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CAPÍTULO 2: INDEPENDÊNCIA TUDO O QUE PODERIA TER SIDO

2.7 O vento sopra do norte

José Cardoso foi um dos primeiros a se encaminhar pela vereda do cinema moçambicano de ficção. Nascido em Portugal, em 1930, foi morar em Moçambique quando ainda era criança. Quando o INC foi fundado, José Cardoso era o mais velho da turma e já tinha uma larga experiência como cineasta amador. Era um autodidata, que aprendeu a fazer cinema por paixão ainda na época colonial, tendo passado pessoalmente pela repressão da polícia política portuguesa. José Cardoso realizou filmes relevantes, como o documentário de longa- metragem “Canta meu irmão, ajuda-me a cantar” (1982), que mostra o papel exercido pela música na formação dos elementos novos da identidade nacional e no processo de desprender a cultura do jugo colonial, e também o curta-metragem de ficção “Frutos da nossa colheita” (1984).

“O Vento Sopra do Norte” (1987) retrata os últimos momentos da ocupação colonial e o desenvolvimento da luta independência, desenvolvendo-se sobre a resistência ao sistema colonial na perspectiva dos jovens nacionalistas que viviam numa cidade colonizada. A narrativa se desenrola na cidade de Lourenço Marques e capta o clima de medo que penetrava em todos os aspectos da vida colonial cotidiana, desde as crianças com brincadeiras de armas, os fragmentos de conversas entre colonos [numa delas, uma mulher branca menciona com pavor a Revolta dos Mau], a relação silenciosa entre empregados negros e patrões brancos e o encontro tenso entre diversos tipos sociais numa cafeteria. Segundo Ros Gray:

Memórias individuais de diferentes gerações são encerradas na narrativa, de forma que também passam a significar memórias coletivas, para fazer uma acusação contra a sociedade colonial e significar o desejo que está escondido nelas por uma mudança radical (KRISTENSEN, 2012, p. 62).

O filme destaca uma série de violências e injustiças típicas do sistema colonial e aponta para a movimentação em sentido à luta armada, que ocorreu em todas as camadas da população africana: a mãe zelosa, o pai consciente da necessidade de transformação política, a criança que espera por um futuro melhor, a jovem moça que estimula o sentimento revolucionário e os jovens rapazes que se tornarão guerrilheiros. O ponto culminante da revolta ocorre depois que um policial português bêbado tenta estuprar a jovem negra.

“O Vento Sopra do Norte” (1987) foi o último longa-metragem de ficção produzido pelo INC, feito em preto e branco para que pudesse ser revelado pelo laboratório do INC, sem depender de qualquer recurso estrangeiro. Segundo Ros Gray, “[...] quando o filme apareceu nos anos finais da Revolução, ele ofereceu um vislumbre de outra versão na qual um ‘cinema nacional’ moçambicano poderia ter abarcado em diferentes circunstâncias” (KRISTENSEN, 2012, p. 61).

A primeira década após a independência foi impulsionada pelo entusiasmo dos participantes deste projeto, que continuavam a desenvolvê-lo apesar das dificuldades, acreditando que Moçambique seria uma nação diferente, capaz de contagiar o mundo com o sonho socialista. Estes momentos são lembrados como anos heroicos, em que a criatividade e a dedicação venciam a precariedade das condições. Naquele tempo, havia uma crença profunda na capacidade de transformação do cinema, aliada com um desejo intenso de inverter a dominante ideológica colonialista/imperialista.

No entanto, os conflitos com a RENAMO apenas se intensificavam e produziam efeitos devastadores de uma guerra que parecia não ter fim. A violência foi se marcando no dia-a-dia

do povo e, em 1986, Moçambique foi considerado o país mais pobre do mundo. No auge desta guerra, o Kuxa Kanema só projetava nos arredores da capital, desviando-se de seu propósito inicial de ser um cinema para o povo. Os ânimos já eram outros; os discursos começaram a tender à bipolaridade, de forma que se posicionassem tão-somente a favor ou contra a guerra. Assim, os filmes se tornaram um instrumento de defesa e o discurso revolucionário acabou se tornando repetitivo, submetendo-se a uma lógica de propaganda. Apesar de ter sido uma ferramenta decisiva no processo de construção simbólica do novo Estado-nação, a utilização do cinema como instrumento de propaganda, educação e propagação de uma ideologia era, no final das contas, o mesmo recurso utilizado outrora pelo regime colonial. Aos poucos, o entusiasmo foi substituído pela descrença, e o cinema foi se desmoronando, juntamente com o sonho da independência.

Em 1986, Samora Machel morreu num suspeito acidente de avião. Depois de sua morte, sucumbiu também a República Popular de Moçambique, que, posteriormente, se tornou apenas República de Moçambique. Em 1989, a FRELIMO renunciou formalmente ao marxismo- leninismo, abrindo caminho para negociações que levaram a eleições multipartidárias no país e abraçando o mercado livre. A crise econômica causada pela guerra, junto com a retirada de apoio dos países do bloco soviético, fez com que, durante os anos 1980, os lucros do INC fossem cada vez mais apropriados pelo Estado para outros usos (KRISTENSEN, 2012, p. 62). Em 1991, entre a queda do Muro de Berlim e o colapso da União Soviética, o INC foi acometido por um grande incêndio, que destruiu grande parte do patrimônio levantado. Os filmes e as raras imagens arquivadas representam um importante testemunho deste período de plenitude dos esforços de continuar a luta e seguir uma revolução socialista. No entanto, os filmes são pouquíssimo acessíveis, e os registros que sobraram continuam arquivados entre as paredes incendiadas do INC, num cenário que parece esperar por novos ventos que soprem para recuperar sua vitalidade.

Enfim, restaram arquivos escassos, registros quase apagados, ruínas e lembranças dispersas. Mas as histórias e símbolos que se perpetuaram a partir daqueles momentos em que o projeto utópico chegou muito perto de se realizar não são esquecidos, embora sejam pouco falados. Há filmes atuais que partem destas memórias e da vontade de quebrar os silêncios e retomar os sentimentos que motivaram a revolução. O tema da luta de independência é constantemente evocado por cineastas e escritores e, atualmente, existe um esforço notável para recuperar os testemunhos das guerras que deixaram heranças do regime colonial, tanto para africanos quanto para portugueses, e traçar uma dimensão moderna de interpretação dos eventos

das independências. A violência deste longo processo que provocou a morte de milhares de pessoas, o trauma que ficou para todos que sobreviveram à guerra e as lembranças desta realidade estilhaçada deixaram marcas que dificilmente serão apagadas. É difícil falar sobre este assunto e lidar com as memórias individuais e coletivas das guerras, porém não é possível também apagar este passado de atrocidades.

Vejamos, então, como o cinema se debruçou sobre a Guiné-Bissau. O documentário a seguir, lançado em 2007, revisita o movimento nacionalista liderado por Amílcar Cabral e promove uma revisão moderna acerca dos fatos da guerra.

2.8 As duas faces da Guerra (Flora Gomes/Diana Andringa, Guiné-