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3.2 O juiz como garantidor dos direitos individuais: a figura do juiz das

3.2.5 Argentina

Toma-se como base para o estudo do processo penal argentino o Código de Processo Penal da Província de Buenos Aires, em razão de seu peso

determinante na estrutura econômica, política e social daquele país110.

Em 1988, foi concretizada na província de Buenos Aires uma série de reformas processuais. As principais inovações foram:

a) El establecimiento de un sistema procesal acusatorio en el que se diferenció claramente la función de acusar y de juzgar; b) la Investigación Penal Preparatoria (IPP) a cargo del ministério Público, con el control del juez de garantías; c) un sistema de coerción procesal sobre el imputado basado en el riesgo procesal d) el procedimiento oral y público para todos los procesos; e) la imposición de plazos procesales fatales para la terminación del proceso instituciones procesales tendientes a su abreviación y salidas alternativas como la conciliación; f) y el fortalecimiento de la defensa pública gratuita (PALMIERI, 2004).

Observa-se que a investigação também é repassada para o Ministério Público.

Em relação ao juiz das garantias, este foi “erigido à condição de figura- chave de seu novo sistema processual penal” (ANDRADE, 2011, p. 56).

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Nos casos de crime cuja pena seja inferior a cinco anos de prisão ou cuja sanção não estabeleça privação de liberdade, o Ministério Público pode, em conjunto com o defensor e o acusado, requerer a aplicação antecipada de pena, quando haja confissão. Logo, o juiz das garantias paraguaio pode aplicar a pena, ainda que tenha participado da investigação (ANDRADE, 2011, p. 55).

110 La provincia cuenta con una población de aproximadamente 13.827.203 habitantes, de la que el 8.684,437 (62,81 %) se ubica en el Gran Buenos Aires (datos del censo 2001, INDEC, página web). Densidad de población en los partidos del Gran Buenos Aires: 2.394,4 hab/km2 (dato del INDEC) (PALMIERI, 2004).

Referindo-se à posição do juez de garantía na reforma do processo penal da província de Buenos Aires, Bertolino (2000, p. 11) atesta que:

La aparición del juez de garantías en el proceso bonaerense responde a la necesidad de adecuar el procedimento al sistema acusatorio, en donde las funciones de investigar y perseguir penalmente y las de juzgar o aun decidir sobre el mérito de las investigaciones previas debe deslindarse física y conceptualmente.

Esse magistrado tem competência para atuar na fase de investigação e na fase intermediária (de recebimento/rejeição da acusação ou exame de pedido de

arquivamento da investigação pelo Ministério Público)111 (ANDRADE, 2011, p. 56).

Também recai sobre o juiz das garantias bonaerense o impedimento de atuação no julgamento do processo, revelando-se a preocupação com a manutenção da máxima imparcialidade do juiz, como se explicará no capítulo que se segue.

Destaca-se que outros países da América Latina também apresentaram

reformulações em seus sistemas penais, tais como Chile112, Peru, Bolívia e

Colômbia, mas os dois países analisados, Paraguai e Argentina (província de Buenos Aires), são comumente invocados para justificar a implantação do juiz das garantias no Brasil (ANDRADE, 2011).

Nesses termos, a proposta de implantação do juiz das garantias no Brasil surge para:

Aproximar o modelo brasileiro daquele existente, por exemplo, na Itália ou acompanhar a larga tendência identificada nas reformas latino- americanas, as quais, em sua marcante maioria, edificaram mecanismos idênticos àqueles reformados na Europa para afastar o juiz do domínio matéria da investigação e destinar sua atuação ao controle da legalidade das investigações e a eventual necessidade de mitigarem- se direitos fundamentais da pessoa suspeita (CHOUKR, 2011, p. 275).

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O sistema bonaerense desenvolve-se em três estapas, com as seguintes características: “a)

una etapa de investigación escrita y con pretensiones de ser menos formalizada que la existente en el marco del código anterior, conducida por el Ministerio Público bajo el control jurisdiccional del juez de garantías y controlado, a su vez, por la cámara de garantías; b) el control de la acusación por parte del juez de garantías y la cámara, a requerimiento de la defensa y una posterior audiencia de preparación del juicio ya en la etapa de debate, efectuada por el mismo tribunal que entenderá en la causa. c) y una etapa de debate oral o juicio abreviado” (PALMIERI, 2004).

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Com a reforma processual chilena, implantada entre 2000 e 2005, criou-se figura do juez de

garantia, também responsável por salvaguardar os direitos fundamentais na fase de investigação

Destarte, como se passa a examinar no próximo capítulo, o anteprojeto da reforma do Código de Processo Penal brasileiro elegeu características e elementos semelhantes aos apresentados nos países estudados, para criar a figura do juiz das garantias, tais como: inspiração para nomenclatura,

preocupação com a efetivação do sistema acusatório113 e garantia da máxima

imparcialidade do juiz.

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Ressalte-se que, ao contrário dos países europeus e latino-americanos analisados, a implementação do juiz das garantias no Brasil não marca uma transição efetiva do sistema misto para o sistema acusatório. Não há em nossa legislação a previsão da figura do juiz instrutor e nossa fase de investigação preliminar não tem natureza jurisdicional, estando a cargo da polícia judiciária. Contudo, a figura do juiz das garantias vem reforçar as características do sistema acusatório que se pretende assegurar, ajustando nosso Código de Processo Penal aos preceitos constitucionais, como se denotará da exposição feita no capítulo que segue.

4 ESTRUTURAÇÃO TEÓRICA E LEGISLATIVA DO JUIZ DAS

GARANTIAS NO BRASIL

Como explanado no primeiro capítulo, por várias vezes foram propostas reformulações no Código de Processo Penal. As principais mudanças recaíam comumente sobre a investigação, os sujeitos processuais e seus papéis.

O anteprojeto de reforma do Código de Processo Penal apresentado em 2009 ao Senado não fugiu desse contexto; a inovação que mais causou alvoroço foi certamente a proposta de criação de um novo personagem na cena processual brasileira, o juiz das garantias.

Essa novel figura surge, nos termos do anteprojeto, como o baluarte do modelo acusatório, salvaguardando os direitos fundamentais do acusado na

investigação criminal114.

Pretende-se claramente sacramentar o papel do magistrado na fase de investigação, estabelecendo os limites de sua atuação, evitando-se desvios que

eventualmente ocorrem no atual sistema criminal brasileiro115.

Ele desponta, também, como medida adequada para afastar a possível parcialidade do juiz que teve contado com a colheita da prova na fase pré- processual, uma vez que, como se explicitará, o juiz das garantias tem sua competência limitada à fase de investigação, sendo impedido de atuar na fase processual.

Com sua implementação intenta-se aperfeiçoar e agilizar a atuação jurisdicional criminal, em razão da especialização da matéria.

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Artigo 14 do anteprojeto disciplina que: “O juiz das garantias é responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário, competindo-lhe especialmente [...]” 115

Como bem alerta Pitombo (2009), "a experiência tem mostrado que certos magistrados adotam ativismo excessivo na investigação criminal, ao fazerem reuniões com policiais antes de operações, ao decretarem, de ofício, medidas assecuratórias e ao chegarem a sugerir que se requeiram prisões cautelares. Longe da proteção dos investigados contra a arbitrariedade, passam eles a tratar com aparência de normalidade práticas policiais em desconformidade com a ordem jurídico-constitucional, tais como o uso indevido de algemas, a exposição pública de pessoas presas, a apreensão desmensurada de documentos e a interceptação telefônica sem restrição temporal, entre outros abusos. Em simples palavras, perdem tais juízes de direito a equidistância necessária ao exercício da jurisdição, para se tornarem algozes dos investigados - em casos de repercussão, especialmente. [...] Torna-se o magistrado um escudeiro da pretensa legitimidade da investigação criminal, em vez de juiz imparcial capaz de enxergar as aberrações que se deram no procedimento investigatório".

Sendo assim, é de extrema valia a transcrição de parte da Exposição de Motivos do Anteprojeto (BRASIL, 2009, p. 17), pois permite compreender os motivos justificadores da criação dessa figura processual:

Para a consolidação de um modelo orientado pelo princípio acusatório, a instituição de um juiz de garantias ou, na terminologia escolhida, de um juiz das garantias, era de rigor. Impende salientar que o anteprojeto não se limitou a estabelecer um juiz de inquéritos, mero gestor da tramitação de inquéritos policiais. Foi, no ponto, muito além. O juiz das garantias será o responsável pelo exercício das funções jurisdicionais alusivas à tutela imediata e direta das inviolabilidades pessoais. A proteção da intimidade, da privacidade e da honra, assentada no texto constitucional, exige cuidadoso exame acerca da necessidade de medida cautelar autorizativa do tangenciamento de tais direitos individuais. O deslocamento de um órgão da jurisdição com função exclusiva de execução dessa missão atende a duas estratégias bem definidas, a saber: a) otimização da atuação jurisdicional criminal, inerente à especialização na matéria e ao gerenciamento do respectivo processo operacional; e b) manter o distanciamento do juiz do processo, responsável pela decisão de mérito, em relação aos elementos de convicção produzidos e dirigidos ao órgão da acusação.

Evidencia-se, assim, que há três principais argumentos para justificar e motivar a implementação do juiz das garantias no Brasil: adequação da figura do juiz à estrutura acusatória proposta pelo Código, manutenção da imparcialidade do juiz da causa com o seu distanciamento dos elementos colhidos na

investigação e otimização da atuação jurisdicional criminal116.

Contudo, por mais promissora que seja a criação dessa nova figura, é necessário trazer à baila alguns questionamentos: o juiz das garantias representa o ajuste acusatório tão necessário em nosso sistema processual? Em que medida essa nova figura representa um avanço legislativo?

Afinal, quais são os obstáculos para sua implementação no Brasil?

Buscando respostas a essas indagações, será possível averiguar a validade dos argumentos para criação do juiz das garantias e sua necessidade de implantação.

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Nesse sentido, Andrade (2011) analisa o texto da exposição de motivos e assevera que as justificativas apresentadas para a criação do juiz das garantias são distribuídas em três argumentos distintos, embora um ou outro possa apresentar certo grau de conexão: princípio acusatório; otimização da atuação jurisdicional criminal; e distanciamento do juiz.