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No nosso segundo tópico deste capítulo, trabalhamos um pouco a respeito do objeto epistemológico da arqueologia e da corrente teórica com a qual desenvolvi a minha monografia de conclusão de curso de bacharelado em Arqueologia pela FURG. Pelo fato de já trazer a arqueologia pós-processual e suas respectivas críticas realizadas ao cientificismo exacerbado da arqueologia processual, preferi partir de suas análises para melhor esclarecer a crítica deste texto, também a esta, e nos voltarmos a uma arqueologia “pós-colonial” – no sentido da tomada de consciência de uma colonialidade de saberes e da reivindicação do local de fala e de virada ontológica, nas quais pretendo desenvolver meus estudos.

A arqueologia se origina de uma tentativa humana de conhecer suas origens e entender como viveram os povos “primitivos”, nossos supostos “ancestrais”. Colecionavam-se objetos, espécimes, materialidades, considerados “exóticos” de localidades distintas, preferencialmente, longínquas, e de populações consideradas selvagens e primitivas. Os chamados “gabinetes de curiosidade” foram, assim, se expandindo e, seus estudos – através de inventários e seriações, foram tornando a “curiosidade” em um estudo cada vez mais sistemático. (TRIGGER, 1984).

Para “alimentar” tais gabinetes, nobres e burgueses em ascensão, financiavam expedições aos locais em que se acreditava que as materialidades poderiam responder à dúvida filosófica que permeia o nosso ser: de onde viemos? Quem realmente somos? Entretanto, esses

questionamentos de ordem existencial passaram a legitimar o saqueamento e exploração dos locais que poderiam conter o “elo perdido” da existência humana. Além disso, passa-se a defender que a diferença entre os povos “primitivos” e as civilizações europeias eram graus evolutivos e lineares: a civilização era o ápice da evolução e, portanto, tinha direito ao conhecimento, ainda que fosse necessário explorar, saquear, violentar etc. A origem comum, que tanto se tentava encontrar, também legitimou a criação dos Estados-Nação, emergentes até então. Verificamos, dessa maneira, que a arqueologia já surge com um princípio colonizador, nacionalista e imperialista (TRIGGER, 1984).

Pelo próprio texto e pela crítica à ciência moderna que levantei, o (a) leitor (a) compreende algumas das abordagens que foram e permanecem sendo realizadas no fazer arqueológico, quando este surge como disciplina “científica”29 e as razões pelas quais me utilizarei da virada ontológica, da arqueologia do presente e da autoetnografia em meu estudo. Conseguimos observar isso mais evidentemente em arqueologias “cientificistas”, como é o caso do processualismo. Mas a perspectiva pós-processual, mesmo que considere o simbólico nas relações humanas, esquece que, para distintas apreensões de mundo, em diferentes culturas, o humanismo (enquanto ontologia) não é uma realidade inerente em suas relações e percepções:

La arqueología simétrica, sí embargo, va más allá de las teorías de la materialidad al uso y propone una nueva forma de mediar (traducir) estas relaciones entre personas y cosas y una práctica más reflexiva de la disciplina -pero no una reflexión de un tipo posestructuralista, dónde se ensalza al sujeto individual pensante, sino más bien una etnografía de la práctica arqueológica. (EDGEWORTH, 2005 apud GONZÁLEZ- RUÍBAL, 2007, p. 284).

Entretanto, necessito fazer um parêntesis. Algo que é muito criticado, dentro da arqueologia, sobre a corrente pós-processual, é a falta de inovação do “Método”. Diz-se que, ao utilizar o mesmo método que correntes anteriores, o pós-processualismo estaria, de alguma forma, invalidando uma “superação” de correntes prévias e o nome adotado “pós” está, portanto, equivocado.

Penso completamente diferente. Primeiramente, observamos a necessidade, especialmente oriundas de arqueólogos de outras correntes teóricas, de uma suposta “evolução” linear; de um modelo kantiano e de uma necessidade de “superação” através da “eliminação” do antecessor e da aniquilação de formas prévias do saber, de preferência. Isso já me diz muito mais sobre quem critica do que sobre o que é criticado.

29 Trigger (2004) aponta que os primórdios de uma arqueologia científica estão relacionados ao uso do histórico- culturalismo, ou seja, com objetividade, método e sistematização de dados.

De maneira alguma traçarei qualquer crítica a respeito da corrente pós-processual utilizando uma perspectiva colonizadora e cientificista assim. Pelo contrário: o que talvez arqueólogos não se deem conta – e nisso, pelas minhas experiências, incluo também os autores que se denominam pós-processualistas – é que uma crítica “pós” (seja ela pós-moderna, pós- colonial e, até mesmo, pós-processual) não pressupõe eliminar o mérito de nenhum pesquisador ou corrente antecessora, os conhecimentos traçados, as fontes bibliográficas e nem “métodos”.

Cada um traz luz a algo específico a ser criticado e problematizado. Mas essa superação não é “matando oponentes”, eliminando “passados” numa “cadeia evolutiva” linear. A própria tomada de consciência e, como eu carinhosamente chamo, “botar a cara no sol” (ou declarar seu local de fala, se formos falar de maneira mais “oficial”) é, em si, uma superação e uma resistência.

Para mim, não é, de forma alguma, prejudicial à arqueologia fazer interface com outras ciências e, nisso, incluo tanto Ciências moderno-ocidentais como formas de saberes ancestrais. Trago, pelo pouco, mas crucial contato que tive nas disciplinas ministradas por antropólogos, no meu mestrado, críticas que, se não tivesse tido essa oportunidade de intersecção, jamais ousaria realizar dentro da arqueologia.

Não sei se é porque venho de um curso propriamente dessa ciência que, ao contrário de muitos arqueólogos com quem já tive contato ao longo destes oito anos, não tenho medo de abraçar. A Arqueologia, muitas vezes foi considerada filha da Antropologia ou, pior, como mão-de-obra da História. Provavelmente porque, há muito pouco tempo, conseguimos a legalização da nossa profissão, e há uma necessidade de se sublinhar o que é ou não arqueologia. Em minha opinião, um exercício frequente de insegurança, tentativa de legitimação do próprio poder que se perpassa, até hoje, em congressos, salas de aula e outros espaços em que se encontrem grupos de arqueólogos.

Entretanto, pessoalmente, nunca tive nenhuma dúvida de que a minha profissão é aquela que trabalha e dialoga com povos – pretéritos e presentes, através das materialidades. E observo que, para obtenção de uma “independência” de outras Ciências Humanas, arqueólogos se fecham em seus casulos. E buscando uma referência para aquilo que fazem, infelizmente, se referenciam por modelos europeus e, em alguns casos, norte-americanos. Importamos modelos prontos e esperamos que povos, filhos desta terra, em suas múltiplas ontologias, se encaixem – ou forçamos, a todo custo, que se encaixem.

Quanto à arqueologia, especificamente, algo que eu sempre quis demonstrar é que as coisas não são necessariamente reflexos de uma cultura ou de agentes humanos. Pelo contrário: damos de comer às pedras porque nossos Orixás são essas pedras. Nossas quartinhas

não representam que estamos servindo aos Orixás. Elas são servidas aos Orixás. Enquanto trabalharmos o “representar” e não nos dermos conta que outras ontologias e muitos outros pluriversos existem, estaremos sempre reiterando aquilo que a modernidade e a colonialidade nos deixou: a violência.