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A crítica do modelo humanista, com seu apogeu iluminista (GONZÁLEZ- RUÍBAL, 2007; LATOUR, 2008), passa a deslocar o Deus cristão no território europeu em detrimento de um novo centro: o “homem” e sua “racionalidade”, a luz que se distanciava das trevas do período medieval.

Buscar-se-ia, assim, resoluções na Ciência para explicações de mistérios relacionados à observação, a olho nu. Entretanto, devemos lembrar que esse suposto sujeito objetivo da ciência é, na verdade, extremamente subjetivo e muito pontualmente localizado: trata-se de um homem branco, europeu, heteronormativo, com aquisições financeiras (nobres ou burgueses ávidos por conhecimento e status – e, assim, poder) e quando, por exemplo, mulheres passaram a ser inseridas, elas são os seus “opostos” ideais: também brancas,

heteronormativas e com poder aquisitivo, geralmente filhas, esposas ou até mães do “cientista” (TOSSI, 1998; HARAWAY, 1995). Said (2007), ao tratar sobre o orientalismo, nos informa que:

O orientalismo nunca está longe daquilo que Danys Hay chamou de ideia da Europa, uma noção coletiva que identifica a “nós” europeus em contraste com todos “aqueles” não-europeus, e de fato pode ser argumentado que o principal componente na cultura europeia é precisamente o que torna essa cultura hegemônica tanto na Europa quanto fora dela: a ideia da identidade europeia como sendo superior em comparação com todos os povos não-europeus.

[...] O cientista, o erudito, o missionário, o negociante ou o soldado estavam no Oriente, ou pensavam nele, porque podiam estar lá, ou podiam pensar sobre ele, com muito pouca resistência da parte do Oriente (SAID, 2007, p. 19).

Ainda que, nesta obra específica24, Said se foque mais na invenção do Oriente pelo mundo ocidental, podemos correlacionar as mesmas atitudes do mundo Europeu25 a distintas

culturas e povos. A apropriação e a exploração, o saqueamento, a escravidão de povos considerados “inferiores”, fosse por não possuírem suficiente armamento bélico, fosse por não terem a mesma apreensão de mundo que tinham esses grupos dominantes. Durand (2004) corrobora para esta afirmação ao constatar que:

Embora, por um lado, tenha sido a lenta erosão do papel do imaginário na filosofia e epistemologia do Ocidente que possibilitou o impulso enorme do progresso técnico, por outro, o domínio deste poder material sobre as outras civilizações atribuiu uma característica marcante ao “adulto branco e civilizado”, separando-o, assim como sua “mentalidade lógica”, do resto das culturas do mundo tachadas de “pré-lógicas”, “primitivas” ou “arcaicas” (DURAND, 2004, p. 15).

Portanto, não bastava não ser suficientemente “civilizatório”, numa perspectiva material (como materialidades atribuídas a um mundo bélico organizado ou cidades imponentes), mas também todos aqueles que observassem e percebessem um de maneira ao que Durand chama de “imaginário”, mas eu chamo, nesta dissertação, de ontologicamente distinto, eram associados a qualquer termo pejorativo. Isso nos colocava numa categoria além de “pré-humanos”: éramos “não-humanos”. E se, num primeiro momento a fé cristã era relativamente aceita, após, há a completa “erosão” entre ciência e a mesma. O mundo ocidental passa, ontologicamente, a dividir-se em dois. Dualidades como ciência/fé; natureza/cultura; homem/mulher e outros. Dualidades estas que são culturalmente compartilhadas com a perspectiva judaico-cristã e que se impõem aos mais distintos grupos que foram subjugados pelo mundo Ocidental.

Como raramente essas dualidades representam relações de igualdade na diferença, a relação inerentemente instável é resolvida ao subordinar-e uma metade de cada par à outra. Dessa forma, brancos dominam negros, homens dominam mulheres, razão é

24 SAID, Edward. Introdução. In: Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

aclamada como superior à emoção em garantir a verdade, fatos superam opinião ao avaliar conhecimento e sujeitos dominam objetos. A diferença de oposição dicotômica invariavelmente implica relações de superioridade e inferioridade, relações hierárquicas que se enredam com economias políticas de dominação e subordinação (COLLINS, 2016, p. 108-109).

Devemos ter em mente, entretanto, que, para se legitimar enquanto única verdade, a única “razão” possível, foi necessário suprimir outras formas de conhecimento, de apropriação de mundo, de cura. A ridicularização e a chacota são também meios de opressão, muito comuns no período contemporâneo. Mas, neste primeiro momento, falamos de mulheres com conhecimentos milenares sendo queimadas vivas, negros sendo violentados de todas as maneiras possíveis, indígenas sendo catequizados ou dizimados, etc. Foi necessário matar, nos internar como loucos, perseguir os “endiabrados”, prender os “charlatões curandeiros” (NEGRÃO, 1996, p. 43-66). Nós, que não compartilhávamos da ontologia moderna-ocidental, éramos os inimigos da “luz”, do verdadeiro conhecimento.

E, ainda que tenha o objetivo de se declarar “neutra” e oposto completo de “fé”, essa Ciência, em geral, perpetuou as perseguições da Santa Inquisição do período Medieval, apenas com métodos distintos. Se não somos “agentes de Satã” (DELUMEAU, 2009), passamos a ser considerados (as) doentes mentais pela medicina moderna – jamais poderíamos trazer nosso conhecimento, tão “contaminado” por nossas “crenças”, ao mundo de luz e razão. A única forma de podermos ter vocalidade, em tais circunstâncias, é sermos tutelados ou nos enquadrarmos nos moldes “acadêmicos”.

A Ciência (com “c” maiúsculo, a tida enquanto oficial) teve papel crucial em ambas: modernidade e colonialidade, tanto na tentativa de abandonar o domínio exclusivo da Igreja, quanto para reforçar o que esta já impunha – a exemplo, as dualidades, como bem/mal, homem/mulher, etc. (DURAND, 2004). Tais teorias, hoje citadas com desprezo pela Academia pelo pavor de seu próprio passado, nos parecem absurdas. Mas a violência de uma colonialidade do saber apresenta-se até hoje (BOURDIEU, 1989; GNECCO, 2009).

Aprofundando ainda mais a afetividade e relacionamento com os seres (humanos e não humanos) que pesquiso e dos quais também faço parte, muitos questionamentos a respeito do próprio fazer arqueológico surgiram. Por ter sido inúmeras vezes “impedida” e desacreditada de estudar meu próprio coletivo, iniciei a crítica do “fazer Ciência”, em especial, a Arqueológica.

Ao estudar a virada ontológica e textos pós-coloniais, passei a questionar a colonialidade do saber, a violência epistêmica e o racismo26 praticado cotidianamente no cenário Acadêmico, em especial na minha área de conhecimento – a arqueologia. Não poderia, então, o subalterno falar?27

Acima de tudo, a modernidade ocidental é um evento palpável a quem se dispõe a analisá-la (LATOUR, 2013). Alguns autores pressupõem que essa modernidade tem origem no iluminismo, por meio da consagração da teoria humanista (TOSSI, 1998; WOLF, 2016). Outros defendem que a sua origem é do socratismo (DURAND, 2004). Não me aprofundarei acerca das origens da modernidade em si, mas em alguns aspectos que podemos observar como resultados dela.

Estamos tratando de contextos europeus, de sujeitos que, desejando se afastar de uma teoria mais divinizada da Igreja Católica, criam um sujeito supostamente objetivo: um observador “onipresente, onisciente, onipotente”, que teria, por sua modéstia, a capacidade de observar a natureza e a sociedade (em oposição, evidentemente) em uma perspectiva não emotiva e racionalizada (TOSSI, 1998). Os humanos teriam, portanto, atributos de centro e, não por acaso, as qualidades outrora divinas passam a localizar-se no ser humano. A ontologia moderna cria, para os mais distintos aspectos de seu mundo, dualidades, e as difunde forçadamente – por meio da globalização do mundo colonial. Assim, coloca-se uma grande linha horizontal de opostos completos, onde o meio termo praticamente seria inexistente ou patologicamente inviável28.

Así, todo objeto fue dividido en dos, y los científicos e ingenieros se llevaron la mayor parte- la eficacia, la causalidad, las conexiones materiales- y les dejaron las migajas a los especialistas de “lo social” o la dimensión “humana. […] Cuando se da al ámbito social un rol tan infame, es grande la tentación de reaccionar exageradamente y convertir la materia en mero intermediario que “transporta” o “refleja” fielmente la agencia de la sociedad. (LATOUR, 2008, p. 123).

Algo que noto no fazer científico mais tradicional é que, ainda que lutemos para a inserção de negros (a) e indígenas na Academia, nós negros (as), indígenas, corpos marginalizados em geral, não temos direito pleno de falar sobre nós. E a razão? Deveríamos ser, no máximo, relacionais, não êmicos.

As culturas negras, por exemplo, oriundas de diversos locais de um imenso continente, interagindo com outras etnias, em graus de relações diferentes, com legislações

26Visto que meu coletivo é de matriz negra. 27 Referência a SPIVAK, 2010.

28 Para leituras mais aprofundadas a respeito de patologizações, sobretudo as da imposição do sexo, efetuadas pela modernidade, ver Machado (2005), Preciado (2011), Bento e Pelúcio (2012), Haraway (1995), Schienbinge (2001), Rohden (2003), Butler (2006).

diferentes para cada localidade da colônia (CARLE, 2005), poderiam, de alguma maneira ser iguais? É procurar traços étnicos africanos de uma África ideal que foi arrancada de nós (ou, mais bem colocado, fomos arrancados dela).

A questão não é deslegitimar que outras pessoas – que não sejamos nós negros (as), batuqueiros (as), quilombolas, indígenas ou outros grupos marginalizados – falem da nossa cultura ou uma crítica direta ao pressuposto da alteridade. Mas é sim a denúncia que esse local de fala, infelizmente, ainda não nos é permitido a todos (as), justificando um racismo ideológico por estarmos afetados (as) pelo campo ou completamente inseridos (as) dentro dele – algo que, segundo Favret-Saada (2005) e Collins (2016), seria mais enriquecedor do que, necessariamente uma falha epistemológica, já que teríamos acesso a determinadas informações que um (a) pesquisador (a), que não tivesse sido afetado em campo, não teria acesso facilmente (se é que, sequer, as teria).