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Foi ontem, e é o mesmo que dizermos, foi há mil anos, o tempo não é uma corda que se possa medir nó a nó, o tempo é uma superfície obliqua e ondulante que só a memória é capaz de fazer mover e aproximar. José Saramago

Pouco importa se foi ontem ou há mil anos que o gênero memorialístico tenha surgido. O preponderante é saber que somente a memória é capaz de mover e aproximar o tempo que nos aproxima do passado, trazendo-o ao presente e direcionando-o ao futuro. Antes o leitor podia auferir a respeito da vida particular de um indivíduo. Hoje, com o aumento do interesse no projeto autobiográfico, a leitura de uma autobiografia, dentro dos contextos nos quais foi produzida, amplia os horizontes não somente da vida do autobiógrafo, como também das condições sociais, culturais e políticas que giram em torno de quem as escreve.

Paralelamente, uma leitura histórica, literária e social de uma autobiografia, além de resgatar escrituras mal interpretadas, pode representar, compreender, testemunhar e estabelecer correntes de interesses comuns, promotores de transformações educativas, políticas e sociais, contribuindo para a evolução do memorialismo como gênero.

Pela leitura da obra memorialística de Maria Helena Cardoso e a repercussão que teve na época de seu lançamento, pode-se observar o interesse que a autobiografia feminina despertou e vem despertando nos meios acadêmicos, fazendo-nos acreditar na revitalização dessas literaturas. Este trabalho se propõe assim, a descrever a relação entre autobiografia e seus gêneros irmãos, com o intuito de detectar aspectos da literatura ficcional, da construção de identidade, os aspectos psicológicos e terapêuticos, e ainda, de autoconhecimento. Em suma, estabelecer as funções e as dimensões do gênero memorialista, considerando os

processos pelos quais a memória foi recriada nos planos da subjetividade e da objetividade.

Para compreender a narrativa autobiográfica, Wander Melo Miranda, por exemplo, mostra a necessidade de “recuar no tempo e deslocar a questão do individualismo da época moderna para os seus primórdios na antiguidade...” (MIRANDA, 2009b, p. 27), e vale-se de exemplos como: Vita Antonii, de Atanásio, um dos mais antigos textos da literatura cristã, ou de Sêneca, na formação da imagem de “si” tão adequada quanto possível à revelação da identidade onde se lê uma genealogia. Para ele, o objeto principal da autobiografia é o nome próprio, o trabalho sobre esse nome e a sua assinatura. Em síntese, vale o nome do autor na capa do livro, como já afirmou Lejeune. Demonstra-se desse modo, que a autobiografia literária pretende ser ao mesmo tempo um discurso verídico e uma forma de arte. Fica evidente também a impossibilidade da narrativa focar exclusivamente o “eu” que narra, pois, esse, na volta ao passado, além de olhar para si e para os que com ele interagem, olha também para o contexto histórico- geográfico, chamando maior ou menor atenção.

2.1 Origens da palavra autobiografia

Para melhor realização deste trabalho, ao focar o tema proposto – o texto autobiográfico – deve-se retroceder à procura da origem da palavra autobiografia e de esclarecimentos que iluminarão o percurso a seguir. Até aproximadamente meio século atrás se pensava que o termo “autobiografia” era devido a Robert Southey, 1809. Entretanto, foram descobertos trabalhos autobiográficos desde 1796 ou 1797, quando James Agden trabalhava na biografia de Isaac D’Israeli. Em 1797 os críticos da literatura inglesa cunharam a expressão “autobiografia” como um “novo” gênero. Já Robert Folkenflik, em The culture of autobiography, (1993) afirma que a primeira vez que ela foi publicada em qualquer língua, foi de forma adjetivada no prefácio da edição de Ann Xearsley’s Poems, como Narrativa autobiográfica, em 1786. No entanto, não deve ser confundido com a origem da palavra autobiografia como esforço para construir uma literatura do passado ou uma tradição a respeito dos escritos, tanto das mulheres como dos homens, os quais tiveram origem no século XIX. Tais esforços iluminaram os contemporâneos, delineando as tradições da autobiografia em geral.

Sabe-se que os alemães começaram usar o referido significado um pouco mais cedo, por volta de 1779, mas o consideravam de forma pejorativa. Em 1798, Friedrich Schlegel assim o definiu:

Pure autobiographies [autobiographien] are written either by neurotics who are fascinated by their own ego, as in Rousseau’s case; or by authors of a robust artistic or adventuresome self-love, such as Benvenuto Cellini; or by born historians who regard themselves only as material for historic art; or by women who also coquette with posterity; or by pedantic minds who want to bring even the most minute things in order before they die and cannot let themselves leave the world without commentaries. [They] can also be regarded as mere plaidoyers [legal pleadings] before the public. Another great group among the autobiographers [Autobiographen] is formed by the autopseuts [self-deceivers]5 (FOLKENFLIK, 1993, p. 3).

                                                                                                                         

5   “Autobiografias   puras   são   escritas   tanto   por   neuróticos,   que   são   fascinados   por   seu   próprio   ego,   como   no  

caso  de  Rousseau;  ou  pelos  autores  de  grande  potencial  artístico  ou  amor  próprio  aventureiro,  como  Bevenuto   Cellini;   ou   pelos   historiadores   que   se   consideram   apenas   como   material   de   arte   histórica;   ou   também   por   mulheres  coquetes  com  a  posteridade;  ou  por  mentes  pedantes  que  querem  preservar  até  mesmo  as  mínimas   coisas   em   ordem   antes   de   morrer   e   não   podem   deixar   o   mundo   sem   comentários.   Eles   podem   também   ser  

Folkenflik ressaltou que a expressão autobiografia ou biografia de si apareceu de várias formas no final do século XVIII e, isoladamente, nos séculos XVII, XVIII e XIX na Inglaterra e Alemanha, sem nenhum sinal de que um tinha influência sobre o outro. Os dois termos não foram inventados, e sim, reinventados durante esse período. Na França, país mais conservador, apareceu no Dictionnaire de l’Académie Française (1836) como “biografia feita a mão”, ou “manuscrito”, mas só foi aceito e foi dicionarizado em 1842. É claro que a autobiografia já existia antes do termo ser reconhecido, “como uma doença já existe antes de ser diagnosticada”, nas palavras de Folkenflik.

O termo autobiografia é entendido literariamente em sua própria definição como a tradução das três palavras gregas: autos, bios e graphé: “história de alguém escrita por ele mesmo”. Em diversos trabalhos da crítica, antes de 1970, a autobiografia era tratada como uma variante da biografia, que mais amplamente renunciava ao ficcional em favor dos fatos baseados na história. O bios, componente da autobiografia, sinalizava uma expectativa de que o significante era normalmente público - por exemplo, quando eventos da vida de uma grande personagem eram recontados. Ou ainda, algo que caracterizasse fatos exemplares, alguém que tinha entrado ou deveria entrar para a história, que valesse a pena ser lido ou imitado. Da mesma forma que deveriam ser excluídos aqueles sem dimensão pública como: as mulheres, os negros ou aqueles de baixo status social. Bios, então, não era sinônimo de identidade, e sim, de importância de vida dentro da tradição autorizada como representativa na cultura ocidental. Autobiografia era, portanto, um gênero para memorializar aqueles que eram evidentemente ricos ou famosos: artistas de renome, escritores ou pessoas que, dentro deste conceito, faziam sentido serem autobiografados.

Felizmente, estudos mais recentes têm demonstrado o quanto são contraditórios os apelos para um sujeito universalizado e de presença sólida. Tais conceitos que enfatizam o conteúdo do “eu” central, duradouro ou eterno, têm sido desmascarados. Examinando as espécies de autobiografias escritas e discutidas nas últimas décadas verifica-se que as escritas por mulheres são as que melhor se

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                           

considerados   como   meros   articuladores   diante   do   público.   Outro   grande   grupo   dentre   os   autobiógrafos   é   formado  pelos  auto-­‐enganadores.”  (Trad.  minha).  

adéquam à complexidade e diversidade de suas práticas. E a escrita de Maria Helena Cardoso, é bom lembrar, se adéqua às práticas modernas, pois transita da realidade à ficção e vice-versa, encontrando alternativas para instaurar o seu modo de ser.

Não se sabe ao certo o momento em que as autobiografias de mulheres começaram a existir. O que se sabe, como versão da história literária, é que estudos críticos dos anos de 1980 têm assumido um argumento comum. Isto é, que os escritos das mulheres representam uma tradição distinta dos escritos dos homens, entendidos como a história da relação entre os sexos e das formas da dominação masculina; não como subgênero, mas como formas de sociabilidade, diversidade de competência e de modalidades segundo o pertencimento social, sexual, geográfico, étnico ou religioso.

Antes disso, a maioria dos estudos sobre a autobiografia excluía as considerações sobre os textos das mulheres, que por sua vez pareciam apontar para novos rumos e novas teorias sobre suas formas de autorrepresentação. Entretanto, o argumento sobre uma tradição separada precisava ser reexaminado, não só pela conotação de desvalorização do significante (o texto de mulheres), mas também porque envolvia cegueira sobre os escritos da história literária.

Nessa importante reconstrução vale considerar, em primeiro lugar, a tradição do documento espiritual, os textos de mulheres baseados na religião e nas proibições inerentes aos dogmas, ao pecado, etc; em segundo, a tradição das memórias domésticas, representadas, não por uma única coleção, mas pela publicação de textos sobre sociedades antigas (diz respeito a casamento, família, sociedade, costumes, etc).

O texto de Maria Helena Cardoso enquadra-se na segunda alternativa: memórias domésticas que relatam fatos sobre a sociedade em que viveu, família, amigos e costumes. Texto por vezes confessional, contando sua experiência de vida ou dos que a rodeavam, aproximando-se de um relato autobiográfico mais amplo ao narrar sua intimidade e a dimensão afetiva desse gesto.

Naturalmente são conhecidas autobiografias de mulheres que mal citam detalhes que identifiquem fatos íntimos de suas vidas, como é o caso de Cecília de Assis Brasil. Em sua obra, Diário de Cecília Assis Brasil, a autora está mais preocupada em informar ao pai, sempre em viagem, dos movimentos da fazenda, do que em curvar-se sobre si mesma.

Na discussão da autobiografia por Mary G. Mason e elaborada por Susan Stanford Friedman. Mason argumenta que:

that women writers delineate identity relationally, through connection to significant others, that “the self-discovery of female identity seems to acknowledge the real presence and recognition of another consciousness, and the disclosure of female self is linked to the identification of some “other”6 (WATSON, 1993, p. 69).

Dessa forma, esse reconhecimento parece permitir às mulheres escreverem abertamente a respeito de si próprias. A posição de Mason sobre a alteridade, ao contrário da autodramatização do ego pelos autobiógrafos brancos e homens, como Rousseau, é uma espécie de pano de fundo, onde as mulheres podem deixar transparecer suas atuações solitárias, e não uma possibilidade relacional de diálogo. Ao posicionar outras vozes como aspectos do relacional autobiográfico do “eu”, Mason desestabiliza as reclamações pelas separações de vidas implícitas no conceito de individualidade, e, portanto, as questões de auteridade das próprias bios.

Para Friedman, nos textos de mulheres podemos encontrar “a consciência do eu” onde o individual se envolve muito mais com os outros numa existência interdependente. Ela explora a noção do fluido e do ego permeável nos limites do descrever o sentido da identificação coletiva e o desejo ardente da nutrição materna; identificando essa comunhão como característica de muitas autobiografias de mulher, particularmente, as mais contemporâneas. Os textos que discute sugerem uma alternativa do cânone para mulheres autobiógrafas em vários trabalhos.

Torna-se mister pensar na obra de Maria Helena Cardoso, cuja “consciência do eu” é continuamente entretecida ao coletivo. A memorialista mineira insiste na

                                                                                                                         

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  que   as   escritoras   mulheres   delineiam   a   identidade   relacionalmente   pela   conexão   com   outros   significantes,   que   “a   auto-­‐descoberta   da   identidade   feminina   parece   conhecer   a   real   presença   e   reconhecimento   de   outra   consciência,  e  o  resultado  do  próprio  feminino  é  ligado  à  identificação  de  algum  “outro”.  (Trad.  minha)  

dimensão afetiva do gesto de entrelaçar sua vida à de seus familiares, vizinhos e amigos, registrando a proximidade que existia entre as pessoas de sua pequena cidade, por exemplo, quando se reuniam em torno do velho chafariz:

Ali vinham ter todos os moradores da cidade; aqueles que não tendo cisterna em casa vinham buscar água para as suas necessidades; os que, morando pelas bandas da gruta, tinham passagem forçada por ele e se detinham em conversa; os cavaleiros, fazendeiros de roças próximas, que vinham dar de beber aos animais, amarrados ali por perto, à sombra de alguma árvore; lavadeiras que, não tendo tido tempo de ir durante a semana aos “Olhos-d’Água”, lavavam a sua roupa por ali mesmo, estendendo-a para corar no mato que descia a rampa do chafariz; e, finalmente, as crianças que gostavam daquele local, do calor humano que se irradiava dele. Bastava abrir o portão dos fundos da casa de vovó e entrava-se logo em contato com a maior parte dos moradores humildes da cidade: cozinheiras, lavadeiras, tipos populares da terra: ... (CARDOSO, 1967, p. 53). Ligada à melancolia do passado que desapareceu, e pela consciência do tempo que se esvai, a escritora dá respaldo às teorias de Friedman, reescrevendo noções de auto e de autora para deslocar as bios para uma determinada e válida categoria de autobiografia. Da mesma forma que a teórica fala do modelo da individualidade aplicado às mulheres, Cardoso essencializa às mulheres o privilégio do vínculo materno, como nessa passagem em que se destaca a figura forte da mãe:

Adorava os filhos que educou sozinha, pois a profissão do marido mantendo-o quase sempre fora de casa, a assistência que lhes dava era exclusivamente material. Aos filhos homens, pequenos ainda, procurava transmitir o amor à vida pública, a admiração pelos grandes vultos da História, pregando-lhes o seu exemplo, incitando- os a se dedicarem ao bem público através do caminho da política. Lia-lhes páginas de civismo, onde era exaltado o patriotismo (CARDOSO, 1967, p. 136).

A escrita autobiográfica leva à interrogação sobre escrever a respeito da própria vivência, as razões e sentimentos que instigam o escritor a narrar sua intimidade e a dimensão afetiva desse gesto. Será ele (o gesto) ligado à melancolia em face do passado desaparecido? Será o sentimento nostálgico do tempo que se esvai e do que se perdeu?

Estas e outras perguntas surgem atreladas ainda ao antigo preconceito que limitava o acesso das mulheres à literatura, julgando as escritas de si como mais

espontâneas e menos regradas, e que a censura da memória faz com que alguns episódios sejam esquecidos, tornando-se segredos irreveláveis, ou excluídos pela proibição do dito. Ora, escrever a própria vida não é tão óbvio, principalmente para os que não são profissionais da escrita, e ainda mais para as mulheres, cujas experiências de vida foram submetidas a forças e imposições sociais, obrigando-as esconder desejos, intimidades e fantasias.

Que o diga Maria Helena Cardoso – ao passar pela angústia da insegurança quando iniciou a carreira. Incentivada a escrever pelo amigo Walmir Ayala, nunca se sentira com reais aptidões para ser uma escritora, pois seu irmão sim, este “era o verdadeiro escritor da família”:

Vivi sempre dele ser escritor, o que satisfez totalmente os meus sonhos desde a adolescência. Para mim nada mais importava, desde que Lúcio era um escritor, meu irmão. Eu não podia, não tinha a capacidade de sê-lo, mas me sentia feliz em que ele o fosse, justificasse o meu orgulho (CARDOSO, 1973, p. 112).

No dia do encontro com José Olympio teve vontade de recuar:

Sei lá, enfrentar a crítica, não deve ser agradável e por mim prefiro ficar esquecida, não fosse por Walmir e Nonô. [...] Acreditava que a minha presença não seria necessária e a idéia de comparecer a um encontro com o editor me aterra. Quem sou eu, que pretensão? Bastava que mandasse dizer sim ou não e estaria satisfeita. Não fosse a insistência de Nonô eu nunca teria procurado José Olympio, pois não me acreditava com possibilidades de ser editada por aquela Casa (CARDOSO, 1973, p. 42).

Dias mais tarde recebeu novo telefonema da editora, outro terror: “Parece mais que cometi um crime do que escrevi minhas memórias” (CARDOSO, 1973, p. 46). Enfim, José Olympio aceitou editar seu livro.

Sendo o texto de Maria Helena Cardoso caracterizado pela vocação memorialística e o jogo da escrita enquanto manifestação autobiográfica e invenção ficcional, percebe-se no mesmo: “um processo no qual os problemas do mundo vivenciado não se colocam em termos restritos de individualidade, pois, a história pessoal faz-se concomitantemente interior e exterior ao sujeito e mesmo à sua revelia” (MIRANDA, 2009b, p. 85). Tome-se como referência Por onde andou meu coração e Vida-Vida, observando-se que o primeiro pode ser visto como inventário da vida da narradora direcionado para a formação do “eu”:

Passávamos o dia brincando ao ar livre: ora os banhos de rio, ora o brinquedo de tropa que nos divertia muito. Numa espécie de bacia rasa formada pelas águas, mergulhávamos até o fundo uma peneira, retirando-a depois de alguns minutos, cheia de piabas que, sob as ordens de Fausto, retalhávamos e salgávamos, como víamos os tropeiros fazerem com a carne-seca. [...] divertindo-nos assim horas a fio, fingindo longas viagens a lugares de que tínhamos ouvido falar (CARDOSO, 1967, p. 15).

E, o segundo, como testemunho do trajeto de vida percorrido pelo irmão Lúcio Cardoso:

Nesse momento entram dois enfermeiros com uma maca, onde colocam Nonô completamente inconsciente. Louca de dor vejo-o sair (agora eu sei) pela última vez pela porta da sala; nunca mais voltaria. Olho-o em seu desalinho, ainda de pijama, a respiração ofegante. [...] Não pode ser a mesma pessoa. Nonô não podia, não pode ter morrido. Repugna dizer: Nonô morreu. Não é possível, só agora percebo que sempre o julguei imortal. [...] Se alguém diz diante de mim, “no dia do enterro do Lúcio...”, ou: “no dia da morte de Lúcio...”, tenho a impressão de que se trata de outro Lúcio, não o irmão que viveu comigo a vida toda, nos últimos anos quase como um filho (CARDOSO, 1973, p. 357).

Em ambos, a fragmentação é visível, não só pela impossibilidade da coordenação cronológica dos fatos e das lacunas vivenciais/textuais, como pela inclusão de uma terceira pessoa, desautorizando uma leitura centrada e conclusiva.

A memória, principalmente a familiar é o relato de uma história; é a forma pela qual o indivíduo se vale do seu passado e atribui a este um sentido, fundamentando- se na sua identidade, real ou ilusória. Quando a memória se deixa contaminar por outras memórias, ou pela memória/esquecimento, é como num caleidoscópio, onde os fatos, cores, objetos, sons, etc, ressurgem como magia. Maria Helena Cardoso transita da realidade à ilusão, valendo-se de sua imaginação fértil ao entrelaçar o que via ao que lia:

Da janela da sala de jantar da nossa casa não só se descortinava o movimento do chafariz, como a paisagem pobre e triste por onde se ia ter à grota, fonte de muita imaginação da minha parte. Era ali que costumava localizar a morada das fadas e duendes dos livros de estórias que lia. O seu mistério me apaixonava e o meu desejo mais ardente era descer ao seu fundo. Mas nunca consentiam: a grota, diziam, era perigosa, tinha aranhões, lagartas venenosas, enfim, bichos horríveis. Só os “meninos-homens” desobedeciam suas mães, indo lá escondidos de todos. Por mais que perguntasse, nunca ninguém foi capaz de me contentar a respeito daquele lugar misterioso que me apaixonava (CARDOSO, 1967, p. 54).

2.2 Maria Helena Cardoso desafia o esquecimento

Queria endurecer o coração, eliminar o passado, fazer com ele o que faço quando emendo um período - riscar, engrossar os riscos e transformá- los em borrões, suprimir todas as letras, não deixar

vestígios de idéias obliteradas. (Graciliano Ramos) Silviano Santiago (MIRANDA, 2009b, p. 119)

O poder regulador da palavra sobre a memória tem duas feições – lembrança e esquecimento. Como o autor se vale do esquecimento como recurso para a composição do seu texto, cabe aqui, ao se falar da memória, entrelaçá-la ao esquecimento, que depende da problemática existente entre memória e fidelidade ao passado.

A tarefa dos historiadores para estabelecer a verdade numa relação entre presente e passado pode ser comparada à preocupação literária de Maria Helena Cardoso para estabelecer a história das cidades em que viveu, dos grupos aos quais

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