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Fala-se para satisfazer uma necessidade momentânea e imediata. Ao escrever, pelo contrário, encontramos libertação e durabilidade. Salvar as palavras de sua existência transitória e conduzi-las para o que é durável é tarefa de quem escreve, e quando o homem se lança à conquista de sua própria história, então a poesia o acompanha. Maria Zambrano

A inspiração é coisa rara. Não tão rara é a ansiedade que nos prende diante da nossa própria identidade, nosso nome, esse eu que faço menos e que me faz mais eu, desde que o pronuncio, afastando-me, provisoriamente, do que não importa a quem. Que dá a primeira pessoa um “quê” de mito de sujeito pleno. Não para falar da enunciação poética, nem mesmo da enunciação romântica, mas para sustentar a enunciação autobiográfica, onde a pessoa se vê plena e legítima. Formas e funções do “eu” variam consideravelmente de um gênero a outro, conforme a mídia, cuja evolução em constante metamorfose atua de forma que cada um se vê como sujeito e vê as relações com os outros sujeitos, as situações de comunicação que se constroem, o contexto social em que são produzidas, etc.

É importante registrar a capacidade que o ser humano tem de recuperar as coisas vividas e, valendo-se da potencialidade do imaginário, verbalizar sua experiência. Logo, as memórias literárias não têm apenas um autor, aquele que lembra, mas também um narrador, aquele que, pela linguagem, textualiza suas experiências revigoradas por outras possibilidades.

Também é importante registrar a capacidade de Maria Helena Cardoso em recuperar o vivido. Ao narrar suas histórias, disse Walmir Ayala:

As cidades iam-se recompondo diante dos meus olhos, Pirapora, Diamantina, Curvelo, Belo Horizonte, Minas Gerais de cinquenta anos atrás, surgindo por detrás daquela palpitação de vida, com toda a singeleza e o romantismo de um tempo de memória que soube amar e preservar (AYALA, orelha de Por onde andou meu coração, 1967).

O interesse pela autobiografia tem levantado questionamentos como qual é a arquitetura neurológica do eu autobiográfico e porque ele sugere a escritura de memórias. Leva também a perguntas sobre as salvaguardas da mente contra a memória que pode sugerir enganos e decepções. Apesar de se saber que as memórias têm caráter luminoso de resgate criador, no que tange às experiências vividas e compartilhadas, sabe-se também que a palavra escrita não possui a aptidão de resguardar integralmente o vivido sem transformá-lo.

Cabe, pois, evidenciar a postura da autobiografia não como simples ato de discurso literariamente intencionado. Tal postura supõe que os mecanismos internos da organização textual tenham seu campo de interesse delimitado, sem deixar de lado a articulação do regime de leitura do sistema literário e social, para que os traços configuradores da modalidade narrativa sejam estabelecidos. Isto é, para que o termo “autobiografia” seja entendido como “vida de um indivíduo escrita por ele mesmo”, será necessário a compreensão da sua gênese e do seu progressivo desenvolvimento, existente na tortuosa relação entre representação literária e experiência vivida, residindo aí a maior ou menor criatividade, o endosso ou o desmascaramento da ilusão autobiográfica.

Para Alba Olmi:

Hoje, a autobiografia é vista também como método de formação, pois, narrando-se, o ser humano aprende a documentar sua experiência no passado e no presente, deixando um testemunho de si para os outros, escrevendo com mais motivação, pensando e refletindo com maior profundidade. [...] Por isso, talvez se pudesse definir a autobiografia como método autoinformativo que cada um, por si só, ou com a ajuda de um educador esperto, pode experimentar em primeira pessoa: autocorrigindo-se, autoavaliando- se, descobrindo potencialidades narrativas antes desconhecidas e revelando assim dotes criativos ocultos (OLMI, 2006, p. 14).

Vê-se nas reflexões de Olmi a trajetória de vida de Maria Helena Cardoso. A memorialista nunca se imaginou escritora, foi incentivada a escrever por amigos que apreciavam sua maneira de contar histórias do passado, nunca acreditou nas possibilidades de ser editada por uma editora do porte da José Olympio e por inúmeras vezes, ao longo de sua obra, afirmou ser o irmão o verdadeiro escritor da família. Mas vê-se também que, autocorrigindo-se e autoavaliando-se descobriu potencialidades que desconhecia e revelou dotes criativos.

Dessa forma, ao escrever suas memórias pôde nos fornecer documento precioso, colocando cada episódio e cada representação individual num horizonte mais amplo, numa comunidade ou numa cultura específica. Assim, cabe-nos reconhecer que a autobiografia é um instrumento desbravador na busca dos caminhos da verdade. Muitas vezes a escrita de uma autobiografia nasce de uma sugestão, uma observação ou até mesmo de uma conversa despretensiosa entre amigos, como foi o caso do primeiro livro de Maria Helena Cardoso.

Uma vez que essa escritura se alimentaria de perguntas sobre seu passado, como e onde tinha vivido, porque fizera escolhas específicas, descobriria os mistérios que davam sentido à sua vida e que se representavam através do amor, da dor, da perda e da morte. Seria como se ela se valesse de tal instrumento (a escrita de si) para buscar sua verdade.

Mas a narrativa de uma vida requer muito empenho e coragem. O narrador precisa ser capaz de se mostrar distante de si mesmo, observando sua vida no passado de forma sistemática, mostrando ao leitor que a reconstrução das memórias foi realizada sem dispersão ou desperdício de si. Não se esquecendo, ainda que a memória é a primeira fonte de reflexão sobre nós mesmos quando olhamos para nosso interior, tentando decifrar-nos com a lucidez que os outros nos veem. Embora se saiba que vários escritores tenham utilizado suas memórias como matéria de escritura e afirmaram o conhecimento da ruptura existente entre o texto escrito e essas memórias, sabe-se também, da dificuldade da autorrepresentação para reconstruir o passado, criar um presente significativo e, pelo escritura, dar sentido a uma verdade capaz de trazer à tona revelações com sabor de “epifania”.

Aspiro o ar fresco com a maior delícia, enquanto minha imaginação trabalha. Um carro para mim é sempre uma possibilidade, possibilidade de partir para Belo Horizonte, para outras terras. A qualquer momento que me encontro num, de aluguel, de uma amiga, de um parente, por pequeno que seja o percurso, imediatamente passo a sonhar viagens, sonhadas, encantadas e nunca realizadas. Mil estradas à minha frente, sem que saiba por qual me decidir, e a mais insistente sempre, a que conduz às terras de Minas Gerais (CARDOSO, 1973, p, 189).

A narradora, através das memórias, controla a narrativa, manipulando a função estética de suas lembranças em função do que viveu, fazendo um acordo com a realidade. Mas é óbvio que essa escritura não se constrói num passe de

mágica. Ela é feita e refeita, corrigida, rasurada, riscada, registrando cada acontecimento, filtrando ou ignorando outros, para depois ordená-los na narrativa. Logo, o autor-escritor-narrador ou é o sujeito do verbo das lembranças:

Perdera Hans, mas Deus me compensara me dando amigos como aqueles. Jamais poderia ter imaginado que aos quarenta e muitos anos pudesse ter qualquer atrativo que cativasse pessoas tão jovens. Não desejava mais nada. O amor que me era tão necessário, tinha-o sob aquela forma de amizade, a mais perfeita, a mais doce e preciosa (CARDOSO, 1967, p. 464).

Ou passa a ser o objeto direto ou indireto de pessoas, de fatos lembrados, pronomes possessivos ou oblíquos:

A lembrança de nossa chegada diluiu-se no tempo. Só me recordo da casa de titia, num largo triste, uma igrejinha perto, batendo um sino melancólico muitas vezes ao dia, a satisfação de vovó quando me viu chegar, os elogios que fazia da minha inteligência e adiantamento na escola perante os parentes e visitas; o casamento de Miluca, os três dias de festa e banquete. Os quartos cheios de doces de toda espécie: pudins, bolos, queijadinhas, balainhos de coco, canudos de doce de leite, doces em calda, frutas secas cristalizadas, queijos, requeijões; a cerimônia à noite, na igrejinha toda iluminada de velas, o baile que se seguiu, com orquestra de flauta, violão e bandolim (CARDOSO, 1967, p. 497).

Na reevocação do passado percebe-se na escrita de Maria Helena Cardoso uma dupla cisão: a do tempo e a da identidade, já que o eu é diferente do atual, esse eu conta, não só o que aconteceu como também o que se tornou presente para ele. Em outras palavras, o caráter normativo e o processo de objetivação e de sujeição, cedem lugar a um movimento de subjetivação. E o texto cardosiano é, em grande parte, tecido pela subjetividade desdobrada. O fato de sua narrativa ser estruturada pela primeira pessoa, através de verbos rememorativos garante o presente narrativo, estruturador e selecionador das lembranças:

Não me recordo do dia da partida. Os animais arreados à porta da nossa casa à Rua Treze de Maio, e depois a partida. [...] Zizina, já grandinha, montava um burro mansinho e Fausto e eu íamos em dois caixotes de querosene, com janelinha de tela de arame, pendurados, um de um lado e o outro, do outro da cangalha do burro. Começou aí, bem cedo ainda, nosso aprendizado com o sofrimento (CARDOSO, 1967, p. 28).

A professora Tânia Regina Oliveira Ramos usa a expressão “tutela histórica” para denominar tal estrutura. Nesse caso, de acordo com o material que o discurso narrativo oferece, cada texto instaura sua especificidade, isto é, pode ter uma

temática original, podendo até ser superior à autobiografia, a partir do momento que o diálogo com o presente atualiza o passado, e, através da linguagem, permite a reconstituição da vida, quando as lembranças já deixaram de ser realidade e são apenas interpretações do que já acabou.

3.1 Romance do eu

...nada é mais fascinante do que mostrar a verdade que jaz por trás dessa imensa fachada da ficção – se a vida é realmente verdadeira, e a ficção é realmente fictícia. Provavelmente a conexão entre as duas é altamente complicada. Virgínia Woolf

Em Sonata perdida, Maria Helena Cardoso parece querer mostrar a verdade por trás de uma fachada de ficção. Sílvia é tão semelhante a ela que muitas vezes o leitor se vê perguntando por Hans, quando é Jaques a personagem, ou ainda por Lúcio, quando Sílvia fala de Aldo. Assim as experiências da vida da autora são alvos das atenções, sejam elas dignas de reconhecimento ou meros relatos do cotidiano. O surgimento de obras que narravam a rotina, às vezes, focalizando determinado episódio da vida íntima de alguém, principalmente quando esse alguém era pessoa de destaque político, social ou artístico, teve crescimento expressivo nas primeiras décadas do século XX. Parece que os autores tinham, na verdade, a intenção de escrever um romance e não uma autobiografia. Mas, ao entrelaçar a vida cotidiana de um ser fictício com seus casos de amor, família, saúde, finanças, etc, acabavam por construir um “Romance do eu”. Esses romances tanto podiam ser escritos na primeira quanto na terceira pessoa. Em ambas, o protagonista é espectador do que se passa ao seu redor. Reflete sobre sua condição, toma atitudes, mas prefere manter-se a mercê dos acontecimentos.

Curiosamente, Sonata perdida, narrada em terceira pessoa, dá vida à última criação de Maria Helena Cardoso, que se apropria do recurso ficcional de construção das personagens, direcionando-as para questões particulares. Sílvia, a protagonista é dividida entre o querer e o poder, o ser e o parecer. É mulher, amiga, filha e irmã. Indecisa, prestes a viajar para a Europa e os Estados Unidos em companhia de amigas, realizando um sonho antigo, entretanto, infeliz porque estava deixando no Brasil o amigo (amor?) Jaques.

Episódios descritos em Por onde andou meu coração e Vida-Vida reaparecem em Sonata perdida, embora recriados e em contextos diferentes. O que interessa é

observar que o material de Sonata perdida, que pode ser considerado semelhante ao da vida de Maria Helena Cardoso, sofreu a metamorfose do processo criativo. “Leonor tem razão, de nada adianta ficar só em casa, pensando na minha vida de antes, em tudo que perdi, o irmão querido” (CARDOSO, 1979, p. 20). Aqui, o sujeito narrador projeta-se dentro da história, revelando e enfatizando a duplicidade de cada lembrança. Sonata perdida é entretecida com a vida da memorialista mineira tanto no plano consciente (pormenores biográficos) quanto no inconsciente (frustrações), que representam sua projeção pessoal. Ficção e memorialismo se fundem como as duas faces de uma mesma moeda - a escritora se realiza através de si mesma e da criação ficcional:

Música. Sílvia sentiu-se iluminada, feliz. Tinha achado o caminho para ser querida por aquele rapaz tão jovem, inteligente e culto. Quanta gente difícil não tinha conquistado através do seu amor à música? Um copo de vinho, um disco de um compositor romântico e, pronto, tudo se tornava fácil. Era este o terreno em que sentia absolutamente segura e feliz (CARDOSO, 1979, p. 28).

A narrativa oferece relatos da personagem construídos pelo autobiográfico, estruturando os “eus” como ficções e escrevendo as histórias como forma de preservar a ficção. E se esse “eu” é o outro não é somente porque a enunciação cobre os instantes múltiplos, é que todo conto da vida é apenas uma reprise ou uma transformação de espécies de vidas pré-existentes. É uma evidência que engendra um efeito de transparência.

A autobiografia parece ser uma forma, a priori, da nossa percepção do mundo, do ponto de vista cultural ou historicamente variável, ideologicamente determinado: como nos vemos, pensamos e procedemos com relação às glórias, sucessos e fracassos. Funções e formas que constroem e revelam a civilização que as produzem, fazendo de cada um, um eu bem determinado.

Resta-nos, pois, investigar como é que um texto se desenvolve quando se escreve. Naturalmente, por movimentos de linguagem formais e repetidos para que se possa chamá-los de “figuras”, isto é, figuras de produção operadoras do referido texto.

As figuras da terceira pessoa fornecem uma gama de soluções cuja distância é fator de destaque para exprimir uma articulação (uma tensão) entre a identidade e a diferença, e são obtidas pela transformação do enunciado na primeira pessoa,

muitas vezes implícitas no texto ou explicitadas pelo autor por meio de um contrato de leitura.

Assim, em Por onde andou meu coração, a autobiografia da infância e da juventude da narradora, depois de contada na primeira pessoa, é complementada no texto com histórias de outras personagens, valendo-se da terceira pessoa. É quando Maria Helena Cardoso nos fala da mãe, do pai, dos irmãos, da avó, das tias e dos amigos e vizinhos:

Mamãe, nesse tempo, era a própria alegria. Muito moça, comunicativa, exercia sobre os que dela se acercavam uma grande atração. Apaixonada, vivia como sua a vida de cada um dos amigos, que com ela se expandiam: faziam-lhe confidências, pediam sua opinião sobre os seus casos sentimentais, dando-lhe para ler as cartas de amor que recebiam. [...] Apaixonada pelo marido, suportava todas as suas infidelidades de homem bonito, nunca deixando de ser para ele a companheira intrépida de que tanto necessitava, devotando-lhe uma grande admiração (CARDOSO, 1967, p. 135-136).

Ao adotar sistematicamente o pretérito empregado no gênero da análise de cada caso, a autora não mudou as informações e as interpretações já presentes no primeiro texto. A autobiografia, como é praticada hoje, deve muito ao modelo biográfico e, sem dúvida, ao romance, tanto em pesquisas mais tradicionais como nas mais recentes. A maioria dos jogos que envolvem os autobiógrafos contemporâneos é o eco tímido das procuras dos romancistas modernos sobre a voz narrativa e a focalização. Timidez justificada, já que na ficção nada se arrisca, a identidade pode ser quebrada e recomposta, são permitidos todos os pontos de vista, e todos os meios podem ser usados. Na autobiografia depara-se com os limites e com as restrições de uma situação real, nela não se pode renunciar à unidade de um ego ou sair de seus limites, pode-se, no máximo, fingir.

Dentro desses limites, no contexto da obra aqui estudada verifica-se, primeiro, a imposição da identificação da personagem que fala com o autor como figura de enunciação - uma mistura sistemática de primeira e terceira pessoa:

- Adeus, adeus, Lelena.

Foi ontem que Leopoldo, me disse essas palavras, na Casa de Saúde onde se acha internado, os olhos cheios de lágrimas. Não se acha às portas da morte, como se diz, mas há três meses atacado de arteriosclerose, morrendo a todo instante no seu modo de sentir (CARDOSO, 1973, p. 182).

Em segundo lugar, o emprego do nome próprio em si, procedimento que dissipa a ambiguidade e acentua o caráter figurado da enunciação:

- Ah, Leleninha, é muito bonito, mas confesso que prefiro Bach, o último movimento, a meu ver, não foi bem solucionado. Não há igualdade, e se fosse Bach teria resolvido com maior facilidade e beleza.

Ficava furiosa:

- Deixe de ser sofisticado, Vito, nunca mais há de ouvir Brahms, pelo menos comigo, você não o merece (CARDOSO, 1967, p. 227). O nome próprio pode corresponder a várias intenções, por exemplo: figura de grandeza, emprego sério ou humorístico da apresentação biográfica ou imitação de romance psicológico, formação incipiente de um “duplo”. Suscetível de retornar à apresentação dos códigos sociais e dos diferentes gêneros literários. Há também a possibilidade de uso somente do primeiro nome, do primeiro e último, do nome precedido por um título ou por simples iniciais. Esse recurso é usado por Maria Helena Cardoso com frequência: “Será possível que A. não tenha percebido o quanto me feriu com as suas palavras?” (CARDOSO, 1973, p. 141). Assim como o uso do nome fictício ou pequeno nome que dá às pessoas de sua intimidade: “Um receio me chega de que Nonô nunca mais fale e escreva como eu e ele desejamos” (CARDOSO, 1973, p. 202). Esta é a fronteira da ficção, entretanto, de uma “ficção fictícia”, já que se trata de uma mimetização dentro de um texto que se reconhece como autobiográfico.

Há também o fato do autor informar ao leitor que ele tem uma visão particular de si mesmo, elaborando as descrições do seu comportamento e suas características:

Vazio imenso. Não sentir a alma das pessoas que nos cercam, viver ausente, conviver com fantasmas, trabalhar sem amor, sem dar a sua carne, seu sangue, não se apaixonar pela sua tarefa, viver morta, sem coração. Autômato deslizando por salas povoadas de seres frios e cruéis (CARDOSO, 1973, p. 107).

Ao expor seu estado de espírito, a autora se revela ao leitor não só pelo conteúdo enunciado na primeira pessoa, como também pela manutenção no tempo do discurso - passagem do tempo da história, obtendo efeitos de distanciamento diferentes, conforme o enunciado comporta com relação aos efeitos da enunciação. Transpor um “não sentir”, “não se apaixonar” ou tantas outras expressões para a

terceira pessoa transforma um efeito de enunciação em um simples enunciado relatado. A autobiografia constata seu próprio discurso no lugar de assumi-lo diretamente; ela volta à origem e, na verdade, se desdobra como narrador. Parece que ela nos fala de alguma maneira em “tradução simultânea”.

Adorava pensar em portas secretas, alçapões, poços profundos ao fim dos quais passavam rios desconhecidos, príncipes e princesas encantadas, jovens desprezadas pelos pais ou madrastas perversas e que acabavam casando com príncipes louros e formosos. De tal modo gostava dos personagens das estórias que ouvia, que costumava conversar baixinho com eles, [...] (CARDOSO, 1967, p. 139).

A narradora fala de si, entretanto, colocando-se no lugar de alguém que fantasia, que sonha para além da vida pacata da cidade do interior, mas esse alguém não consegue transpor para o leitor a sensação de completude, de inteireza do seu eu, pelo contrário, demonstra apenas uma mudança de posição. Logo, tais efeitos combinados se deslocam, sendo facilmente citados em fragmentos que interessam ao discurso biográfico. Dá-se também uma extensa zona de recuperação. O texto autobiográfico, muitas vezes é uma tradução da primeira pessoa do texto biográfico convencional. De um lado, da zona de recuperação - a focalização, (certos elementos não são transportáveis de uma narrativa da terceira pessoa para uma narrativa da primeira); do outro, no sentido inverso, - a enunciação, (tais elementos são transportáveis ao custo de uma mudança total de efeitos).

A autobiografia na terceira pessoa nos fornece amplo terreno de pesquisa, já que por definição (por contrato) ela impõe ao leitor, pelo menos que faça implicitamente, uma operação de tradução, na qual todos os processos são

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