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Kant, Thomas More e a sociedade dos poetas mortos

No documento O Cinema Pensa, Julio Cabrera (páginas 163-186)

I - Introdução

Ao contrário da meta ísica tradicional, que misturava indevidamente os planos do conhecimento teórico e da ação prática, Kant os distingue nitidamente, em sua iloso ia “transcendental”, como duas dimensões estruturalmente diferentes da razão humana. A razão, apesar de ser uma só, tem diferentes usos: um uso teórico-especulativo, que organiza o conhecimento do mundo, e um uso prático, que organiza a ação moral e política no mundo. A iloso ia transcendental opera precisamente essa distinção dos usos humanos da razão, para que eles não sejam ilegitimamente confundidos.

Estes dois planos da racionalidade humana, teórico e prático, estão submetidos a leis transcendentais igualmente rigorosas: o mundo natural, regido pelas leis ísico-matemáticas, e o mundo moral, regido pela liberdade racional prática. A noção kantiana de liberdade não consiste em “fazer o que se quer”, mas na possibilidade, racionalmente determinada, de que a ação humana seja independente das leis ísico-naturais por se reger única e exclusivamente por leis morais livres, que a própria razão, em seu uso prático, dá a si mesma.

O ser humano tem, assim, a capacidade de se opor ao comportamento da natureza (a liberdade consiste precisamente nisso). Desta forma, enquanto na ísico-matemática tentamos nos ater ao dado em uma experiência possível, na moral tentamos nos tornar independentes do que é dado na experiência. O que pareceria uma contradição – que o homem esteja, ao mesmo tempo, submetido às leis da natureza e que seja livre – é prontamente resolvido no sistema de Kant mediante esta teoria “transcendental” da razão. O termo “transcendental” se refere às condições racionais de possibilidade do conhecimento teórico e da ação prática. Dada a realidade do conhecimento e da ação, Kant se pergunta quais são as condições racionais sob as quais ambos são possíveis no mundo.

Na realidade Kant assume uma atitude que foi comum em toda a história da iloso ia, a de tentar determinar a capacidade moral do homem segundo os ditames da razão, em sua tentativa de harmonizar esta com as paixões. Trata-se de de inir as possibilidades de domínio, total ou parcial, das paixões por meio da força da razão. A iloso ia – tanto clássica quanto moderna – sempre sustentou que este domínio é possível e que a razão deve poder se sobrepor aos ditames da sensibilidade. No caso particular de Kant, este domínio do sensível por parte da razão ocorre no interior de uma complicada teoria da razão pura, que pressupõe que a realidade se dá

na razão humana em dois âmbitos diferentes e não contraditórios: como “fenômeno” (no nível do conhecimento teórico, determinado por leis naturais) e como “noúmeno” (no nível da ação prática livre). Só fazendo esta distinção é possível a ação moral, apesar de Kant admitir que uma ação moral plenamente livre , sem nenhuma determinação sensível, é extremamente di ícil de ocorrer concretamente, ou talvez impossível, ao menos em toda a sua sublime pureza.

II O homem que não vendeu sua alma (Inglaterra, 1966), de Fred Zinemann, e Meu pé esquerdo (Irlanda, 1989), de Jim Sheridan. Pode a liberdade vencer as coações da sociedade e da natureza? Sociedade dos poetas mortos (EUA, 1989), de Peter Weir. Pode a liberdade, em seu conflito com a autoridade, levar alguém à morte? O ilme de Fred Zinemann O homem que não vendeu sua alma, baseado em uma peça de Robert Bolt, refere-se à vida e à morte de Thomas More, o chanceler- ilósofo, autor da famosa Utopia, que não cedeu às pressões do rei Henrique VIII em seus desejos de se divorciar da rainha para se casar com sua amante, Ana Bolena, preferindo morrer no patíbulo a cometer uma injustiça. A pergunta é: foi Thomas More uma pessoa moral em um sentido kantiano? Ou melhor: esse Thomas More do mestre Zinemann foi kantiano em sua atitude decidida e intransigente? Conseguiu, inalmente, realizar uma ação moral livre e plenamente racional, sem intervenção de

nenhum tipo de elemento sensível?

Certamente este ilme pode ser lido como um macroconceito-imagem da noção de Autonomia. Diante de todas as enormes pressões que sofre Thomas (protagonizado pelo extraordinário ator inglês Paul Sco ield), primeiro como amigo e funcionário do rei, depois como simples cidadão, e em todo momento como marido e pai de família, como advogado e pro issional, ele toma uma decisão altamente desvantajosa para ele (e também, lateralmente, para sua família) que o leva inalmente à morte. Segundo o que mostra a peça teatral de Bolt e o ilme de Zinemann, de um ponto de vista estritamente sensível-natural, todas as circunstâncias levavam claramente Thomas More a aprovar a iniciativa do rei: ele era muito bem conceituado na corte, respeitado como advogado, amigo pessoal do rei e não se comprometeria com nada especialmente ignominioso apoiando-o. Contudo, Thomas More não aprovou o pedido do rei, baseado em princípios ético-jurídicos e em uma linha de conduta guiada por estes critérios. Quando o sinistro Cromwell (Leo McKern) inicia uma perseguição política contra Thomas devido a sua atitude diante da questão, More se vê obrigado a radicalizá-la a extremos que ele mesmo, talvez, não pensasse que seriam possíveis, até seu total desprestígio social e sua condenação à morte.

O ilme mostra Thomas como um ser nada heroico, vulnerável, sofrido, de modo algum sobre-humano, mas ao mesmo tempo serenamente

convencido de sua posição e de que está literalmente preso a ela, como se não fosse mais dono de si mesmo frente à terrível objetividade da Lei Moral. Neste sentido, seu comportamento certamente parece kantiano. Kant escreveu que um ser racional não cometeria uma ação que, mesmo quando lhe desse bene ícios evidentes, faria no dia seguinte com que repugnasse a si mesmo. Sem dúvida Thomas não poderia viver se abdicasse de seus princípios mais profundos, simplesmente não se suportaria; a mera continuação da vida sensível seria um prêmio demasiadamente baixo e mesquinho a se pagar pela renúncia absoluta a uma vida moral (não meramente sensível, segundo Kant, mas inteligível).

Mas o ilme mostra claramente que a luta contra as “determinações sensíveis” não deve ser entendida no sentido estreito de “natural-sensível”, como se os inimigos da moralidade racional fossem somente os próprios instintos e inclinações naturais. Na realidade, a armadilha na qual Thomas cai é eminentemente social, fabricada pelos homens e sua venalidade, e a força “sensível” que tenta arrastar Thomas para a indignidade é, na realidade, uma força socialmente de inida: apoiar a vontade do rei, fazer o que todos izeram, evitar preocupações para sua família etc. O determinismo natural se dá, na verdade, através do próprio homem entendido como ser natural, submetido a paixões egoístas e agressivas, corpori icadas, neste caso, nas iguras do rei, de Cromwell, do cardeal Wolsey (Orson Welles) e do traidor Richmond (John Hurt), que depois de sofrer um rechaço de More tenta uma carreira fácil e rápida na corte. Do ponto de vista kantiano, o ilme mostra a possível vitória da liberdade prática sobre todas as compulsões oriundas da sociedade, da política, da convivência palaciana, das vantagens institucionais etc., vitória baseada na portentosa independência que a esfera prática pode chegar a ter com relação à teoria, à natureza, à experiência, ao dado. Thomas More faz exatamente o contrário do que todas as circunstâncias sensíveis o levariam a fazer.

Mas o ilme também mostra que, mesmo quando existe uma ordem interior que pode ser mais forte do que tudo o mais, ela só pode ser assumida na estrita medida em que, como no caso de More, se está disposto a dar a vida em nome dessa autonomia sublime. Não pensem – parece nos dizer o ilme – que os valores morais inteligíveis nos servirão para prolongar nossas vidas inde inidamente. Pode bem acontecer de a ordem moral, entendida kantianamente, exigir de nós a nossa própria vida em troca de seu cumprimento rigoroso. As imagens mostram – fazem viver – que é muito complicado, ou praticamente impossível, conviver com as

determinações naturais, negociar com elas, sem colocar a própria vida em risco. Se More é realmente kantiano, a ética kantiana parece uma ética para a morte, não para a sobrevivência. Como escreveu o próprio Kant, ser moral não equivale a ser feliz, mas a ser digno da felicidade. Talvez se trate de uma ética para os anjos, como disseram frequentemente seus detratores, no sentido de que More está convencido de estar partindo para a vida eterna através de seu ato verdadeiramente não humano, absolutamente incongruente com a tendência normal das ações humanas.

Kant fez, não obstante, uma distinção essencial entre o plano ético e o plano jurídico. A esfera ética pertenceria ao foro interno e a jurídica, ao externo. Nem sempre o juridicamente correto seria, per se, eticamente correto. Por exemplo, do ponto de vista jurídico, ninguém pode ser obrigado a prestar testemunho contra si mesmo e existe um direito de se autodefender ilimitadamente. Este princípio jurídico pode não ser sempre ético: às vezes pode ser mais ético se acusar, em vez de se defender inde inidamente. Durante o ilme, Thomas More às vezes mostra mais uma retidão jurídica do que estritamente ética. Em uma discussão com seu possível cunhado, este o faz notar que as leis inglesas favorecem, às vezes, os malfeitores, e que portanto elas não são con iáveis nem veneráveis. More defende a necessidade de mesmo assim se defender ferrenhamente a ordem jurídica. “Mesmo quando ela bene icia o Diabo?”, pergunta o outro, horrorizado. E More responde: “Mesmo quando bene icia o Diabo, sim. Pois só assim poderei estar seguro de que continuarei contando com a lei quando precisar dela.” De qualquer forma, sua condenação à morte mostra claramente que, quando More precisou da lei, ela não o protegeu. Ou, pior ainda, que quando ele assumiu poderosamente sua persona ética, as leis o condenaram com justiça, de acordo com a ordem jurídica vigente.

Na verdade Thomas tem uma fé irrestrita em uma espécie de Ordem Legal que está acima dos governantes, reis e chanceleres, não na ordem legal de fato (neste caso, a estabelecida pelo rei do momento), mas em uma Ordem inteligível guiada por princípios morais estáveis. Nisto, More é certamente um kantiano. Mas na verdade estes princípios podem levar seus cultores ao patíbulo; não há nenhuma garantia do contrário. A ética não protege, pelo contrário, desampara, abandona seus praticantes na maior das solidões possíveis, onde nem sequer os entes queridos podem ter acesso (como é mostrado na belíssima relação de Thomas com sua família, sua mulher [Wendy Hiller] e sua ilha [Susannah York]). Os familiares suplicam a Thomas que assine o documento e saia de sua cela, e Thomas percebe, diante destes pedidos guiados pela sensibilidade (diria

Kant), que está absolutamente só.

O ilme faz viver, logopaticamente, uma situação moral, em vez de simplesmente falar dela. Mostra como é enfrentar um dilema entre as determinações sensíveis e a liberdade, e mostra “paticamente” como vive e sente uma pessoa envolvida neste con lito. O experimento consiste em colocar nele uma pessoa que estivesse disposta a aplicar princípios autenticamente morais até o fim.

Os críticos da moral kantiana (sobretudo os utilitaristas e empiristas em geral) acusariam Thomas de ter sido demasiado rigoroso e exigente consigo mesmo, uma espécie de “fanático moral”. Não é preciso chegar a estes extremos. Poderia perfeitamente ter negociado, salvado a vida e continuado sendo uma pessoa moral. Ao contrário, ao se sacri icar, Thomas teria privado muitas pessoas decentes de sua assistência necessária. Finalmente, sua morte não serve a ninguém. Baseado neste tipo de consideração, ele poderia perfeitamente “suportar a si mesmo” no dia seguinte à assinatura daquele documento puramente formal, em bene ício do divórcio do rei. Isso não o impediria de seguir agindo corretamente. Mas neste ponto há um argumento kantiano muito forte em favor da conduta de More. Em seu artigo sobre a mentira “Sobre um suposto direito a mentir por amor à humanidade”, Kant apresenta o exemplo de um bandido que está perseguindo uma pessoa para matá-la. Um kantiano que está perto dos acontecimentos vê onde o fugitivo se esconde e segundos depois o bandido chega e lhe pergunta onde o homem se escondeu. As pessoas em geral, e grande parte dos ilósofos morais, pensam que se pode mentir em casos excepcionais, que se essa pessoa, nesta situação, mentisse de forma excepcional, salvaria uma vida, enquanto dizer a verdade poderia permitir que o bandido matasse sua vítima.

Kant condena sem atenuantes este tipo de raciocínio favorável à mentira e seu argumento é forte porque se baseia em um fato que di icilmente pode ser negado, que Kant aprendeu com Hume: a contingência radical do mundo. Pois nada pode assegurar que, com toda certeza, o kantiano vá salvar a vida do perseguido se mentir. Poderia acontecer que, através de sua mentira, pela contingência dos acontecimentos, o bandido acabasse encontrando sua vítima e a matando e, neste caso, diz Kant, a pessoa que mentiu é plenamente responsável por esse crime, não pelo resultado, mas porque transgrediu a lei moral em bene ício da pura sensibilidade. Se ele não tivesse mentido, talvez o fugitivo tivesse conseguido fugir de alguma forma e, se tivesse caído nas garras do bandido, o kantiano não seria responsável por essa morte no plano inteligível. O pobre fugitivo,

morrendo talvez nos braços do kantiano, teria de compreender, através de um último exercício de sua razão pura prática, que o kantiano tinha a obrigação de considerar a conservação da ordem moral inteligível mais importante do que a mera sobrevivência sensível de sua pessoa singular.

Seguindo o mesmo io condutor, Thomas More poderia ter assinado o documento aprovando o casamento do rei para salvar a simples continuidade de sua vida sensível, mas este ato, certamente imoral do ponto de vista inteligível, tampouco lhe teria assegurado a salvação sensível de uma forma segura, dada a contingência do mundo (e das ações humanas, sobretudo quando essas ações são as de um rei despótico e arbitrário). O cardeal Wolsey aprovou o casamento e Cromwell sempre foi

iel a Sua Majestade, não obstante a contingência do mundo fez com que ambos fossem, mais tarde, considerados traidores.

Uma última questão interessante: será mesmo que não houve nenhuma determinação sensível no ato supremo de More, nenhuma pitada de orgulho, vaidade, egoísmo, mesquinhez, exibicionismo ou perversidade? Nisto, segue-se o passo das problematizações apresentadas às éticas rigoristas por ilósofos utilitaristas, empiristas etc. E no caso particular da linguagem cinematográ ica, eminentemente sensível, não mostrariam estes casos exemplares a presença inevitável dos elementos ísicos e naturais que Kant queria deixar fora da determinação puramente moral dos atos? Neste sentido, deveríamos nos perguntar de novo o que já foi indagado em exercícios anteriores: não seria o cinema uma arte eminentemente

empirista? Pela própria natureza sensível da imagem e pela própria

estrutura “experiencial” da linguagem cinematográ ica, não será que esta tese hiper-racionalista kantiana não é permanente e inevitavelmente problematizada por conceitos-imagem de noções como “honra”, “valor”, “conduta ética”, “liberdade”, no sentido não empirista assumido por Kant?

Vejamos. O que é que diz conceitualmente este ilme sobre a problemática kantiana? Há vários conceitos tratados imageticamente neste ilme: “Manter uma atitude de negociação diante das determinações sensíveis” (conceito veiculado por Wolsey), “Manter uma atitude de proveito pessoal diante de determinações sensíveis” (Cromwell, Richmond), “Manter uma atitude de independência diante de determinações sensíveis” (Thomas More). O rei (tanto sua pessoa como a situação em que se encontra) é uma corpori icação das próprias determinações sensíveis. É interessante observar, de passagem, que o rei, apesar de sua grosseria, é capaz de ver a grandeza moral de Thomas e por isso interessa a ele especialmente sua aprovação no litígio de seu divórcio.

Na verdade, ele quer utilizar politicamente esta probidade moral para depois poder dizer: “O homem mais honesto da Inglaterra aprovou meu divórcio e meu novo casamento.” Mas o rei não percebe que, precisamente por ele ser o homem mais honesto da Inglaterra, não poderia aprovar. O

ilme, iloso icamente, pode ser visto como uma condenação moral – universal – das duas primeiras atitudes e como uma defesa da terceira.

Mas é de se perguntar se a própria linguagem cinematográ ica, com seu caráter eminentemente sensível (e “empirista”), não poderá trair o kantismo explícito e intencional do texto original de Robert Bolt. Porque, quando se fala destas questões de forma abstrata, parece mais crível que estas condutas supremamente morais sejam possíveis, mas, quando as vemos dramatizadas em uma história que está sendo vivida sensivelmente, assistimos não só ao medo que está sendo vencido, mas também ao imenso orgulho, à suprema onipotência do ato intransigente de More. Não compreendemos melhor, neste momento sensível do filme, que aquele “não poder no dia seguinte se suportar depois de ter abdicado dos próprios valores” poderia igualmente ser visto como uma determinação sensível como qualquer outra? Neste ponto, os empiristas e utilitaristas diriam que não precisávamos do cinema para perceber isso e eles teriam razão. Mas é uma questão de linguagem. Talvez nunca seja tão claro como no caso dos conceitos dramatizados pelo cinema que os atos concretos dos homens, como o próprio Kant admite em um texto citado adiante, sempre estão inundados por determinações sensíveis.

De qualquer forma, Thomas More (pelo menos o Thomas More que este ilme apresenta) tinha aquilo que Kant considerava necessário e su iciente para ser uma pessoa moral: uma boa vontade. Esta fará com que pre iramos o egoísmo autossacri icado em lugar do egoísmo agressivo. A grandeza moral de Thomas consiste, talvez, no fato de que seu egoísmo particular tem a ele como primeira e última vítima, em vez de vitimar a terceiros. O que não é pouca coisa.

Assim como o caso de Thomas More pode ser visto como uma vitória da liberdade prática sobre as compulsões da sociedade e da chamada “justiça humana”, o caso do pintor Christy Brown (extraordinária interpretação do ator britânico Daniel Day-Lewis) pode ser visto como um impressionante caso de independência em relação a determinações naturais stricto sensu. Christy nasce com paralisia generalizada, é capaz de mover somente seu pé esquerdo, e com este pé consegue pintar quadros de profunda sensibilidade e se transformar em um pintor reconhecido, depois de ser

completamente desenganado pelos médicos, considerado mentalmente nulo e “um peso para sua família”. Christy é mostrado como um ser animado, bem-humorado, cheio de fé e autocon iança, com uma imensa capacidade de amar e se expressar, embora através de seu caráter áspero e instável. Mas o que verdadeiramente fascina no caso Christy Brown, narrado no ilme de Sheridan, é que apesar de tudo ele mostra pura e simplesmente a condição humana a que todos estamos submetidos, como se a situação de Christy fosse simplesmente uma leve distorção daquilo que acontece em qualquer vida humana, mesmo nas consideradas “normais”: amor, ódio, esforço, culpa. Quando é apresentado em sua primeira exposição, o apresentador diz ao público que Christy Brown não é, como costuma se dizer, “um grande pintor deficiente”, mas simplesmente “um grande pintor” que teve – como devem fazer todos os pintores – que lutar contra si mesmo e vencer todos os obstáculos para alcançar seu próprio autocontrole. A luta de Christy é, como a de todo grande artista, uma luta contra a mediocridade e não especi icamente uma luta contra a deficiência física.

A mãe de Christy, Bridget (Brenda Fricker), uma interessante personagem, é um bom ponto de referência para esta questão. Ela aceita seu ilho exatamente como é, como sendo isso, sem nenhum tipo de distanciamento, sem nunca o considerar “um anormal” e entendendo perfeitamente sua linguagem confusa e mastigada muito antes de Christy começar a fazer seus exercícios vocais e melhorar sensivelmente a dicção. Ao contrário, quando o jovem começa a fazer progressos e a se comunicar melhor, no sentido habitual, a mãe começa a desconhecê-lo, a sentir

No documento O Cinema Pensa, Julio Cabrera (páginas 163-186)