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CAPÍTULO 3: O CINEMA, ARTE DA RESISTÊNCIA

3.61 Critérios

3.61.1 Mãos de Ferro

Embora o contexto de guerra seja um elemento constante nos filmes dos PALOP, há poucos momentos que mostram o confronto armado em si. Os campos de batalha, as emboscadas, os bombardeios e combates não aparecem com tanta frequência. As narrativas contam a guerra pelo lado humano, afetivo e familiar. Determinados filmes são exemplos que

mais se aproximam da guerra em plena ação. É interessante observar que os filmes deste conjunto possuem uma inclinação um pouco mais acentuada para os filmes comerciais.

O filme angolano Njinga, a Rainha de Angola apresenta as guerras entre os reinos antigos, colocando uma mulher como protagonista, no papel da forte guerreira que lidera seu povo que vem sendo atacado por povos rivais e também pelos portugueses. O filme tem um evidente apelo televisivo e histórico, mas é interessante na forma como configura as relações entre todos os grupos envolvidos nos conflitos, representando nuances internas, sem resumir a questão à simples oposição entre portugueses e angolanos e sem se render a explicações fáceis e maniqueístas. O filme Ilha dos escravos, uma produção luso-brasileira, discorre sobre as revoltas do século XIX, relacionadas com os conflitos no cenário político de Portugal, que se manifestaram na forma sangrenta em Cabo Verde. O filme também possui um apelo televisivo e histórico, sendo parecido com um retrato de época à primeira vista. Mas como estes filmes estão inseridos numa sequência marcada por histórias de resistência, não pelo histórico de seus realizadores, mas sim pelas características do contexto de produção, sabemos que ambos os filmes promovem uma crítica ao passado político.

Há dois filmes do realizador guineense Flora Gomes, que podem ser posicionados neste grupo, pois se aproximam das cenas de guerra ou guerrilha. Mortu Nega é um filme histórico, que apresenta a história da nação através da trajetória de Diminga, uma personagem decisiva para a força do filme. Desde as cenas iniciais, que acompanham os afazeres dos guerrilheiros, passando pela notícia da independência que chega aos ouvidos de Diminga, até o retorno à tabanca e a vida que prossegue, a personagem é a principal condutora dos acontecimentos do país e também uma representante da força do movimento de luta. Mortu Nega não é um filme de apelo televisivo, como os anteriores, mas é um filme de bastante sucesso junto ao público guineense. O outro filme a ser destacado é República di mininus, um filme com apelo hollywoodiano, que aponta para um tempo histórico, mesmo que os elementos concretos representados sejam inventados. As cenas iniciais dos bombardeios à casa presidencial e a guerra subsequente são situações fictícias, que apontam de forma muito indireta aos fatos históricos reais.

3.61.2 Ngungas – trajetórias de pequenos heróis

As histórias adjacentes às guerras (de independência e civis) mostram um amplo espectro de sua devastação. Os filmes deste conjunto mostram os percalços que a população civil enfrenta durante a guerra, com atenção especial às crianças. Os filmes Terra Sonâmbula,

Na cidade vazia e Comédia infantil se passam durante a guerra, embora não apresentem cenas

de guerra em si como foco central e todos estes filmes apresentam uma criança como protagonista. As crianças e os velhos, de um modo geral, são personagens constantes.

O filme Último vôo do flamingo pode ser incluído neste conjunto, apesar de não ter uma criança como protagonista, mas por ser uma narrativa que se desenvolve nas adjacências da guerra.

É quase uma regularidade que os filmes tratem, de alguma forma, com a morte. Conforme Paulo de Medeiros observa, “[…] um observador pode olhar para a espectralidade [de um filme] como sendo simplesmente algo relacionado a fantasmas e, de fato, muitos dos filmes se relacionam, se não diretamente a fantasmas, ao menos a vozes dos mortos [...]” (2011, p. 131, tradução nossa)73. O menino Ndala, do filme Na cidade vazia, tem um final trágico; Muidinga, do filme Terra Sonâmbula, não morre, mas vive entre os mortos; e Nelio, de

Comédia infantil, conhece de perto os treinamentos dos soldados.

3.61.3 As rosas e seus espinhos

Quando as guerras terminam oficialmente, há um momento em que se começa a fazer uma revisão crítica dos fatos. O sentido não é mais dignificar a luta de independência; inicia-se uma avaliação sobre os rumos tomados e o que realmente mudou, além de descortinar os excessos cometidos pelos novos governos.

Virgem Margarida é o exemplo mais evidente deste direcionamento. O contexto é o fim

das guerras coloniais e início de um novo governo empenhado em transformar a sociedade e formar “mulheres novas”. As personagens Rosa e Margarida – uma é prostituta e outra é uma jovem campesina virgem – são levadas ao mesmo campo de reeducação, onde passam por algumas transformações. Neste percurso, podemos observar os absurdos cometidos em função de um plano político. Virgem Margarida aborda um contexto específico e critica os

73 […] one could look at spectrally as having simply to do with ghosts and indeed, several of the films do relate, if

encaminhamentos pós-independência, mas isto não significa que a crítica no âmbito político seja o objetivo central do filme. A qualidade do filme se concentra na força narrativa.

O documentário Angola, saudades de quem te ama também se concentra nos desdobramentos dos novos governos pós-independência, fazendo uma revisão das guerras civis que aconteceram após a independência.

São filmes bastante diferentes, um de Angola e outro de Moçambique, mas se aproximam na medida em que abordam as direções tomadas logo após a independência de maneira crítica e direta.