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Ainda que os estudos culturais sobre manifestações de matrizes africana nas Américas não sejam relativamente recentes (podemos observar o estopim de interesse nesse foco especialmente relacionado aos Direitos Civis e à inclusão do elemento negro na sociedade), novas abordagens e aclamações por visibilidades múltiplas permanecem em foco de discussão, tanto para melhorias políticas quanto para a promoção de vocalidade das populações negras (SANTOS, 2009).

Ferreira (2009) aponta que a chamada Arqueologia da Escravidão emergiu nos anos de 1960, nos Estados Unidos, quando, ao pesquisar ruínas das treze colônias e as plantations foram encontradas materialidades associadas aos escravizados (FERREIRA, 2009). Dentre os arqueólogos que trabalharam com os vestígios materiais dos escravizados, estão Singleton e Brograd (1995) e Fairbanks (1994), que acreditavam que os escravizados não confeccionassem materiais tão expressivos, o que posteriormente foi contradito. Arqueólogos como Leone (1995) e Schulyer (1979) trabalharam com a questão da “resistência escrava”.

Nos Estados Unidos, há uma tradição de que um dos principais tópicos da Arqueologia da Escravidão seja a “diáspora africana”, ou seja, o tráfico dos escravizados. Por vezes, se remontam rotas transatlânticas, e as relações dos coletivos de África, Europa e Américas (FERREIRA, 2009).

No Brasil, conforme Ferreira (2009), a temática preferencial, ao se estudar escravismo é o estudo sobre resistência escrava, principalmente através de marcadores étnicos (os cachimbos, por exemplo, estudados por Agostini) e por aquilombamentos, como já foi amplamente pesquisado por Guimarães e Lanna (1980), Oser Jr. e Funari (1991).

Estudos etnoarqueológicos também foram realizados no Brasil, como os de Amaral (2001) e os de Ribeiro (2008), que se propõem a analisar o acervo etnográfico do MAE, de São Paulo; este último, além de ter com foco a interpretação das máscaras gueledé e dos edanogboni, posteriormente, analisa a religiosidade de matrizes africanas na Bahia, na proposta de tombamento de terreiros religiosos (WOLFF, 2016). Carvalho (2011) trabalha a especialidade das árvores, relacionadas às religiões afro-brasileiras, num quilombo de Mato Grosso; Já Novaes (2013) trabalhará com assentamento de Exú na Bahia, trabalhando com etnoarqueologia focada na paisagem e a importância desta no Candomblé.

Bastide (1985 ) afirma que, apesar dos primeiros africanos capturados no continente negro provavelmente pertencessem às tribos do litoral, conforme se intensificava a necessidade de mão de obra escravizada no Brasil, o tráfico penetrava ao interior do continente . Ainda que

alguns pesquisadores não presenciem múltiplas etnias negras, nos registros históricos (já que geralmente se atribuía a origem do escravizado ao porto em que o mesmo embarcou), Arthur Ramos apud Bastide (1985) divide as etnias de africanos (as), que aqui desembarcaram, em quatro: sudaneses (representados pelos iorubas, daomeanos do grupo gêge, fanti-axanti – ou mina – e por grupos menores como agni, zema e timini); os coletivos islamizados (peuhls, mandingas, haussas); bantos do grupo angola-congolês (ambundas de Angola, congos, cambindas e benguelas); e bantos da Contra-Costa (moçambiques – macuas e angicos).

Já Correa (1994) divide africanos (as) trazidos (as) ao Brasil em dois grandes grupos: sudaneses, que geralmente se originavam da República de Benin e da Nigéria e os de origem Banto.

Se, ao chegar ao Brasil, os (as) africanos (as) foram obrigados (as) a conviver com distintos grupos sociais e étnicos (europeus (as), indígenas e negros (as) originários (as) de diferentes partes da África), também se estabeleceu novas relações de convívio e solidariedade, recriando suas visões de mundo e garantindo, assim, sua sobrevivência (MATTOS, 2008).

Para meu seguimento de pesquisa, entretanto, farei um recorte espacial: o Rio Grande do Sul. Félix (2014) apud Wolff (2016) realiza uma etnoarqueologia a partir das materialidades de pretos velhos e caboclos em Pelotas, RS. Barbosa Neto (2012) apud Wolff (2016) realiza sua tese com base etnográfica de diversos seres sobrenaturais de Pelotas, RS. Kosby (2009) apud Wolff (2016) realiza uma etnografia sobre as relações sutis de morte e renascimento nas religiosidades de matrizes africanas, em Pelotas, e sobre a afecção que passou ao trabalhar com a temática.

Autores como Gorender, Fernando Henrique Cardoso e Maestri apud Carle (2005) abordam uma historiografia sobre o negro do Rio Grande do Sul, a partir de uma abordagem marxista. Segundo Maestri (1984), a presença negra no estado pode ser constatada desde a entrada dos primeiros lusitanos, com uma possível identificação de bantos e sudaneses, sendo que o primeiro, a princípio, estaria em maior número, numa relação 2:1 sobre os outros.

Segundo Norton Corrêa, no advento das charqueadas, um número significativo de escravizados (as) foi trazido para trabalhar no Rio Grande do Sul. No final do século XVIII e início do século XIX, apogeu das charqueadas, cerca de 30% da população sul rio-grandense era composta por negros (as), sendo provável que bantos representassem uma proporção de 3 a 4:1 sobre sudaneses (CORRÊA, 1994). Maestri ainda aponta que, salvo relativamente poucas exceções, a entrada de africanos (as) escravizados (as) se dava pelo porto de Rio Grande, a partir do que chama de “atividade saladeiril em grande escala” (MAESTRI, 1984).

A origem desses (as) escravizados (as), suas “nacionalidades”, como Maestri coloca, são ainda pouco sabidas, visto que tanto o contato com o interior do continente africano quanto a preocupação a respeito das origens e particularidades desses grupos eram, em geral, superficiais para os colonizadores (MAESTRI, 1984).

Entretanto, novamente, necessito realizar mais um recorte: o Batuque. Muitas pesquisas se focam em Umbanda ou dão apanhados gerais a respeito do Batuque, o confundido constantemente com outras culturas. Corrêa (1994) mostra que há, no Rio Grande do Sul, três principais expressões (que chama de) religiosas: a Umbanda, a Nação (ou Batuque) e a Linha Cruzada. Oro (1994, 1998) pincela brevemente as diferenças entre esses “horizontes antropológicos” de cada uma dessas manifestações.

Corrêa aponta que foi em 1963 que Bettiol publicou a primeira obra que parece se dedicar ao Batuque. Laytano apud Corrêa (1994) também iniciou, em 1938, um trabalho sobre casas de culto e rituais da religiosidade, publicando em 1955 e, reeditando os mesmos dados obtidos, publicou em 1987 a obra Folclore do Rio Grande do Sul.

Herkovits; Bastide apud Corrêa (1994) também vieram ao Rio Grande do Sul para conhecer o Batuque. Ambos não levaram em conta contextos específicos dos aspectos socioculturais do estado. Bastide passa a relativizar o que vê e, considerando o Candomblé uma expressão “pura” dos ritos afro-brasileiros, compreendeu que o Batuque não passava de uma variação do primeiro; sendo assim, entende que as práticas diferentes realizadas aqui eram fruto de uma “perda” ou “enfraquecimento” das tradições candomblecistas. Herkovits apud Corrêa (1994) também toma o Candomblé como comparativo, mas encara o Batuque como uma religiosidade com realidade à parte e que se “adaptou” em contexto específico.

Corrêa (1994) também cita o trabalho de Krebs (1948), que analisa o Batuque em relação à modelos comparativos do Candomblé, já que acredita que aquele se deriva deste. Outros autores como Friederichs (1958) apud Corrêa (1994), La Porta (1979) apud Corrêa (1994), Frigerio (1988) apud Corrêa (1994) também estudaram manifestações religiosas afro- rio-grandenses.

Oro (1994, 1995, 2010) e Corrêa (1994) analisam as manifestações culturais afro- rio-gaúchas com um fim nelas mesmas. Faço, também, a ressalva de que esses dois autores mostram, ainda que não declaradamente, afecção e uma máxima de respeito ético ao lidar com o tema em suas particularidades locais.

Goldman (2009), ainda que não trabalhe diretamente com as manifestações do Rio Grande do Sul, também tem a premissa de que as manifestações culturais nas Américas não devem ser estudas por analogias ao continente africano, já que demonstra, em seu trabalho,

certa idealização de uma “cultura Iorubá” – criada por missionários que acabaram por “conjugar” diversas etnias, línguas e culturas, em um grande grupo ao qual denominaram assim: Isso significa que nunca existiu uma religião yoruba, que mais tarde viria a “sincretizar-se” com outras igualmente unas e puras. A religião yoruba – como qualquer outra, aliás- é um patchwork ou um “complexo” que contém inúmeras possibilidades ou virtualidades que se atualizarão com maior ou menor força segundo as situações. [...]. Nesse sentido, não há qualquer razão para repetir Bastide, que limitou a sua hipótese aos candomblés de origem yoruba e fon, insistindo na busca de decadências e degenerações quando abordava as religiões de origem bantu. (GOLDMAN, 2009, p. 110-111).

Devemos ter em mente que a sociedade escravista, em especial a brasileira, promovia as melhores condições possíveis para que os sujeitos escravizados se tornassem, de fato, “escravos” (MAESTRI, 1984). Entretanto, podemos considerar a manutenção, a permanências e a criação de laços de solidariedades como manifestações de matrizes negras enquanto resistências e estas (além de muitas outras) sempre existiram.

Mello trabalha com a noção de Batuque enquanto “resistência escrava” em Pelotas, a partir da qual o autor procura “mapear representações sociais” (MELLO, 1994, p.12).

Essa opção pela valorização da cultura em seu sentido mais amplo está diretamente ligada à noção de resistência que tomamos emprestada de E.P. Thompson. Para este autor os subalternos não estão presos a forças externas e determinantes e, se tivermos

olhos para ver, poderemos detectar uma outra cultura a emergir, cumprindo um papel

ativo e mesmo decisivo no próprio fazer histórico e correlação de força dos atores em determinados contextos (MELLO, 1994, p.14).

A noção de resistência, que passa pela manutenção e pela valorização da cultura, de Thompson, se opõe a uma perspectiva de entender o ente em ação como “subalterno” em seu próprio efetivar. Ele não estava apresentado como ser de sua própria resistência, pois é aquele que está sob as ordens de outro, que é subordinado e mesmo inferior a outro em autoridade. Como poderíamos ser inferiores em nossa própria ação de resistir? Somos, constantemente, entendidos como “presos a forças externas” e incapazes de produzir Ciência, a não ser nos moldes daqueles que nos dominam.

Nós, descendentes de negros (as) e partes dos coletivos que remontam (também) nossas origens, jamais nos resignamos a qualquer condição e são inúmeras as formas de representação disso, tendo aqui, em mim, a evidência mais cabal dessa permanência contra toda a negação, mesmo que histórica. Aqui está uma negra e batuqueira presente, marcada pela luta que surgiu no primeiro momento do contato e das ações escravizadoras. Essa perspectiva é possível abordar não pela pós-modernidade ou pela corrente pós-processual, mas pela virada que foi feita nesse paternalismo científico degradado.