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CAPÍTULO 2: INDEPENDÊNCIA TUDO O QUE PODERIA TER SIDO

2.1 As armas e o povo

O documentário português é um longa-metragem realizado por uma equipe de cineastas e produzido pelo Coletivo de Trabalhadores da Atividade Cinematográfica, uma instituição que mais tarde se transforma no sindicato.

Um dos realizadores é Glauber Rocha, que aparece emprestando sua própria imagem ao filme e exercendo o papel de um entrevistador do povo. Ele se coloca junto à multidão das ruas

28 […] once at the forefront of discovery and lucrative trade, the first to establish a major presence on African soil,

now one of the poorest countries in Western Europe, ruled by a dictator.

29 The military success of the guerrilha movements in the other two colonies were decisive in bringing

Independence to all of Portuguese Africa.

30 Havia outros movimentos organizados além destes; os que foram destacados são aqueles que assumiram os

no intenso calor dos protestos e procura, desesperadamente, fazer o povo falar. Ele faz perguntas a um e a outro, mal espera para ouvir as respostas e logo continua a interrogar as pessoas, de forma abrupta e afoita: “O que você acha do futuro desta revolução?”; “Você foi surpreendido pela revolução?”; “Você quer que a guerra continue ou quer que a guerra acabe?”. Ele procura ouvir algo sobre a situação dos trabalhadores, dos soldados, dos estudantes e também das mulheres.

Estes momentos iniciais são os de maior euforia e otimismo. O filme, que acompanha os primeiros dias da Revolução dos Cravos, se inicia com este êxtase das ruas do dia 25 de abril e termina com as proclamações de 1o de Maio. No decorrer destes seis dias, podemos acompanhar o decrescimento das expectativas. A alegria inicial vai cedendo lugar ao desencantamento, a voz das ruas se mostra insuficiente e, então, o cenário é substituído pelos novos palanques políticos, cujos representantes nem sempre correspondem aos gritos revolucionários. Será que o futuro da revolução (aqui e ali) será uma mera repetição, embora mais branda, dos mesmos modelos autoritários de sempre?

Neste sentido, o filme é bastante consciente das contradições do escrupuloso momento da transferência de poder. Apesar de ser um documentário com a função explícita de registrar as imagens daqueles importantes dias31, há explicações e intervenções constantes, que operam como uma verdadeira voz didática. Especialmente, esta intenção se concentra em elucidar para o povo português que a queda de Salazar era apenas o início de uma luta, cujo longo caminho já estava sendo percorrido pelos africanos há mais de uma década. Embora o mote da mobilização em Lisboa seja o fim das guerras coloniais, o filme procura levantar a bandeira da liberdade: “Não é livre um povo que oprime outros povos”. É evidente que também se pretende direcionar as emoções do momento para as reflexões sobre o sistema capitalista, conforme observamos no seguinte trecho do filme:

O fascismo corporativista não era apenas um regime a serviço de uma meia dúzia de tubarões. Era sobretudo uma máquina repressiva, jurídica, econômica e ideológica montada a serviço das classes exploradoras. Era o patronato organizado.

Os exemplos demonstram os esforços empreendidos para dar força e crédito às massas populares e à possibilidade de orientar as nações por uma visão socialista. A organização dos

31 Entre as imagens do povo nas ruas, há uma breve passagem em que podemos ver um cartaz do filme “O

Encouraçado Potemkin”, de Serguei Eisenstein, lançado em 1925. Este filme emblemático e fundamental para a formação de muitos cineastas esteve proibido pela censura fascista portuguesa até 1974.

trabalhadores e o reconhecimento da opressão são colocados como forças decisivas para o impedimento da exploração capitalista.

Enfim, apesar da consciência das dificuldades em dar continuidade à luta, podemos perceber que o tom predominante em “As armas e o povo” é otimista:

A grande maioria deste povo (...) olha o futuro e quer construir com suas próprias mãos uma sociedade onde seja banida a exploração do homem pelo homem (...) o 25 de abril abriu perspectivas, criou novas condições para a luta dos trabalhadores portugueses (...) um povo que finalmente conhece plenamente a sua força, um povo que sabe que quer viver digna e livremente, um povo que jamais poderá a partir de agora acreditar em salvadores da pátria. Um povo que sabe que para ser livre é preciso não ter fome, não ser explorado, é preciso não ser oprimido, é preciso não ser humilhado pelas más condições de vida e pela ignorância (grifo nosso).

É evidente a semelhança deste discurso com a fala de Samora Machel, repetida inúmeras vezes ao longo das décadas de 1970 e 1980; todos apresentam um tom de alerta, que busca mobilizar, educar e informar. Tentaremos mostrar neste capítulo a semelhança dos discursos revolucionários de diversos países do mundo, além de destacar como Moçambique, Angola e Guiné-Bissau, em seus projetos de formação de um Estado-nação orientado pelo socialismo, foram pontos de encontro de cineastas estrangeiros engajados com a Revolução.

Isto explica como indivíduos de tantos países se encontravam e compartilhavam os mesmos ideais: a União Soviética oferecia oportunidades e bolsas de estudo para muitos cineastas envolvidos com o cinema africano. São exemplos: Ousmane Sembène, Soleymane Cissé, Abderrahmane Sissako e Sarah Maldoror. Cuba também recebeu africanos que foram estudar cinema no ICAIC: Flora Gomes, Sana Na N’Hada, Josefina Lopes Crato, José Bolama Cobuma, João Ribeiro e Orlando Mesquita. Flora Gomes conta que, neste período em Cuba, os estudantes tiveram contato com o cinema de Santiago Álvarez e Glauber Rocha. A Iugoslávia também cooperou diretamente com Moçambique, numa produção (O tempo dos leopardos) que será detalhada mais adiante. Enfim, todas estas pessoas traziam consigo experiências próprias das localidades de onde vinham e contribuíam coletivamente com uma visão de modernidade que extrapolava as barreiras internacionais.

Em 1973, foi realizado em Argel um encontro para “[...] estabelecer a estrutura de uma organização para cineastas do Terceiro Mundo” (KRISTENSEN, 2012, p. 42), do qual participaram Flora Gomes, Sarah Maldoror, Sana Na N’Hada e Ousmane Sembène. Deste sentido de organização, destaca-se a criação do Instituto Nacional de Cinema (INC) de Moçambique. Em Angola e na Guiné-Bissau, também foram fundadas instituições de cinema

após as independências, mas Moçambique foi o país que foi mais longe na concretização deste projeto de nascimento de um cinema nacional, conforme aponta Ros Gray:

Entre todos os Estados-nação que podem ter aspirado a esta visão do que o cinema poderia ser, em nenhum outro lugar ela foi mais completamente realizada do que em Moçambique. (...) Este momento [da criação do INC] foi uma instância de um porvir revolucionário no qual o cinema foi privilegiado como o meio para dar forma visual e sônica a um novo eleitorado político. Dessa forma, ele refletia as revoluções socialistas anteriores do início do século XX, na Rússia, China, Cuba e outros lugares, onde o cinema foi reconhecido como um agente de revolução por sua capacidade de mobilizar, educar e informar em situações de grande subdesenvolvimento e analfabetismo (KRISTENSEN, 2012, p. 43).

O documentário a seguir, que foi lançado em 2003, explica como, no caso de Moçambique, o cinema nasceu como parte de um projeto de nação.