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CAPÍTULO 3: O CINEMA, ARTE DA RESISTÊNCIA

3.6 Na Cidade Vazia

Este filme se passa na cidade de Luanda, “[...] no período em que as guerras se concentravam nas áreas rurais” (SILVA, 2012, p. 26). Ao longo dos anos de guerra, os moradores das cidades eram parcialmente poupados dos conflitos em si, porém se deparavam com duras consequências “[...] quando centenas de milhares de vítimas da guerra surgiram do campo para buscar refúgio do trauma que havia engolfado todos os povoados de Angola” (SILVA, 2012, p. 30).

O menino Ndala é um órfão, cujos pais morreram na guerra, e que foi levado da província do Bié para Luanda, aos cuidados dos missionários católicos. Assim que aterrissa o avião que transportava um grupo de crianças refugiadas, Ndala aproveita a primeira oportunidade para fugir, para o desespero da freira responsável pelo grupo, que inicia uma busca incessante pelo menino. Ele não quer estar entre as freiras, quer apenas voltar para sua casa [que certamente não existe mais]. Com seus poucos pertences e um brinquedo de lata que ele mesmo montou, o pequeno órfão percorre as ruas desta cidade correndo todo tipo de perigo, sobretudo o de ser capturado por alguma tropa ou gangue.

Já nesta curta sequência inicial, o filme explora vários problemas que os angolanos encontraram durante e após a guerra: primeiro, o enorme deslocamento de moradores rurais para a capital; segundo, famílias destruídas e dilaceradas por causa da guerra, indicado pelo fato de não haver, na aeronave, crianças acompanhadas por parentes adultos. A sequência também mostra a ajuda humanitária para os povos que sofrem por causa das guerras, representada pela freira que acompanha as crianças. Além disso, o uso de um avião nessa abertura é significativo, pois indica as limitações de acesso às regiões do interior uma vez que estradas, ferrovias e pontes haviam sido destruídas pelas guerrilhas da UNITA nos anos 1980; tal destruição, portanto, contribuiu muito para o sofrimento das pessoas no campo, especialmente pela fome, visto o abastecimento de alimentos se dar por estas vias de transporte (SILVA, 2012, p. 27).

Então, ele começa a conhecer alguns personagens: o pescador, que vive acampado na praia da Ilha de Luanda, que segundo Ndala é o local que mais parece com o Bié; Zé, um menino de 14 anos que acaba se tornando seu amigo; e Joka, um rapaz forte, admirado por Ndala. Ele passa a morar na casa da prostituta Rosita, que o acolhe e, ao mesmo tempo, lhe impõe trabalhos.

Zé faz parte do grupo de teatro da escola, que ensaia para representar “As aventuras de Ngunga”. Nesta célebre narrativa do escritor angolano Pepetela, Ngunca é um órfão da guerra colonial e se torna um herói depois de matar um chefe da PIDE. Conforme Fernando Arenas lembra, este romance serviu como exemplo para formação de quadros humanos do MPLA. A correspondência entre Nguna e Ndala foi logo reconhecida por Zé, que estudava a história para realizar a peça:

Enquanto Ndala partilha os mesmos traços iniciais de Ngunga, representa um arquétipo de um jovem refugiado que pode ou não suportar a batalha de sobrevier a uma guerra que destruiu a utopia pela qual Ngunga e seus

contemporâneos valentemente lutaram por (ARENAS, 2011, tradução nossa)48.

Porém, Ndala sempre recusa a identificação com um herói de guerra. Enquanto a narrativa de Pepetela se encaminha para a utopia, a história de Ndala tem um desfecho trágico, que mostra o lado real do destino das crianças que vivem neste contexto, conforme Fernando Arenas aponta:

Ambas histórias representam as dimensões socioculturais e humanas que constituem o difícil contexto angolano pós-colonização: a utopia de um Estado-Nação africano unificado, igualitário e independente e a distopia da guerra civil causada pelo assombroso complexo de fatores internos e externos que quase culminaram com a implosão de um projeto nacional para Angola (ARENAS, 2011, tradução nossa)49.

No fim, apesar de todos os esforços, as tentativas de salvar a vida de Ndala não se sucedem. Ndala sobreviveu à guerra, mas não sobreviveu à cidade.

No artigo Aos cacos: imagens da nação angolana em As aventuras de Ngunga e Na

cidade vazia, livro e filme, de Fabiana Carelli, a autora considera que tanto o filme Na cidade

Vazia, quanto o filme As aventuras de Ngunga, são “[...] alegorizações de um conceito construído de ‘nação angolana’” (MARQUEZINI, 2009, p. 186, itálico da autora), pensando o termo conforme a proposta de “alegorias do subdesenvolvimento”, de Ismail Xavier.

De modo muito sucinto, é possível dizer que, diferentemente de Ngunga, a perambulação de Ndala pela cidade de Luanda numa Angola em plena guerra civil não o auxilia a construir, mas sim acaba por destruir os valores por assim dizer “essenciais” dessa criança e, por fim, acabam por destruí-la a ela mesma (MARQUEZINI, 2009, p. 186, itálico da autora).

A trajetória de Ndala não aponta para o progresso, como a de Ngunga. Ndala perambula pela cidade, sem acolhimento e só pensa em voltar para o Bié.

E Ngunga, nesse contexto, enquanto modelo ou exemplo de ‘angolanidade’, sobrevive apenas como um papel dramático num teatro de escola – enquanto fingimento, puro discurso, distanciado da realidade. (...) Ndala, o Ngunga

48 While Ndala shares Ngunga’s primary traits, he represents an archetypal Young refugee victim who may or may

not endure the battle to survive a war that destroyed the utopia for wich ngunga and his contemporaries so valiantly fought.

49 Both stories represent the sociohistorical as well as human dimensions that are constitutive of Angola’s

postcolonial predicament: the utopia of a unified, egalitarian, and independent African nation-state and the dystopia of civil war caused by a staggering complex of internal and external factors that led to the near implosion of the national project of Angola.

“concreto” da história, vai-se constituindo, por meio da intertextualidade, enquanto uma identidade aos cacos, dissolvida no vazio da violência, da morte e da utopia enquanto mera representação (MARQUEZINI, 2009, p. 192).