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Aristóteles e os ladrões de bicicleta

No documento O Cinema Pensa, Julio Cabrera (páginas 51-74)

I - Introdução

Todas as atividades humanas têm, segundo Aristóteles, uma natureza e estão submetidas a determinados tipos de realização ou consumação, tanto a lógica e a ciência como a retórica e a poética e, nesta última, os gêneros da tragédia e da comédia. A lógica é guiada pelas regras do silogismo dedutivo que permitem obter formalmente uma conclusão a partir dos dados proporcionados pelas premissas, sem levar em consideração o conteúdo. A retórica, por sua vez, segue as regras do entimema, ou seja, de raciocínios com premissas não explicitadas, e não é inteiramente formal, apesar de ser aplicada a todo tipo de assunto, como a lógica. O raciocínio prático – por exemplo, ético – responde a outras regras diferentes das do raciocínio dedutivo, porque a matéria de que trata é de natureza diferente e os ins almejados em cada caso são distintos. Em um caso, procura-se demonstrar; em outro, convencer ou persuadir.

No caso da poética, não se trata de conhecer nem de entender, mas de produzir algo, uma obra. Esta produção é, segundo Aristóteles, “mimética”, no sentido de uma cópia da realidade. Mas esta “mímese” deve ser entendida adequadamente já que Aristóteles distingue o poeta do historiador, dizendo, precisamente, que, enquanto este descreve simplesmente os fatos efetivamente ocorridos, o poeta os descreve como

poderiam ocorrer, o que proporciona à mímese a mediação do possível,

impedindo que a poesia seja vista como um mero registro histórico de fatos. Aristóteles impõe à poesia uma exigência de verossimilhança dentro

desta mediação; não a verossimilhança do factual, mas a verossimilhança

do possível. Desta forma, a obra poética pode admitir inverossimilhanças factuais e respeitar, não obstante, a verossimilhança do possível. Neste sentido, a poesia tem uma relação com o universal através do possível, enquanto a história é irremediavelmente particular.

Esta concepção da poética constitui indiretamente uma crítica à iloso ia de Platão e especialmente a sua teoria das Ideias Puras. Pois Platão havia expulsado os poetas da República alegando que eles só representavam o sensível, apresentando cópias de uma realidade ontologicamente inferior e descuidando, portanto, do essencial, que eram as Ideias. A célebre crítica de Aristóteles a Platão (no Livro I da Metafísica) sugere que as Ideias não estão tão distantes das práticas humanas – tanto lógicas como poéticas – quando estas são realizadas seguindo suas regras especí icas e assinala, ao mesmo tempo, a inutilidade de postular a existência de Ideias: “Pois o que é que se põe em atividade dirigindo o olhar para as Ideias? É possível que

uma coisa seja ou venha a ser semelhante a algo sem que seja formada como cópia, de modo que, quer exista ou não Sócrates, seria possível ser semelhante a Sócrates, inclusive se existisse um Sócrates eterno. Ademais, haverá muitos paradigmas, portanto Ideias, de uma mesma coisa; por exemplo, com relação ao homem, Animal e Bípede; e, além disso, certamente, a Ideia de homem” (Aristóteles, Metafísica, Livro I, 991a). A crítica tem duas direções, por im coincidentes: na atividade lógica e cognitiva, não são necessárias Ideias eternas e únicas para conhecer as coisas, já que podemos, por exemplo, identi icar duas coisas ou diferenciá- las de uma forma universal sem precisar de um modelo eterno (de uma Identidade em si e de uma Diferença em si). Por outro lado, na atividade poética, tampouco são necessárias Ideias eternas (nem, por conseguinte, poderíamos condenar os poetas por não as representar), já que podemos apresentar ações comovedoras de uma forma universal, na medida em que a obra poética se mantém no nível do possível e não dos meros fatos sensíveis. Em nenhum dos dois casos a busca pela universalidade – que interessa tanto à ciência como à poética – supõe a existência de Ideias Puras no sentido platônico.

II

Ladrões de bicicleta (Itália, 1949), de Vittorio De Sica. É possível retratar a realidade “como ela é”?

Este ilme de Vittorio De Sica é uma espécie de iloso ia visual a respeito da noção de “realidade” e da relação da arte com ela. Pode a arte reproduzir a realidade do mundo tal como ela é?

Ladrões de bicicleta tenta ser, segundo os pressupostos do neorrealismo

italiano das décadas de 1940 e 1950, uma aproximação imediata da realidade, sem os arti ícios habituais da iloso ia, da literatura ou do próprio cinema. Tentaremos ver, neste Exercício, até que ponto a pretensa aproximação neorrealista da realidade e sua exigência de verossimilhança são de cunho aristotélico.

Como veremos, contra as intenções explícitas de seu realizador, o ilme

Ladrões de bicicleta pode ser interpretado como um conjunto de conceitos-

imagem que problematizam a própria noção de “realidade”, que tenta ser captada “de forma imediata” e idelíssima. Os conceitos-imagem deste

ilme, pretensamente “realista”, acabam problematizando fortemente a hipótese “realista” que é o ponto de partida.

O ideário “neorrealista” é formulado em conceitos-ideia, na forma escrita, em vários manifestos e declarações públicas da época. Mas na medida em que estes conceitos-ideia se transformam depois em imagens, os conceitos gerados na linguagem no cinema (os conceitos-imagem) começam a problematizar esse ideário que pretendia ser aplicado aos ilmes de maneira externa e impositiva. Lemos, por exemplo: “Por neorrealismo italiano se entende um movimento que loresce na Itália por volta da época da Segunda Guerra Mundial e que, baseando-se na realidade e vendo-a com simplicidade, crítica e coletivamente, interpreta a

vida como é e os homens como são” (Verdone, citado em Maria-rosaria

Fabris, O neorrealismo cinematográ ico italiano , Fapusp. Edusp, 1996, p. 117, grifo meu). Essa é a caracterização de Verdone, reproduzida por Fabris, no livro citado. O movimento neorrealista se caracterizaria, segundo ele, pelos seguintes elementos: “1. o elemento histórico e temporal, dado que o neorrealismo nasceu e se desenvolveu na Itália por volta da Segunda Guerra Mundial; 2. o elemento real e documental, pois os ilmes neorrealistas se basearam na realidade, sem ser documentários (...); 3. o elemento técnico, ou seja, a simplicidade que caracterizou suas produções (...); 4. o elemento coletivo, visto que o neorrealismo não se interessou pela

história individual, mas pela história coletiva: os guerrilheiros, os ex- combatentes, a gente humilde que aspirava a ‘viver em paz’; 5. o elemento crítico (...)” (Idem, 117/18). Guy Hennebelle, em sua caracterização do neorrealismo italiano, aponta para o uso da câmera que “não sugere, não disseca, somente registra ”, a recusa à utilização de efeitos visuais, a imagem cinza do tipo documentário, a ilmagem em cenários reais, o uso de atores não pro issionais, a simplicidade dos diálogos, o uso dos dialetos, a filmagem de cenas sem som e os orçamentos baixos.

Como vemos, todas estas formulações são totalmente empíricas, em nenhum momento se procura uma caracterização conceitual do movimento e uma melhor de inição da di ícil noção de “realidade” que os ideólogos neorrealistas utilizam como se fosse completamente clara para qualquer pessoa. (Teria sido bom se, como quase ocorreu, o movimento tivesse sido chamado de “neopopulismo” ou de outro nome que não izesse nenhuma alusão ao difícil conceito de “realidade”.)

Na utilização de atores não profissionais, típica do neorrealismo, também se deixa ver esta atitude de “imediatismo” presumivelmente mimético: “Rossellini também muitas vezes preferiu trabalhar com atores não pro issionais porque, na opinião dele, não tinham ideias preconcebidas e, uma vez desinibidos do meio que os paralisava diante da câmera e levados a representar, conseguiam ser eles mesmos” (Idem, 82, grifo meu). Parece que o ator não pro issional conseguiria uma espécie de “imediatidade consigo mesmo”, “espontaneidade completa”, vedada ao ator pro issional, carregado de tecnicismos e arti ícios deformadores da “realidade como ela é”.

O ilósofo deverá estremecer diante destas formulações apressadas e sumárias, nas quais aparecem termos supercomplicados sendo usados como se fossem simples e óbvios. Algo que a iloso ia nunca soube com certeza é entender o que signi ica “a vida como ela é” e “os homens como realmente são”. Como são os homens? E como é a vida? E o que signi ica “ser si mesmo”? Estas são questões muito complicadas! As a irmações taxativas transmitidas pelos teóricos neorrealistas parecem, no nível dos conceitos-ideia, extremamente vagas e insu icientes, pelo menos à luz dos conceitos-ideia dos ilósofos pro issionais. Será que a coisa se esclarece no âmbito dos conceitos-imagem do cinema, ou seja, quando vemos ilmes

neorrealistas? Será que só vendo-os podemos entender os manifestos

teóricos?

De qualquer forma, e para arriscar uma hipótese que facilite nosso trabalho, entendo que a noção de “realidade” presente nos ilmes

neorrealistas parece ser formulável, de forma conceitual e aproximada, como: conjunto de fatos cotidianos e coletivos, de conteúdo social, que podem

ser vistos e vividos empiricamente por qualquer pessoa. Não se aceita, pois,

nesta noção, nenhum tipo de “realidade” oculta ou transcendente aos fatos que são mostrados de maneira imediata ou de realidade individual, excepcional ou fantástica.

Mais grave ainda parece o fato de que muitos desses teóricos do neorrealismo, e inclusive um ilósofo (um dos primeiros a se interessar pelo fenômeno do cinema), pensaram que a linguagem do cinema favorecia especialmente esta “captação imediata da realidade como ela é”. Em 1949, Cesare Zavattini declarou, em um Congresso Internacional, em Perugia, que “o cinema fracassou completamente em sua missão ao escolher o caminho de Méliès e não o de Lumière”, ao que o ilósofo italiano Galvano Della Volpe respondeu da seguinte forma: “O convite que nos faz Zavattini para ter presente o exemplo de Lumière (exemplo do ‘caráter científico’ ou de ‘objetividade documental’ do ilme) em lugar daquele sustentado por Méliès (ou exemplo do ‘caráter fabuloso’ da representação cinematográ ica) me parece sugestivo se acolhido com a devida cautela.” Em seguida, referindo-se à “técnica artística peculiar do cinema”, disse: “a técnica realista, no sentido do registro imediato do real, próprio da câmera , é um instrumento de captação analítica das coisas, um instrumento cuja força de análise é constituída exatamente por suas formas precisas e insuperáveis de ilmagem espaçotemporal, e por isso mesmo objetiva, do mundo real (...) nem metafórico, nem meta ísico”, aludindo mais à frente à “impossibilidade constitutiva de traduzir em valores cinematográ icos especí icos tudo o que for concepção fantástico-literária, ou seja, concepção verbal-conceitual, abstrata, ideal e livre, sobre o (...) mundo real (...)” (Idem, 27/28, grifo meu). O cinema é visto, assim, como o próprio instrumento do realismo, por sua presumível capacidade de “captar o mundo de forma imediata”, ao contrário da captação literária, constituindo-se em “um registro puro” do que ocorre no mundo. O mito da imediaticidade, já discutido no século XIX por Hegel no plano da escrita, antes do nascimento do cinema, parece renascer das cinzas através da questão da linguagem das imagens.

A história do neorrealismo poderia ser vista como a história de um fracasso, altamente reveladora das verdadeiras potencialidades expressivas do cinema, que vão além do que os realizadores neorrealistas pretenderam fazer com elas. Nesta perspectiva, o fracasso do neorrealismo não se explicaria somente por motivos sociológicos ou políticos (por

exemplo, pela frustração dos projetos políticos italianos do pós-guerra, uma vez diluída a forte motivação de um inimigo comum, o fascismo), mas

também por motivos inerentes à linguagem do cinema, pelo fato de o neorrealismo ter se apoiado em uma falsa visão dessa linguagem como um

instrumento visceralmente “realista”. (A este respeito, não deixa de ser revelador que três diretores inicialmente ligados ao neorrealismo – Fellini, Visconti e Antonioni – tenham se transformado, com o passar do tempo, nos antípodas do neorrealismo, retirando do cinema, respectivamente, tudo o que sua linguagem podia oferecer em termos de captação fantástica da realidade, de ambiguidade da imagem [contra sua presumível “imediaticidade” reveladora] ou de um realismo suntuoso e trans igurado pela memória, a antecipação e a decadência. Antonioni, particularmente, se referiu a sua obra posterior como um “neorrealismo sem bicicleta”.)

Os neorrealistas italianos tinham demasiadas ideias e motivações políticas externas ao cinema e pensaram que este seria um meio mais ou menos inerte e dócil para veicular suas ideologias críticas, libertárias e populistas. Mas os realizadores neorrealistas acabaram criando imagens, em movimento e em sequência, imagens essas que pediam uma organização e que sugeriam mais possibilidades expressivas do que as previstas por quem as faz. Os ilmes neorrealistas já eram, apesar de sua vocação para “registro imediato” da realidade, sucessões de conceitos- imagem, com todos os seus elementos intrínsecos como o perspectivismo, a

inde inição, a abertura, a hiperaproximação, a icção, a superação do dualismo sujeito/objeto, a alternância de pessoas, a temporalização, o corte, a redistribuição de espaços e tempos etc . (A tese de Antonioni em Blow Up,

especi icamente, era de que a câmera vê além e capta mais coisas do que o fotógrafo que a opera. Pode-se ver Blow Up como um manifesto “pararrealista” que explicita claramente o “neorrealismo sem bicicleta” de Antonioni.)

No caso deste ilme em particular, um jovem operário desempregado, Ricci (Lamberto Maggiorani), consegue um trabalho de colocador de cartazes, mas o requisito para que possa trabalhar é que tenha uma bicicleta. O jovem e sua mulher conseguem retomar a bicicleta que estava empenhada, mas para isso devem fazer grandes sacri ícios (devem empenhar os lençóis da cama). No primeiro dia de trabalho, enquanto está colocando um cartaz, um jovem ladrão rouba a bicicleta de Ricci e foge com ela para os subúrbios da cidade. Em companhia de seu pequeno ilho Bruno (Enzo Staiola), Ricci inicia uma descida literal aos infernos em busca da bicicleta perdida, passando primeiro por uma zona de comércio ativo de

compra e venda de bicicletas de origem duvidosa, não muito bem iscalizada, e acabando em um bairro – o do ladrão – onde os moradores mostram uma forte união contra estranhos. Ricci e Bruno passam por todo tipo de angústias, dissabores, falta de solidariedade e humilhações: primeiro, alguns colegas de trabalho os ajudam a procurar a bicicleta perdida, mas em seguida desistem e abandonam o amigo desesperado, voltando a seus próprios trabalhos e preocupações (o caminhoneiro que os leva até o lugar da busca se queixa constantemente da chuva e diz que teria sido melhor não sair de casa, fazendo com que Ricci e Bruno se sintam um fardo). A polícia presta uma ajuda puramente burocrática, registrando a queixa, ajudando pro issionalmente quando é chamada, mas sem mostrar disposição ou interesse pelo assunto. As pessoas do subúrbio mostram aberta agressividade diante do invasor de seu feudo e inalmente, para piorar ainda mais as coisas, Ricci é publicamente humilhado com uma ameaça de prisão, já que, mergulhado no desespero, tenta roubar, ele mesmo, uma bicicleta, para poder continuar trabalhando. Por im nada se consegue, a bicicleta não é encontrada e os protagonistas são abandonados pela câmera enquanto afundam em um mundo cinzento, frio e sem solidariedade.

A pretensão de “registro imediato do real” por parte de De Sica é evidente. Ele não tenta, por exemplo, melhorar as pessoas, mostrando (como Frank Capra, o escandaloso otimista do cinema) uma solidariedade sobre-humana. Ao contrário, mostra as pessoas ocupadas consigo mesmas, vivendo uma situação global de alienação, desemprego e desesperança que não permite o luxo da ajuda mútua. A polícia não é apresentada como particularmente cruel, mas sim como atirada numa situação cuja di iculdade parece insuperável: uma bicicleta roubada em uma cidade imensa e quase impossível de encontrar, e não parece muito racional mobilizar uma enorme força policial para encontrar uma bicicleta, por mais importante que esta seja para a vida de Ricci.

Novamente, De Sica mostra uma estrutura social que não permite dualismos fáceis, na qual não é possível apontar culpados e inocentes, vilões e perseguidos. A mesma força avassaladora domina Ricci, seus amigos, a polícia e outros subprodutos sociais, como a vidente que ganha seu dinheiro à custa do desespero das pessoas, que pagam por consultas vazias e inúteis. (A que dá a Ricci é exemplarmente obscura: “Ou encontra a bicicleta em seguida ou não a encontrará nunca mais.”) A injustiça existe: um homem honesto é levado aos extremos de indignidade e inalmente transformado em um delinquente. Faz isso por seu ilho, mas é diante dele

que se consuma sua indignidade, quando alguém comenta: “Veja o exemplo que dá ao ilho.” Esta injustiça, entretanto, não tem dono visível e concreto. Não são seus amigos, nem o ladrão de bicicletas, nem as autoridades, nem a vidente, nem, certamente, Ricci ou Bruno, nem ninguém. Isto pode ser apontado por De Sica como argumento em favor do “realismo” de seu filme: o fato de não conter valorações.

Sem dúvida o ilme de De Sica pode ser visto como um grande conceito- imagem da noção de “imitação do real”, ou seja, um ilme que tenta dizer algo, em sua própria estrutura, sem distanciamento ideológico, a respeito desta questão. Isto o ilme consegue indo muito além do tema especí ico de sua trama, ou seja, o roubo da bicicleta do operário Ricci. O ilme pode ser

lido sintaticamente, antes de sociopoliticamente . É preciso vê-lo como um

filme que pretende refletir “a realidade como é” e perceber como o próprio ilme pode mostrar a frustração de tal tentativa. Mas, por outro lado, será que a possível problematização das ideias neorrealistas, que a linguagem do cinema é capaz de introduzir, afetaria também a poética de Aristóteles? Seria aristotélico o ideário neorrealista?

Quatro ideias aristotélicas fundamentais sobre poética parecem ser as seguintes:

(a) A poesia imita a realidade e com isso produz uma forma de prazer, mesmo quando o que imita é, na realidade, desagradável. Imitar gera prazer. As obras poéticas devem tentar ser verossímeis sem introduzir elementos ad hoc. Mas esta verossimilhança deve ser entendida como verossimilhança do possível, não do factual. Portanto, ligada ao universal, não ao particular.

(b) Há uma clara distinção entre tragédia e comédia, do ponto de vista da mímese. A tragédia imita ações de homens nobres e superiores ou, pelo menos, atos de homens concebidos como melhores do que são, enquanto a comédia imita atos de homens pequenos, insigni icantes e ridículos ou de homens concebidos como piores do que são.

(c) No caso da tragédia, trata-se de uma imitação enaltecedora e puri icadora das paixões, a “catarse”, conseguida por meio do terror e da piedade.

(d) As obras poéticas, em particular a tragédia, devem ter uma estrutura Princípio/Meio/Fim, isto é, responder a certas “unidades”. (Ver Textos Aristotélicos ao final deste Exercício.)

Ladrões de bicicleta e grande parte dos ilmes neorrealistas questionam

frontalmente o item (b) de Aristóteles. Com efeito, um dos propósitos explícitos do neorrealismo italiano consiste precisamente em enfocar a

tragédia cotidiana, ou seja, a tragédia dos homens pequenos e insigni icantes . Parece que Aristóteles não conseguia ver nenhuma tragédia no cotidiano (sem dúvida, o dia a dia grego era profundamente diferente do cotidiano italiano do pós-guerra), que via a tragédia ligada ao elevadíssimo, e no homem comum e simples via somente o ridículo e insigni icante. Como poderia o escravo transmitir algo de trágico para o cidadão grego? Cada

ilme neorrealista, por sua vez, é um experimento de ligação da tragédia com o cotidiano, mostrando que o trágico não está exclusivamente concentrado no sublime, no nobre e no elevado. A noção neorrealista de tragédia cotidiana desestabiliza um dos critérios aristotélicos de distinção entre tragédia e comédia.

É importante observar, entretanto, que esta problematização é apresentada em conceitos-imagem: o ilme mostra, em uma vida possível, que os conceitos de Tragédia e de Cotidiano não são incompatíveis e mostra essa compatibilidade de maneira encenada, por meio de uma experiência de forte dramaticidade que leva o espectador a sentir a possibilidade e a realidade dessa ligação entre o trágico e o cotidiano. Neste sentido, o ilme propõe uma revisão da ideia aristotélica e se trata de uma tese conceitual (ou seja, universal), no sentido de a irmar imageticamente que “em geral, é falaz a ligação pseudonecessária entre trágico e caráter elevado ou nobre”. Isto não é meramente dito, mas apresentado em imagens com um certo impacto, característica que faz parte da natureza da asserção cinematográ ica. O cinema neorrealista, neste ponto, é antiaristotélico. E poderíamos dizer, em geral, que o cinema desconstrói cada vez mais expressivamente esta distinção tradicional.

Por outro lado, a poética aristotélica e o neorrealismo italiano parecem

No documento O Cinema Pensa, Julio Cabrera (páginas 51-74)