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2 A CONSTELAÇÃO POLÍTICO-INSTITUCIONAL GLOBAL: O LUGAR DA UNESCO

2.3 OS ORGANISMOS INTERNACIONAIS E A CULTURA

A origem dos primeiros organismos multilaterais de cooperação internacional nos tempos modernos remonta ao século XIX, momento em que foram encapadas iniciativas ainda incipientes de estreitamento de laços internacionais através da constituição de organizações específicas, a exemplo das comissões fluviais e de uniões administrativas, destinadas a solucionar problemas comuns a vários países, principalmente no plano comercial e administrativo, mediante acordos de cooperação internacional. A constituição da União Postal Universal, institucionalizada através do Convênio de Berna em 1874 (não por acaso, hoje organismo especializado que compõe a constelação das Nações Unidas), a criação da União Internacional para a proteção de Obras Artísticas e Literárias, fruto da Convenção de Berna para a Proteção das Obras Literárias e Artísticas, realizada em 1886 (iniciativa que iria desaguar na institucionalização da Organização Mundial da Propriedade Intelectual como órgão especializado das Nações Unidas em 1974) são exemplos ilustrativos desses modelos seminais de sistemas multilaterais são.

Edwin Harvey (1991, p.27) chama a atenção também para uma outra modalidade através da qual começaram a se efetivar de forma mais sólida as relações internacionais, a saber: as conferências e congressos internacionais, modo de cooperação que ele denomina de “Diplomacia de Conferência”. Compostas por representante de governos de diversos países, essas conferências, realizadas desde o século XIX, acabaram por se constituir em fóruns privilegiados para a celebração de acordos internacionais, relativos a assuntos cruciais de interesse coletivo. Mediante a adoção de instrumentos internacionais, legitimados pelo consenso dos Estados participantes, os acordos celebrados através das conferências e congressos multilaterais acabaram por assumir o papel de “superlegislaturas internacionais”. Do Congresso de Viena, realizado entre 1814 e 1815, até as Conferências convocadas pelo Unesco atualmente, esses eventos ganharam fundamental importância nas relações internacionais entre os países do globo pela dimensão política que aportam, uma vez que frutificaram importantes acordos internacionais e deliberaram a criação de organismos multilaterais permanentes.

No entanto, é a partir do final da Segunda Guerra Mundial que o sistema internacional de cooperação multilateral se consolida assumindo as feições tal qual o conhecemos hoje. A constituição da Organização das Nações Unidas (ONU), em 1945, será o marco principal dessa nova etapa no plano das relações internacionais. Criado com o propósito de manter a paz e a segurança no mundo, após um período marcadamente belicoso que imperou no mundo após o advento de duas guerras mundiais, o sistema das Nações Unidas inaugurou um modo específico de enredar os laços de cooperação entre as nações no século XX, mediante o estímulo à cooperação internacional na solução de problemas coletivos em diversas áreas (econômica, social, educativa, cultural, sanitária, entre outras). Congregando uma plêiade de organismos intergovernamentais, de caráter autônomo, em campos específicos, o modo de funcionamento da ONU inspirou a criação de sistemas internacionais similares seja no âmbito continental ou regional, a exemplo da Organização dos Estados Americanos (OEA), da Liga Árabe e da Organização de Estados Iberoamericanos para Educação, Ciência e Cultura (OEI).

Para a questão específica que nos interessa aqui, a saber, a relação dos organismos internacionais com o tema da cultura, a constituição de uma arquitetura institucional de caráter internacional promoveu o surgimento de importantes organismos intergovernamentais, dedicados a implementar ações e programas de intercâmbio e fomento na área cultural. Quase todas elas nascidas no rastro do fim da 2ª Guerra Mundial, mais precisamente entre as décadas de 50 e 60, as entidades intergovernamentais acabaram por fomentar ações, programas e projetos significativos para a cooperação cultural e, consequetemente, o estreitamento de laços entre os países e a manutenção da paz mundial: objetivo maior perseguido pelas políticas externas das nações.

Sem sombra de dúvida, a Unesco é a referência exemplar da atuação dos organismos multilaterais na área cultural, uma vez que ela foi criada justamente com o propósito de se constituir uma agência especializada das Nações Unidas para o trato de questões relativas à cultura, à educação e à ciência. Desde que o sistema internacional começou a se estruturar nos moldes que hoje o concebemos até mais ou menos a década de 1970, as relações culturais internacionais estiveram norteadas, sobretudo, por um sentido mais circunscrito do conceito de cultura que privilegia o campo da produção restrita, como diria Pierre Bourdieu. Ou seja, aquele que mobiliza idéia de cultura de elite ou alta cultura. Nesse sentido, privilegiou-se

políticas de intercâmbio de intelectuais e artistas, difusão da língua (o Britsh Council e a Aliança Francesa são exemplares), traduções de obras, promoção de artistas. A Declaração dos Princípios de Cooperação Cultural Internacional adotada pela Unesco em 1966 é sugestiva sobre o papel da cultura nas relações internacionais que vigorava naquele momento. Os princípios normativos da referida declaração entendiam a cooperação cultural como meio de difusão do conhecimento mediante o fomento das trocas culturais ao “hacer que todos los hombres tengan acceso al saber, disfruten de las artes y de las letras de todos los pueblos, se beneficien de los progresos logrados por la ciencia en todas las regiones del mundo y de los frutos que de ellos derivan y pueden contribuir, por su parte, al enriquecimiento de la vida cultural” (Bolán, 2004).

Contudo, acompanhando as transformações sócio-históricas, a atuação dos organismos na área cultural foi ganhando um outro perfil que vem ultrapassando a sua tradicional atuação de estímulo ao intercâmbio artístico-cultural. Em 2005, tive a oportunidade de participar de uma pesquisa realizada pelo Centro de Estudos Multisiciplinares em Cultura (CULT) da Universidade Federal da Bahia sobre políticas e redes de cooperação em cultura no âmbito da Ibero-América11. Na ocasião foi investigado o papel de alguns organismos internacionais (Unesco, Convenio Andres Bello, Organização dos Estados Iberoamericanos e Organização dos Estados Americanos) na área cultural e ao nos aproximarmos do histórico das referidas entidades tornou-se evidente a ampliação do arco de atuação dessas instituições.

Uma das conclusões que se depreendeu a partir da referida pesquisa foi a de que os organismos internacionais contribuíram também para o processo de complexificação institucional e conseqüente autonomização do campo cultural em diversos países. Tal hipótese foi suscitada considerando o fato de que essas agências assumem um lugar de destaque na cadeia de interdependências dos agentes que conformam a esfera cultural. Isto porque na medida em que instituem instrumentos jurídicos e textos normativos de legitimidade internacional, acabam normatizando pautas de orientação que afetam diretamente a formulação de políticas culturais dos Estados nacionais. Se considerarmos as vicissitudes do

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A pesquisa foi apoiada pelo Convenio Andrés Bello e seus resultados podem ser encontrados em: RUBIM, Albino; RUBIM, Iuri; VIEIRA, Mariella Pitombo. Políticas e redes de intercâmbio em cultura no âmbito ibero- americano. In: BELLO, Convenio Andés. (Org.). Siete cátedras para la integración. Colômbia, 2005, p. 129- 167.

processo de autonomização dos órgãos governamentais dedicados à gestão do campo cultural não seria exagero inferir que os organismos de ordem supranacional, à maneira da Unesco, pressionaram os governos no esforço de criação de uma constelação institucional na área da cultura, a ponto de alguns Estados contarem hoje com órgãos autônomos (ministérios)12 dedicados aos assuntos culturais (RUBIM et al., 2005).

Ainda que continuem a implementar ações e programas de escopo mais restrito, o que se percebeu através dos resultados da pesquisa, foi que os organismos multilaterais intensificaram seu papel na urdidura da trama de espaços de intercâmbio não somente entre governos, mas entres estes e os atores da sociedade civil e entre os próprios atores da sociedade civil (GARRETÓN, 2003, p.271). Na atual configuração societal, tais entidades jogam papel decisivo não somente no fomento das relações internacionais entre diferentes países como também contribuem significativamente para que o tema da cultura (e seus imediatos corolários: “diversidade cultural”, “cultura e desenvolvimento”, “direitos culturais”, “diálogo cultural”) seja catapultado como pauta da agenda política internacional. Afinal, como ressalta Harvey (1991, p.32), alguns desses organismos, por seus dispositivos legais, acabaram assumindo um status de superlegislaturas, com autonomia suficiente para exercitar faculdades normativas em escala supranacional.

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Edwin Harvey (1991, p.66) lembra que, na Europa, o primeiro ministério dedicado exclusivamente aos assuntos culturais nasce na França, em 1959. Chama atenção ainda para o fato de que até 1963, nenhum Estado membro da OEA possuía um ministério exclusivo para a área da cultura. Aliás, o autor pontua o ano de 1963 como data-chave para o que ele denomina de “nascente campo de ação cultural governamental”, tomando como referência a Primeira Reunião Interamericana de Diretores de Cultura, realizada por iniciativa da OEA, em Washington, em setembro de 1963. Harvey considera que tal reunião tenha sido o precedente cronológico para as conferências intergovernamentais de ministros da cultura, tanto da América Latina e Caribe quanto da Europa e de outros continentes, que viriam a se realizar futuramente. Em 1970, a Unesco realiza a Conferência internacional sobre aspectos institucionais, administrativos e financeiros das políticas culturais. A reunião gerou recomendações no sentido de propiciar a institucionalização da gestão pública para a cultura. Assim, no documento final, recomendava-se aos países-membros a criação de ministérios, fundações e órgãos públicos dedicados à gestão da cultura, além da previsão de 1% do orçamento da arrecadação tributária dos países para a área cultural (um patamar ainda não conquistado pelo Brasil, por exemplo). No âmbito específico da América Latina, como pontua Canclini (1987, p.15), é somente a partir de meados da década de 70 que os primeiros ministérios da cultura e planos nacionais para este campo começarão a surgir. No Brasil, apesar do Ministério da Cultura ter sido criado apenas em 1985, no rastro dos processos de redemocratização política, será também a partir da década de 70 que o país conhecerá, com maior intensidade, o fenômeno que Sérgio Miceli (1984) cunhou de “construção institucional na área cultural” – um amplo processo de criação das principais instituições e órgãos culturais bem como os primeiros esforços de gestação de programas e projetos que sustentariam uma política pública de cultura para o país.