uma classe sobre outra. As lutas simbólicas seriam então o momento em que diferentes (e mesmo antgônicas) visões de mundo são travadas em nome do “monopólio do poder de impor o princípio universalmente reconhecido de conhecimento do mundo social” (BOURDIEU, 2007, p.236). Quando envolvidas numa espécie de luta simbólica, as diferentes classes buscam impor uma definição de sentido ao mundo social, alinhada aos seus interesses, reproduzindo, desse modo, suas posições sociais. Ora, como veremos a seguir, a arena que se conformou em torno das disputas por um tratamento especial dos bens culturais no âmbito da OMC (e que irá se reproduzir com elevado grau de semelhança durante a negociação da Convenção da Diversidade Cultural) é uma representação paradigmática da disputa travada pelas diferentes coalizões envolvidas em torno do poder de nomear e classificar a categoria “bens culturais”. Luta essa que se correlaciona diretamente aos interesses das distintas facções, bem como às posições por elas ocupadas no mercado mundial de bens simbólicos.

Ainda que alguns autores reduzam a problemática da exceção cultural ao círculo mais circunscrito dos acordos de liberalização comercial de obras audiovisuais, a contenda engendrada pelo debate em tono da exceção cultural não pode ser restringida aos aspectos meramente econômicos daí decorrentes (mesmo sabendo o imenso peso que portam!). Em última instância, as disputas travadas no seio da OMC apontam para uma problemática mais ampla que reveste todo o debate, a saber: como lidar com a ambígua natureza dos bens simbólicos, bens estes que possuem caráter econômico, por um lado e que por outro veiculam sentido, identidade e valores. Pomo da discórdia entre os opositores que polarizaram o debate (“protecionistas” x “liberais”), tal questão tem sido ainda muito pouco explorada pelos estudiosos do tema e quase não comparece (ou muito marginalmente) no imenso manancial de referências (livros, documentos, convenções, declarações) gerado a partir dos inúmeros debates sobre exceção cultural e, por extensão, sobre diversidade cultural, mais contemporaneamente. Tanto se constitui numa questão crucial que ela ainda se prolonga e permanece mal resolvida no coração do debate e do texto mesmo que materializa a Convenção da Diversidade Cultural da Unesco. Uma questão que, sem dúvidas, mereceria tratamento mais aprofundado e, muito provavelmente, subsidiaria uma melhor compreensão para uma questão eivada de ambigüidades e contradições, a saber: Qual é mesmo o “valor” dos bens culturais? Se no século XIX Karl Marx já profetizara o fato de que todo produto

oriundo de trabalho humano é passível de se tornar uma mercadoria, porque ainda em pleno século XXI a reivindicação pela singularidade dos bens que veiculam as expressões humanas passa a ganhar tamanha evidência?

Em última instância pode-se afirmar que a luta pela definição de um status específico dos bens culturais é o tema latente que cadencia a controvérsia acerca do debate da exceção cultural travado no seio da OMC em meados da década de 1990. A correlação cada vez mais imbricada entre cultura e economia, evidenciada, sobretudo, pelo desequilíbrio das trocas comerciais internacionais do mercado cultural, acentua a tônica pela reivindicação de um tratamento diferenciado dos bens simbólicos e passa a ganhar centralidade no debate internacional sobre a diversidade cultural a ponto de definir o escopo mesmo de atuação do tratado internacional que estaria por nascer, anos mais tarde, no âmbito da Unesco. Como veremos adiante, esta temática será também o fio-condutor que irá marcar o desdobramento das análises que ora começam aqui a ser efetivadas, sendo a querela sobre a exceção cultural uma das suas principais entradas.