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CAPÍTULO 3: O CINEMA, ARTE DA RESISTÊNCIA

3.3 Mortu nega

Mortu nega, em crioulo da Guiné-Bissau, significa “aquele que a morte recusou”. Nesta história, a morte e a vida são separadas por uma linha muito tênue. “Nós, africanos, sabemos que somos uma sociedade de vivos e mortos” – esta frase foi pronunciada por Amílcar Cabral. Conforme Flora Gomes repete em diversas entrevistas, a voz do líder guineense da luta de independência ecoa em toda sua obra.

O cenário inicial de Mortu Nega é o mato, num campo cortado por uma linha de guerrilheiros e civis, que marcham e levam em frente à luta de libertação. Todos caminham juntos, um após o outro, formando um movimento uniforme, harmônico e determinado. O caminho é um só e todos o percorrem objetivamente.

Dentre deste grupo, a câmera nos permite acompanhar mais de perto uma mulher, que não veste a farda da guerrilha; ela utiliza suas roupas habituais. Trata-se de Diminga, personagem interpretada pela brilhante atriz Bia Gomes, que participa de quase todos os filmes de Flora Gomes. Diminga é uma personagem tão expressiva e inspiradora, que extrapola os limites do filme e ganha vida fora das telas. Esta vivacidade foi capturada pelo filme “Ça Va, Ça Va, on continue”, de Mathieu Kleyebe Abonnec (2013), em que a atriz-personagem Bia Gomes é entrevistada e passa a encarnar a personagem Diminga novamente.

Diminga é uma mulher que tem forças sem fim. No início do filme, ela percorre as trilhas dos guerrilheiros para levar mantimentos de Conakri para a frente de combate onde luta seu marido, Sako. Ela leva-lhe pequenos confortos, como o tabaco, e mesmo em meio ao

bombardeio, onde há morte por todo lado, mantém um largo sorriso. Fernando Arenas compara Diminga, em seu pleno comprometimento e companheirismo com o marido, com a personagem Maria, de Sambizanga. Em ambos os filmes, há dois planos relacionais que se contrastam: a intimidade familiar afável e a esfera exterior truculenta (2011).

Sabemos que esta narrativa parte do ano de 1973, pois a base tem acesso a uma rádio que transmite a notícia da morte de Amílcar Cabral, com muito lamento. Mas a luta continua e progride com a certeza da vitória. O grupo passa por todos os tipos de dificuldades: atravessar rios, atolar os pés na lama funda, percorrer terrenos vastos, arriscar-se em campos minados e enfrentar ataques aéreos. Uma criança morre ao pisar sobre uma mina; um camarada morre após ser atingido em combate; e Sako é ferido na perna, levando consigo as sequelas deste acidente. Depois que a independência é conquistada, Diminga volta para sua casa na companhia de Lebeth, uma mulher mais-velha. A vitória é comemorada pelas crianças, que louvam a independência: “Viva! Viva!”. Diminga sorri, porém não se entusiasma para retornar para sua casa, que estará vazia, pois seus filhos morreram durante a guerra e seu marido optara por não retornar em sua companhia. Mesmo assim, Diminga é recebida com muita alegria pelas vizinhas e começa a reorganizar a vida no campo. Primeiro, ela encontra sua casa ocupada por outra família, numa cena belíssima em que ela acompanha com as mãos os novos desenhos das paredes que uma vez envolveram a sua família. Então, ela passa a dividir a casa com esta mãe e seus filhos, seguindo uma reconfiguração baseada na solidariedade. As mulheres se ajudam nas tarefas do dia-a-dia, como buscar água e cultivar os campos, o que fazem coletivamente e, muitas vezes, entoando canções. Até que chega um momento em que Sako retorna e reencontra- se com Diminga.

A vida deveria voltar ao normal. Porém, agora há muitas diferenças: os administradores do movimento se encarregam de distribuir suprimentos para a comunidade e nem sempre o fazem de maneira justa e igualitária; começam a transparecer episódios crescentes de corrupção; começa a funcionar uma escola nas redondezas; e Sako enfrenta dores profundas na perna. Nesta fase, fica evidente o abandono do governo pós-colonial, aquele pelo qual Sako combateu e se feriu. Quando ele precisa ir à capital para receber atendimento médico, se depara com um camarada disposto a lhe ajudar e outro que afirma não se lembrar dele, desprezando o passado compartilhado na luta.

Tudo se complica ainda mais em virtude de uma seca devastadora que quase impossibilita a prática da agricultura, atividade da qual a população depende para sobreviver. Todo o conjunto de percalços, mais um sonho premonitório de Diminga, levam as mulheres a

convocar um ritual sagrado. Nesta grande cerimônia, que reúne o povo de várias tabancas, elas reclamam aos espíritos por condições melhores e justificam a valência de seus pedidos. A respeito desta passagem, Fernando Arenas faz um comentário interessante:

Como indica Manthia Diawara, Gomes se apropria da noção de “cultura nacional” de Amílcar Cabral, transformando ritos tradicionais em práticas revolucionárias, resgatando a mulher das sombras (1992, p. 156). Nesse sentido, Diminga, junto das mulheres de Guiné-Bissau, e por meio do espírito de seus ancestrais, exige uma vida melhor em seu país (2011, tradução nossa)42.

Os céus parecem atender aos chamados e, enfim, envia sinais de chuva. O filme se encerra de forma otimista, com uma alegre celebração das crianças que aguardam a chegada da chuva.

Segundo Fernando Arenas, o filme pode ser dividido em três partes:

Por meio de sua estrutura tripartida, o filme se concentra nas circunstâncias da vida individual e coletiva durante este período de transição, no qual as certezas da luta anticolonial cedem lugar para as dúvidas e incertezas acerca de um projeto nacional e igualitário (2011, tradução nossa)43.

Todos os filmes deste cineasta estão profundamente associados às memórias do colonialismo, as lutas de independência e o projeto de construção da nação. Neste sentido, Flora Gomes se associa diretamente com cineastas como Ousmane Sembène e Djibril Diop Mambety. Fernando Arenas também destaca que o cineasta guineense revela afinidades com o cinema do terceiro mundo, especialmente ao apontar críticas aos processos sociais numa nação como a dele, que emerge na ultra-periferia do sistema mundial. Mas o desenrolar de Mortu Nega mostra que o projeto de Flora Gomes propõe críticas ainda mais profundas:

Ao mesmo tempo, o trabalho de Flora Gomes rejeita diversos princípios norteadores da ideologia cinematográfica do terceiro mundo que surgem ao final da década de 1960, observando ceticamente as metanarrativas que guiaram os processos de libertação nacional e a consequente criação de uma ideologia marxista e leninista. Neste caso, o olhar crítico do diretor concentra- se nas contradições e injustiças que surgem no período de independência,

42 As Manthia Diawara points out, Gomes appropriates Amílcar Cabral’s notion of “national culture”, transforming

traditional rituals into revolutionary praxis, bringing women out from the shadows” (1992, a, 156). In this way, Diminga, together with the women of Guinea-Bissau and through the spirit of the ancestors, demand a better life for their country.

43 Throughout its tripartite structure, the film focuses its attention on the circumstances of individual and collective

life during this time of transition, where the certainties of the anticolonial struggle give way to the doubts and uncertainties of an egalitarian national project.

ainda assim sem duvidar da validade da independência por si (2011, tradução nossa)44.

Mortu nega é o primeiro longa-metragem de ficção de Flora Gomes e foi produzido

inteiramente com fundos do Estado. Segundo Flora Gomes, “Quando eu falo de Mortu Nega, nunca digo “meu” filme, e sim “nosso” filme, pois foi realmente um projeto de toda a população de meu país” (UKADIKE, 2002, tradução nossa)45.

Este filme histórico percorre um trecho importante da nação a partir do percurso de Diminga. Através da condução dela, o povo é protagonista desta narrativa: “De maneira geral, a transição do período pós-guerra era o que eu queria mostrar – de uma maneira tão simples quanto a visão de uma criança” (UKADIKE, 2002, tradução nossa)46.