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Descartes e os fotógrafos indiscretos

No documento O Cinema Pensa, Julio Cabrera (páginas 116-135)

I - Introdução

Assim como os ilósofos sempre procuraram submeter o raciocínio e a sensibilidade a regras, conciliar razão e fé e dominar a natureza, da mesma forma procuraram a certeza no conhecimento, o último ponto de apoio no qual se fundamenta todo o resto, o “ponto arquimediano” de todo nosso conhecimento do mundo.

Descartes é o pensador que melhor expressou o desejo de uma certeza última na iloso ia, paradoxalmente acentuando uma atitude inicial de intensa dúvida a respeito de todas as coisas. Segundo este ilósofo, devemos “uma vez na vida” colocar em questão todos os conhecimentos herdados, tudo o que nossa família, nossos professores e os livros que lemos nos ensinaram, e fazer com que todas estas informações passem pela peneira da crítica metódica. O objetivo inal desta dúvida metódica não é, certamente, um objetivo cético, pelo contrário: tentar chegar a um ponto seguro, a partir do qual se possa construir todo o resto de nossos conhecimentos e certezas.

Descartes era um ilósofo bastante “pictórico” em seu modo de expor ideias ilosó icas, utilizando frequentemente a imagem do sonho para expressar melhor seu pensamento. Propõe ao leitor que suponha que tudo o que acreditamos saber possa ser uma espécie de sonho, ou de ilusão, induzida por um gênio maligno que sistematicamente nos engana. Com esta icção, ele pretende submeter nossos conhecimentos à mais aguda crítica concebível, de tal forma que, se eles conseguirem responder a este desa io cético extremo, poderão ser aceitos sem receios e com a maior das certezas possíveis.

Como grande matemático que era, Descartes acreditava que as demonstrações devem abarcar inclusive aquilo que nos parece absolutamente evidente, como a existência das coisas ou nossa própria existência: deve-se estabelecer demonstrativamente mesmo aquilo que nos parece óbvio e intuitivo. Que sejam abandonados, assim, os métodos escolásticos de pensamento – baseados na especulação e na lógica formal – e substituídos por métodos que acentuem a observação e o raciocínio heurístico. Uma vez munidos destas evidências últimas e seguras, será possível organizar corretamente o edi ício de nosso conhecimento e assentar as bases para a aquisição do saber.

De qualquer forma, mesmo representando em sua iloso ia o novo espírito da ciência moderna, Descartes acredita que as bases últimas do conhecimento devem estar apoiadas em exemplos meta ísicos (em última

análise, em uma teoria das perfeições divinas), que assegurem que aquilo que nos parece claro e distinto em nosso método de conhecimento seja realmente verdadeiro. Deus assegura, ao ter construído corretamente nossa natureza, que o que nosso método nos dá como verdadeiro realmente seja assim, ao passo que não teríamos esta garantia meta ísica se, por exemplo, o gênio maligno tivesse modelado nossa natureza, para que nos equivocássemos sistematicamente em nossas tentativas de conhecer o mundo.

II

Blow Up – Depois daquele beijo (Inglaterra, 1966), de Michelangelo

Antonioni: Podemos acreditar em tudo o que vemos?

Janela indiscreta (EUA, 1953), de Alfred Hitchcock: Como pegar um assassino desobedecendo a Descartes.

A prova (Austrália, 1991), de Jocelyn Moorhouse: Uma prova moral da existência do mundo.

O que o cinema disse a respeito da dúvida e da certeza? Será o cinema uma arte essencialmente cartesiana? Vejamos.

Um jovem fotógrafo, rico e bem-sucedido (David Hemmings), enquanto espera a chegada da dona de uma loja que pretende comprar, atravessa a rua e entra em um enorme e charmoso parque desabitado (a ação se desenrola em Londres), onde começa a tirar algumas fotos mais ou menos caprichosas. Observa de longe um casal um tanto estranho – o homem muito mais velho do que a mulher – e começa a tirar fotos deles, cada vez mais de perto. A jovem (Vanessa Redgrave), ao descobrir o fotógrafo indiscreto, aborda-o querendo comprar o ilme e o fotógrafo começa a sentir curiosidade pelo que captou com sua câmera.

Chegando em casa, revela as fotos e descobre nelas um assassinato (o velho que estava com a jovem foi morto por um tiro, disparado de uma grade próxima), assassinato que ele não tinha presenciado com os próprios olhos no momento de tirar as fotogra ias, mas que aparece na revelação posterior. Volta ansiosamente ao parque e descobre ali efetivamente um cadáver. A partir desse momento, ele começará uma longa peregrinação pela cidade, tentando conscientizar várias pessoas amigas da importância do que presenciou, mas não consegue que ninguém o leve a sério: anda por horas passando em festas de drogados, hippies, mulheres alcoolizadas, pessoas indiferentes ou demasiadamente absortas em seus próprios assuntos, até que, quase por cansaço, o jovem começa a diminuir a importância do que viu ou, talvez, até a duvidar se tudo aquilo realmente aconteceu. Quando volta a seu laboratório, vê que todo o material fotográ ico do parque desapareceu, inclusive os negativos. Volta ao parque com a câmera para tentar obter um novo registro do crime e comprova que o cadáver também desapareceu, embora tenha restado uma marca meio difusa dele.

O inal do ilme trata explicitamente, em imagem pura, sem absolutamente nenhuma palavra, do problema da percepção da realidade

e das dúvidas impostas pelo di ícil limite entre o real e o imaginário: um grupo de mímicos de rua, artistas populares que já haviam aparecido nas primeiras imagens do ilme, jogam diante dele – em uma quadra de tênis do mesmo parque onde tudo aconteceu – uma partida imaginária de tênis, sem raquetes nem bola, mas fazendo com absoluta correção toda a mímica adequada a uma partida de tênis normal. No momento em que a bola imaginária passa por cima da cerca da quadra de tênis e um dos mímicos pede ao fotógrafo que a pegue, ele tem de se decidir, deve fazer uma opção. Não pode postergá-la: ou interrompe bruscamente toda a brincadeira, dizendo que não há ali nenhuma bola, negando-se portanto a recolhê-la, ou caminha para a bola imaginária, a pega e a lança na direção dos jogadores, para que possam continuar jogando. É o que o jovem faz. Minutos antes, um dos mímicos, ao pegar a bola perto do alambrado, havia feito um gesto ao fotógrafo, encolhendo os ombros, como se indicasse que não era possível fazer outra coisa.

A postura e as características do personagem durante a primeira parte do ilme (até a revelação das fotos e a descoberta do crime) ilustram de forma muito adequada a atitude cética (e frívola) diante do mundo. Trata- se de um jovem despreocupado e meio irresponsável – embora extremamente competente em sua pro issão – que conhece bem seu próprio sucesso pro issional e social (sabe, por exemplo, que todas as mulheres fariam qualquer coisa para ser fotografadas por ele) e que se aproveita disso de forma francamente cínica. O jovem fotógrafo mantém uma postura semelhante àquela que Descartes caracteriza como contrária à atitude ilosó ica: trata-se de abandonar esta postura distanciada e frívola, tipicamente cética, procurando encontrar uma base que permita

acreditar em alguma coisa.

Contudo, Descartes apresenta o cético como “irresoluto”, algo que não se aplica ao personagem do ilme de Antonioni. Ao contrário, parece característico da atitude do jovem diante da vida uma irme certeza sobre tudo o que faz e decide, sobretudo por causa da segurança que lhe dá o

poder econômico e social de que dispõe. Na verdade, o problema da dúvida e

do ceticismo não é formulado, ele não tem consciência dele, não sabe, como Descartes, que existem a respeito da realidade “opiniões muito diferentes” e questões sobre as quais as pessoas não conseguem “entrar em acordo”. Na verdade, o fotógrafo não tem nenhuma consciência desta disparidade, da “problematicidade do real”. O real é para ele algo dado, razoavelmente

irme e con iável, antes de qualquer tipo de questionamento. Somente a partir da experiência no parque, o jovem começará a levar a sério sua

própria vida e sua pro issão, questionando-se acerca do limite entre o real e o imaginário, entre o verdadeiro e o falso, questões das quais nem sequer tinha consciência clara antes. Pode-se dizer que, ao longo do ilme, e por causa de uma experiência marcante, o personagem começa a cultivar um espírito “ ilosó ico” diante da realidade, em oposição à atitude pragmática e um tanto irresponsável manifestada nas primeiras imagens do filme.

Mas parece haver uma separação radical entre Descartes e Antonioni diante do problema da dúvida, na solução inal do con lito entre real e imaginário, verdadeiro e falso: enquanto Descartes, diante da dúvida, opta pela realidade descoberta através de uma argumentação, deixando o mundo dos sonhos de lado, o personagem de Blow Up faz uma clara opção pela indeterminação da verdade, deixando de lado as supostas evidências objetivas (como a fotogra ia, que antes tivera a pretensão de documentar uma realidade que, no inal, se tornou mais fugidia do que se havia suposto); na verdade, o ocorrido faz com que o fotógrafo questione pela primeira vez a con iabilidade da imagem fotográ ica, com sua imensa pretensão de objetividade.

O filme mostra – ao contrário da demonstração cartesiana – uma derrota da objetividade para um perspectivismo múltiplo e sempre inseguro, como se a opção pela insegurança e pela falta de base do que é observado fosse a mais correta para um ser inito como o homem. Esta disparidade de opções – do ilósofo e do cineasta – parece típica, no sentido de o cineasta ter uma tendência a fazer uma opção pela indeterminação insolúvel entre verdade e ilusão, e o ilósofo tende a optar por algum princípio irme e racional de realidade objetiva, que afaste de initivamente o perigo de confundir a realidade com o sonho.

O ilme mostra que, como a irma Descartes, os sentidos às vezes nos enganam. Mas não há em Blow Up uma saída racional, baseada no sujeito (cogito) para superar o estado de dúvida provocado pela ambiguidade dos fatos. O fotógrafo não encontra em si aquele âmbito salvo de toda dúvida, que lhe permitiria apoiar-se em alguma coisa irme e talvez recusar-se, no inal do ilme, a pegar para o mímico sua bola imaginária, fazendo-o ver que a bola não existe, que não está ali. Na verdade, a experiência do parque deixou-o em um estado de dúvida insuperável no qual ele não sabe mais o que signi ica que algo “esteja ali”, de uma forma indubitável e segura. Talvez essa bola de tênis “que não está ali” tenha, inalmente, algum tipo de consistência, assim como o crime que ele em algum momento acreditou ter registrado e que depois não consegue documentar outra vez.

Mas ele está desmoralizado e não tem forças su icientes para se opor à fantasia instauradora dos mímicos e à indiferença para com a realidade demonstrada por todos os amigos dele. O fotógrafo aceita sua impotência diante da problematicidade do real e se submete a participar do jogo do imaginário. (Este tema será desenvolvido no ilme seguinte de Antonioni,

Zabriskie Point, 1970.)

Certamente o ilme de Antonioni formula com toda sua força um problema cartesiano, mas não lhe dá uma solução cartesiana. Descartes diz que, às vezes, os sonhos apresentam como evidência algo que na verdade é ilusório. Este distanciamento seguro entre realidade e sonho é o que Blow

Up problematiza, é precisamente esse o âmbito que o personagem não

consegue descobrir. Neste sentido, o ilme termina ceticamente, mas, não obstante, trata-se agora de um ceticismo filosófico, responsável e inundado de perplexidade, diferente do ceticismo inicial, inconsciente de si mesmo, pragmático, frívolo e irresponsável. Isto parece sugerir que existem posturas intermediárias entre o ceticismo radical e a solução racional- consciencialista proposta por Descartes.

Na realidade, se pensarmos bem, a certeza de seu próprio sujeito – como a demonstrada por Descartes em seu texto – não solucionaria o problema do fotógrafo. Descartes pensava que essa primeira certeza poderia servir de base, através de um encadeamento de proposições, para outras certezas, agora referentes ao mundo exterior e não ao próprio sujeito. Mas esta primeira certeza, a do próprio sujeito que duvida, sugere que tudo o que se pode saber de agora em diante terá uma referência necessária ao próprio sujeito. Mas aqui é formulada a questão primordial: toda e qualquer dimensão de meu sujeito se refere exclusivamente a mim

mesmo ou existe uma dimensão universal dentro do “meu” sujeito, algo que

possa me dizer, através do sujeito, alguma coisa de universal a respeito do mundo?

Seguindo esta linha de pensamento, o fotógrafo de Blow Up poderia ter dito a si mesmo: “O que eu experimentei não foi uma experiência só minha. Qualquer outra pessoa poderia ter vivido exatamente o que eu vivi. A câmera fotográ ica não é um instrumento que tira as fotos que eu quero tirar, qualquer outra pessoa poderia tê-la utilizado e, dos mesmos ângulos, teria obtido as mesmas fotos que eu obtive, teria descoberto o mesmo crime que eu descobri. Assim, as fotos que depois desaparecem do estúdio não eram somente minhas fotos, mas as fotos de qualquer um. Portanto, mesmo quando desaparecem enquanto coisas ísicas, permanecem como uma visão universal das coisas, que posso sempre defender com

convicção.”

Devem ter acontecido outras coisas, empiricamente, que alteraram o estado de coisas inicial: alguém entrou no estúdio e roubou as fotos, algo muito plausível a partir da atitude da jovem fotografada, que já no parque quis ansiosamente comprar as fotos comprometedoras e não conseguiu; alguém foi até o parque e retirou o cadáver etc. Em um momento do ilme, o jovem percebe que certas pessoas desconhecidas o estão espionando enquanto almoça com seu editor num restaurante. Mas nenhuma destas manipulações alterou o fato objetivo e documentado de que ali, naquele parque, ocorreu exatamente o que aconteceu, o que qualquer outro poderia ter visto como ele viu etc. Portanto, o jovem teria su icientes evidências cartesianas para dizer ao mímico que não, não está disposto a entrar em seu jogo misti icador, no qual a irrealidade e a icção destituem

inalmente a realidade objetiva, e não vai ingir que há uma bola de tênis onde não há. É assim que raciocinaria o filósofo.

É assim que raciocina Descartes ao apresentar seu argumento de que a con iabilidade no real repousa, em última análise, na crença em uma natureza “benfeita”, saudável e capaz de objetividade (ou seja, feita por Deus e não pelo gênio maligno). Se o fotógrafo do ilme não aceita este tipo de solução, pelo menos poderia colocar a fotogra ia no lugar da natureza feita por Deus, no sentido de ser um recurso benfeito e em cujos resultados é sempre possível con iar, apesar das di iculdades empíricas (roubo dos negativos, desaparecimento do cadáver, indiferença das pessoas). O cineasta, ao contrário do ilósofo, em vez de se esforçar para superar o estado inicial de perplexidade, parece preferir icar nele, reiterando o assombro diante do acontecido. A perplexidade inextinguível parece mais uma opção do que algo derivado de uma coisa constatável.

Em última análise, Blow Up é uma espécie de triunfo do gênio maligno, o ceticismo radical a respeito da existência de Deus e do “esmero” de nossa natureza (de nosso olho, da câmera fotográ ica e do cinema). A persistência do ceticismo, através das tentativas racionalistas, pode ser considerada uma solução filosófica para o problema do conhecimento. Blow

Up nos faz viver um estado de incerteza, nos golpeia o rosto com a dúvida.

A “solução” é imagética, aberta, irredutivelmente duvidosa. Ela é formulada de modo universal, é uma tese a respeito da initude, o contrário da solução cartesiana. O mundo é, em geral, duvidoso e este caráter não pode, em geral, ser superado. Trata-se de uma tese ilosó ica mostrada, dramatizada, transformada em uma experiência universal.

filosófica diante da realidade, porque mesmo quando a perplexidade

(mostrada no inal de Blow Up) constitui parte fundamental da atitude ilosó ica, também faz parte dela o contínuo esforço para superá-la? Isso indicaria uma incompatibilidade fundamental entre essas duas formas de aproximação do real, a iloso ia e o cinema: será então que o cinema pode proporcionar somente “ilustrações” de problemas, mas não esquemas de soluções estritamente filosóficas deles?

Mas poderíamos dizer que a manutenção da perplexidade, a recusa a uma solução última e de initiva do problema da realidade – atitude que parece característica do cinema – é, precisamente, a solução ilosó ica proporcionada pelo cinema ao problema do conhecimento da realidade, uma solução fortemente antissubstancialista (ver o próximo Exercício, sobre os

empiristas britânicos).

No clássico anticartesiano (como veremos) Janela indiscreta de Alfred Hitchcock, há também um fotógrafo (outro pro issional do Olho!), Jeffries (James Stewart), obrigado, por uma perna quebrada, a permanecer o dia todo diante de uma janela, espiando os vizinhos. De certa forma, Jeffries foi colocado à força em uma atitude ilosó ica ideal, em uma atitude de ócio e despreocupação com afazeres práticos ou ligados à sobrevivência, o que lhe permite simplesmente contemplar e re letir, exatamente na atitude descrita por Platão e Aristóteles como a atitude típica do ilósofo. Talvez, se não fosse por essa pessoa colocada nessa atitude completamente artificial da re lexão ilosó ica (como diria Husserl), o crime de Torwald (Raymond Burr), o vizinho cujo comportamento anormal o fotógrafo percebe, teria passado totalmente despercebido, em meio aos comportamentos rotineiros e completamente automatizados (“não ilosó icos”) das pessoas, quando desempenham suas tarefas sociais habituais e predefinidas.

Jeffries acredita ter descoberto um assassinato, mas trata-se de uma conjectura formada por uma série de pistas completamente difusas e insuficientes para se concluir algo firme, como mostra seu amigo, o detetive Tom Doyle (Wendell Corey), que representa no ilme a atitude cética típica do racionalista (uma igura comum, por outro lado, nos ilmes de Hitchcock, nos quais grande parte do suspense é motivado pelo fato de que a verdade que a lige o protagonista – e que o põe em risco de vida – é demasiadamente implausível do ponto de vista racional (cartesiano), e ele não consegue aliados ou amigos que o ajudem em sua situação desesperadora (algo que, como vimos, também ocorria ao protagonista de

É curioso que Jeffries, ao contrário do exposto por Descartes, está absolutamente certo de sua descoberta, inclusive quando as evidências passam longe de ser conclusivas. Não debate a dúvida, ao contrário, desespera-se ao ver que nem seu amigo nem – a princípio – sua noiva (Grace Kelly) nem sua enfermeira (Thelma Ritter) acreditam nele ou nas provas que ele vê como completamente convincentes. Essa segurança não é abalada pelo caráter fatalmente fragmentado de suas informações (fragmentação simbolizada já pela janela, protagonista absoluta do ilme, e que nunca é fotografada de fora antes do inal) nem pelo caráter conjectural de tudo o que “sabe” ou “descobre”, devido a sua posição imóvel e inalterável, o que o obriga a solucionar todo o suposto mistério sem sair do lugar, procurando nas outras pessoas e nas lentes de suas máquinas fotográ icas prolongamentos de seu próprio corpo que não pode se locomover.

Mesmo que a fragmentação pareça ser resultado da situação absolutamente particular do personagem, essa insu iciência da percepção pode ser considerada parte de nossa situação perceptiva “normal”, cheia de dúvidas e incertezas. Ao contrário de Blow Up, o naturalismo de Hitchcock faz com que inalmente a percepção problemática se resolva de forma objetiva (e, neste sentido, Janela indiscreta é um ilme mais cartesiano do que Blow Up, tanto em sua formulação como em sua solução inal) na medida em que tanto o protagonista como o espectador acabavam sabendo “a verdade”. O que verdadeiramente ocorreu no apartamento de Torwald pode ser constatado como real e Jeffries pode veri icar empiricamente suas a irmações puramente especulativas a princípio. A dúvida é completamente resolvida, no momento em que Jeffries, no inal do

ilme, depois de ser salvo da morte nas mãos do assassino, pergunta ao detetive cético, do chão e ainda respirando de forma agitada, se agora tudo o que aconteceu será su iciente para pedir um mandado contra Torwald, ao que o outro é obrigado a responder a irmativamente, desculpando-se por seu ceticismo anterior, agora completamente refutado.

Isto é tudo de que um cartesiano precisa, a reti icação da experiência imperfeita através do trabalho conjunto da razão e das observações,

No documento O Cinema Pensa, Julio Cabrera (páginas 116-135)