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Para aplacar uma grande saudade: estudo da obra memorialística de Maria Helena Cardoso (1903-1997)

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Academic year: 2017

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MARIA INÊS DE MORAES MARRECO

PARA APLACAR UMA GRANDE SAUDADE:

Estudo da obra memorialística de Maria Helena Cardoso

(1903-1997)

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação

em Letras: Estudos Literários da Faculdade de

Letras da Universidade Federal de Minas Gerais,

como requisito parcial para obtenção do título de

Doutor em Literatura Brasileira.

Orientadora: Profª Drª Constância Lima Duarte

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Maria Inês de Moraes Marreco

Paraaplacar uma grande saudade:

estudo da obra memorialística de Maria Helena Cardoso

(1903-1997)

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade

Federal de Minas Gerais.

Profª Drª Constância Lima Duarte (Orientadora) – UFMG

Profª Drª Suely Maria de Paula e Silva Lobo – PUC Minas

Profª Drª Ruth Silviano Brandão – UFMG

Profª Drª Lyslei Nascimento - UFMG

Prof. Dr. Élcio Loureiro Cornelsen - UFMG

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AGRADECIMENTOS

Aos que contribuíram para a elaboração deste trabalho, os meus sinceros agradecimentos.

À Professora Dra. Constância Lima Duarte, orientadora e amiga, pela liberdade e pela orientação, por me oferecer oportunidades ao longo do doutorado, pelas chances de participar de congressos, colóquios e palestras, que foram importantes para meu amadurecimento intelectual.

Ás Professoras Dras. Suely Maria de Paula e Silva Lobo e Ruth Silviano Brandão, membros da banca de qualificação, pelas observações, pela clareza e sabedoria de suas exposições, quesitos de valor inestimável para a realização deste projeto.

Às minhas filhas, genros e netos, pelo amor, pelo respeito às minhas escolhas, pelo incentivo e valorização do meu trabalho.

À Mariza, minha irmã e amiga, por me acompanhar em todas as viagens que precisei fazer, pelo carinho e pelo cuidado.

Às colegas do Grupo de Pesquisa Mulheres em Letras, pela agradável convivência, tornando esta jornada mais leve, e ao mesmo tempo, produtiva.

Um agradecimento especial às amigas com quem compartilhei ideias no período de desenvolvimento desta tese: Iara Christina Silva Barroca, pelas opiniões sensatas; Maria do Rosário Alves Pereira, pelas observações sempre pertinentes; à Maria Lúcia Barbosa, pela cuidadosa leitura, pelas inteligentes sugestões e preciosos empréstimos bibliográficos; à Ana Caroline Barreto Neves, que artística e significativamente, colocou sua emoção na capa da tese.

Finalmente, ao Professor Dr. Rafael Cardoso, sobrinho neto e detentor dos direitos autorais de Maria Helena Cardoso, que me disponibilizou todo o seu acervo na Fundação Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, facilitando minhas pesquisas e possibilitando o aprimoramento do meu trabalho.

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RESUMO

Este trabalho, ao analisar a obra memorialística de Maria Helena Cardoso, procura explicar o reflexo das ramificações que o percurso da mesma pode gerar: o papel da memória no texto de caráter autobiográfico, o esquecimento, a ficção, a construção do eu autobiográfico, a identidade e a diferença. Investiga as múltiplas faces da objetividade/subjetividade, num jogo de percepções que se efetuam no campo da linguagem, esclarecendo sua importância como responsável pelas imagens que se oferecem ao pensamento que as recorda. Conceitua a tríade autor-narrador-personagem, demonstra a necessidade de identidade entre eles e considera a possibilidade de unir o autobiográfico e o ficcional, através de jogos, combinações, contratos ou pactos. Verifica a transformação ocorrida no registro da memória dos livros da escritora, que começa no formato tradicional de autobiografia, passa pelo diário mais elaborado e termina sob a forma de um falso romance. Demonstra ainda a contribuição de Maria Helena Cardoso à literatura brasileira, que faz de cada um de seus textos, presença marcante no mundo de seus leitores.

Palavras-chave: Maria Helena Cardoso; memória; ficção; autobiografia; identidade.

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ABSTRACT

This thesis, by analyzing the memorialistic work of Maria Helena Cardoso, seeks to explain the reflection of the ramifications that its route can generate: the role of memory in autobiographical texts, oblivion, fiction, the construction of the autobiographical I, identity and difference. It investigates the many faces of objectivity/subjectivity, in a game of perceptions played in the field of language, clarifying its importance as the responsible for the images which are offered to the thoughts they recall. It conceptualizes the triad author-narrator-character, demonstrating the necessity of identity between them and considering the possibility of uniting the autobiographical and fictional, through games, combinations, contracts or agreements. It analyzes the transformation occurred in the memory on Cardoso’s books, which starts in the traditional format of autobiography, goes thru a more elaborated diary, and ends in the form of a false romance. It demonstrates the contribution of Maria Helena Cardoso to Brazilian literature, which makes each one of her texts, a strong presence in the world of its readers.

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Faz muito tempo morreram quase todos os de que falo aqui. Todos que amei, que viveram comigo a minha infância, que me viram crescer, passar de menina a moça e de moça ao que sou agora. Morreram e com eles uma parte de mim mesma também morreu. Muitas vezes, à noite, quando volto sozinha para casa e percorro aqueles aposentos vazios onde ninguém me espera mais, pergunto: terão existido mesmo, ou foi apenas um sonho? Pela madrugada julgo ainda ouvir, no cimento da entrada, passos cautelosos para não me despertarem, passos a caminho da primeira missa da manhã; ou o som de vozes conhecidas que conversam à hora do café. Quem sabe aplacarei ainda esta grande saudade que não me larga, encontrando depois os que amei e que partiram antes de mim. É a minha esperança. Mas, se tudo não for, então a Vida é somente viver; e morrer, que é tudo, não é nada. Rio, 24 de maio de 1963.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 10

1 MARIA HELENA CARDOSO:VIDA E OBRA

19

1.1 Vida 20

1.2 Obra 26

Por onde andou meu coração 29

Vida-Vida 41

Sonata perdida: anotações de uma velha dama digna 49

2 O PAPEL DA MEMÓRIA NO TEXTO DE CARÁTER AUTOBIOGRÁFICO 53

2.1 Origens da palavra autobiografia 55

2.2 Maria Helena Cardoso desafia o esquecimento 62 2.3 Lembrança e saudade: fios que tecem a história de Maria

Helena Cardoso 72

2.4 Narradores memorialistas 82

2.5 Na autobiografia à brasileira: a voz de Maria Helena Cardoso 86

2.5 A força do documento humano 89

3 ARQUITETURA DO EU AUTOBIOGRÁFICO 91

3.1 Romance do eu 96

3.2 A narrativa do eu: retrato de uma voz 108

3.3 Além do eu 113

4 FICÇÃO: ARTIFÍCIO OU VEROSSIMILHANÇA: VERDADE OU MENTIRA? 116 4.1 A aventura da linguagem em Maria Helena Cardoso 120

4.2 Autoficção: uma variação autobiográfica 126

4.3 A força das personagens em Maria Helena Cardoso 136

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5 QUESTÃO DA IDENTIDADE: NOSSA E DO OUTRO 151

5.1 A confiança e a regulação afetiva 159

5.2 Identidade por todo lado: de repente? 171

5.3 Reatando o fio da meada 176

5.4 A saída de si através da música 178

5.5 Identidade e diferença 182

CONCLUSÃO 188

OBRAS DE MARIA HELENA CARDOSO 191

REFERÊNCIAS 192

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INTRODUÇÃO

Considerando que a escritura memorialística pode abarcar múltiplas dimensões e funções registram-se neste trabalho os vários percursos pelos quais o gênero autobiográfico enveredou, ao longo da história ocidental do século XX, para demonstrar que o memorialismo, fruto da criação de alguns escritores, pode revelar vieses literários e ficcionais ao lado de aspectos cognitivos, psicológicos e sociopolíticos, particularmente quando o escritor, através do relato de sua experiência, busca resgatar uma identidade pessoal, social ou nacional. Isto é, estudar o memorialismo como recurso para compreender a sociedade a partir do indivíduo e do grupo em que ele está inserido. Além de permitir entrar em contato com fatos que marcaram uma coletividade, metonimizado o indivíduo, gênero que pode ser usado também como recurso na literatura para expandir a compreensão de outros campos, como: depoimentos, diários, entrevistas, etc.

Ao conceituar a tríade “autor, narrador e personagem”, Philippe Lejeune esclarece que, para existir uma autobiografia é necessário que haja uma identidade de nome entre o autor que figura na capa do livro, o narrador do texto e a personagem da qual se fala. Dessa forma, o crítico define como “pacto autobiográfico” a relação do autor do texto com seu leitor. Ao expor sua identidade com o narrador e a personagem principal, o autobiógrafo sela o pacto com o leitor, o que é válido também para todos os gêneros da literatura de intimidade, expondo no texto sua identidade com o narrador e a personagem principal, como fez Maria Helena Cardoso.

O que se pretende neste trabalho é, pois, ver a autobiografia sair dos limites do estudo literário, da periferia, das margens, para um lugar mais próximo do centro privilegiado e tradicional ocupado pela ficção, pela poesia e pelo drama, tornando-se respeitável criticamente, não apenas um objeto “da moda”.

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que uma autobiografia tinha que oferecer, pelo menos, dados factuais sobre a própria vida do escritor – de preferência, de forma ostensiva, e, tinha que ser, no mínimo, uma biografia autoescrita. Como o número de pessoas escrevendo sobre autobiografia tem expandido, os limites do gênero têm crescido proporcionalmente, incluindo, de certa forma, escritos virtuais em estudos autobiográficos e tornando-os sujeito a interpretações. O gênero passa, então, a ter seu território demarcado, popularizado quase que exclusivamente por textos autoidentificadores.

Dentre as muitas obras memorialísticas que a literatura brasileira oferece, neste trabalho foi escolhida a obra de Maria Helena Cardoso, talvez até hoje ofuscada pela luz de seu irmão, Lúcio Cardoso. A escritora publicou: Por onde andou meu coração, em 1967, Vida, Vida, em 1973 e Sonata perdida: anotações de

uma velha dama digna, em 1979.

Os textos de Maria Helena Cardoso, aqui abordados, sugerem uma linha comum que os aproxima, tendo em vista o enfoque do que os torna semelhantes e diferentes. Têm em comum a vocação memorialística e o jogo que a caracteriza: uma manifestação autobiográfica e invenção ficcional.

Considerando, pois, o conjunto da obra é possível, através de jogos, combinações, contratos ou pactos, perceber seus dois pólos – o ficcional e o autobiográfico. Nesse sentido, Por onde andou meu coração, não é só a obra da vida da autora, mas o ponto de entrecruzamento entre Vida-Vida e Sonata perdida, unindo a memorialística e a autobiografia à ficção, inserindo-os num espaço em que o autobiográfico passa a coexistir com o ficcional e o imaginário.

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Este esforço para expandir os limites da autobiografia tem espargido opiniões críticas em duas escolas do pensamento a respeito de seus métodos permissíveis: de um lado, os críticos que continuam a insistir que autobiografia tem que empregar o biográfico – isto é, falar do histórico em vez do ficcional; do outro, aqueles que defendem o direito dos autobiógrafos se apresentarem, da forma que acharem mais apropriada e necessária. O conceito da autobiografia, obviamente, não pode ser separado da biografia, mas também não deve ser identificado como biografia de si. Porém, não se pode afirmar que essas duas posturas críticas sejam antagônicas: ambas abordam pontos de vista válidos. O que se faz necessário, nesse caso, é uma teoria ou então uma descrição de autobiografia que preserve a relação do modelo biográfico de si e respeite a tendência de crescimento para assumir a forma ficcional na era moderna. Precisamos compreender as condições dos diferentes autobiógrafos nos diferentes tempos para escreverem a respeito deles próprios de diferentes maneiras. Em outras palavras, temos que ver a autobiografia historicamente, não como textos repetidos, mas como padrões descritos por tudo que seus autores têm feito em resposta à mudança de ideias e a respeito de sua própria natureza, caminhos nos quais eles se permitem ser apreendidos e nos quais seus métodos reportam essas apreensões. Não há necessidade de grandes mudanças para evoluir uma teoria, talvez, simplesmente a adição de novas formas ao estoque existente seja significativo para um resultado positivo. Afinal, uma autobiografia não é feita de uma só vez. À medida que é escrita, pode ser modificada.

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Sabe-se também da importância da teoria para a organização de um trabalho desta natureza, entretanto, tais conceitos, mesmo fundamentais como base de sustentação da pesquisa, não devem impedir que o texto ficcional se cale ou fique envolto nas brumas da narrativa. Já que ele será o responsável pela revelação, o desvelamento e a transparência da matéria prima do trabalho aqui proposto – a obra de Maria Helena Cardoso.

Segundo Nádia Battella Gotlib, no prefácio de Corpos escritos, de Wander Melo Miranda (2009), “O discurso memorialista tem tradição firmada na literatura brasileira, sob a forma de diários, autobiografias, autorretratos. Tal esforço de representação merece que a crítica se dedique, com igual esmero, a examinar tais textos, reelaborando criticamente o substancioso percurso dessa produção” (GOTLIB, 2009, p. 13).

É o que tem acontecido. Basta verificar como o estudo de autobiografias, da forma que vem sendo realizado nas últimas décadas, tem permitido revelações que ultrapassam a vida do autor e esclarecem sobre as condições sociais, culturais, políticas e psicológicas que gravitam em torno de quem escreve, testemunhando eventos históricos, contribuindo para discutir o cânone e para revitalizar um gênero ainda considerado marginal. Como, por exemplo, no texto de Maria Helena Cardoso, é possível verificar registros das passeatas dos estudantes por ocasião da Ditadura Militar:

- Repara a quantidade de policiais, alguma coisa está acontecendo, vamos embora daqui.

- Que nada, você é medrosa, não há mais perigo. Se houve alguma coisa, já acabou. São as tais passeatas de estudantes de que os jornais falam. [...]

- É uma experiência nova, nunca assisti a uma coisa dessas. Quero ver como funcionam as bombas de gás lacrimogêneo. Vamos, não devemos perder a oportunidade (CARDOSO, 1973, p. 202-203).

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Quando um escritor se deixa transportar até o “santuário do passado” para de lá “trazer seus tesouros ao presente”, segundo palavras de Lúcia Castello Branco, outro gesto se efetua: o da linguagem, pois, é por ele que as imagens se oferecem “ao pensamento que as recorda” (CASTELLO BRANCO, 1994, p. 24). Como o passado não se conserva inteiro, e se constrói a partir de faltas e lacunas, buscar o que já se foi significa reconhecê-lo como aquilo que ainda não é, ou aquilo que ainda virá a ser. Por isso, compreende-se que o ato de lembrar não é somente voltar ao passado, mas o fundamento mesmo para a construção do presente e do futuro. Por meio dos textos memorialistas, aspectos importantes da trajetória ambiental das regiões descritas tornam-se conhecidos. Porém, se faz necessário reafirmar que esses relatos nem sempre podem ser considerados fontes “seguras”, fidedignas, confiáveis, somente porque são baseadas em fatos diretamente observados pelos narradores.

Ruth Silviano Brandão parece concordar com Lúcia Castello Branco. Para ela: “mesmo nos textos ditos de representação, um furo está presente, algo impossível de dizer, pois a linguagem não recobre o mundo. Impossível falar de completude num tecido de teias, que são as palavras que se interligam, entretecem” (BRANDÃO, 2006, p. 110). Há de se levar em conta que, as narrativas memorialísticas, como as demais fontes históricas são construções que possuem forte marca de subjetividade. São documentos perpassados por intencionalidades, relatos dependentes dos olhares de quem percorreu aqueles espaços, assim, propensos a enxergar de acordo com seu ponto de vista:

Viajávamos dias e dias através do cerrado, sob um sol abrasador, parando apenas à tardinha à beira de algum córrego, onde se armavam barracas para descansar à noite. Acendiam-se fogueiras, descarregavam-se os animais que, soltos, pastavam a erva que encontravam pelos campos. A panela com arroz novo e carne-de-sol picadinha era posta no fogo e de uma canastra mamãe retirava maravilhas, que me enchiam a boca d’água: [...] Quando se encontrava alguma cafua pela estrada, descansava-se ali mesmo, não se armando as barracas, mas isto era raro, apenas, de vez em quando, se via um rancho coberto de sapé, sem paredes dos lados, expostos aos ventos e chuva (CARDOSO, 1967, p. 58).

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alterego ou ainda cumprir uma função que, de acordo com Foucault (1995) os textos autobiográficos, na cultura greco-romana, desempenhavam: “aconselhar para prevenir fatos semelhantes”. Nesse contexto, interpreta-se como uma forma de mostrar ao outro o que deve e o que não deve ser feito. Visto sob esse prisma, um ponto interessante de ser observado (e que é muitas vezes desconsiderado), é o fato de que muitos relatos memorialistas são escritos bastante tempo depois que o autor viveu a situação descrita. O que não invalida sua função de ensinamento, se estudados com afinco e criticidade.

Se o poder regulador da palavra sobre a memória tem duas feições – lembrança e esquecimento – e não é possível guardar a totalidade dos fatos, o esquecimento significa a brecha para a atividade ficcional no campo da memória. Ou melhor, o escritor se vale dele para preencher as falhas da própria memória com sua criação, como recurso orgânico para a composição do texto, pois, no jogo de lembrar e esquecer se apropria dos feitos e os transporta para a esfera da ficção.

No caso da obra de Maria Helena Cardoso, tudo isso ocorre. É possível conhecer, dentre outros aspectos, além da vida familiar, o cotidiano de cidades do interior de Minas nas primeiras décadas do século XX, as transformações do cenário econômico e social do país, o comportamento dos jovens, das instituições culturais, religiosas e políticas. Também pela sua voz saberemos de artistas que despontaram, se afirmaram naquela época e descobriram Minas Gerais. Ao falar de si, a escritora fala também de toda uma geração de jovens que frequentava sua casa, como Walmir Ayala, Maria Alice Barroso e outros tantos intelectuais, amigos de Lúcio Cardoso. Conta fatos que despertaram sua curiosidade de menina:

Da janela da sala de entrada onde me punha, às vezes, olhava as mulheres no terreiro sob o sol, soprando o arroz pilado e acompanhava o movimento que faziam com o corpo, fascinada pelo cereal que, ao sopro, se levantava das peneiras manejadas com a maior destreza. Temia que caísse fora, mas nunca acontecia. Passavam o dia naquele trabalho e não perdiam uma peneirada sequer (CARDOSO, 1967, p. 59).

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O trajeto realizado ao decorrer deste trabalho terá como ponto de partida um espaço intitulado: “Maria Helena Cardoso: vida e obra”, no qual será feito um breve histórico da vida da memorialista: família, cidades em que morou, estudou e trabalhou e, de sua obra: Por onde andou meu coração, Vida-Vida e Sonata Perdida: anotações de uma velha dama digna.

Considera-se no segundo capítulo - “O papel da memória no texto de caráter autobiográfico” -, o percurso da escrita autobiográfica ou memorialística, sua incursão no sistema literário, privilegiando o estilo narrativo, de forma que o papel da memória reflita como se dá a escrita da memória, e como a literatura trabalha tal questão. Na busca da relação entre a autobiografia e seus gêneros irmãos: livros de memória, confissões, diários íntimos ou de viagem, etc, fala-se dos processos pelos quais a memória foi recriada nos planos da subjetividade e da objetividade. Em “Maria Helena Cardoso desafia o esquecimento”, salienta-se um fator preponderante para a composição do texto autobiográfico – o esquecimento que, ao se articular ao passado, ressalta que um texto não pode ser descrito sem as lacunas características do literário e/ou do ficcional. Em seguida, o tema que deu origem ao título desta tese: o subtítulo “Lembrança e Saudade” - não há memorialismo sem saudade. “Narradores memorialistas” também são convocados a participar como colaboradores na função de tornar a página escrita em página viva, dando forma ao vivido. Assim, “Na autobiografia à brasileira: a voz de Maria Helena Cardoso” é reconhecida como voz que se fixou no equilíbrio entre a autobiografia moral e a consideração especulativa. Acentua-se, pois, neste capítulo, “A força de um documento humano”.

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a escritura anulando a autoridade do sujeito e encarregando o texto de realizar seu desaparecimento. Além de abordar a autobiografia na primeira pessoa, apresentam-se duas outras situações: a autobiografia na terceira pessoa, que pode aparecer como a simples realização de uma figura de enunciação, e a autobiografia do narrador fictício.

No quarto capítulo, “Ficção: artifício ou verossimilhança, verdade ou mentira?” o trabalho aborda a escrita autoficcional, ressaltando a necessidade da intensificação dos estudos desse gênero, partindo do princípio de que a ficção, se mais trabalhada, pode tornar-se mais reveladora, imaginada e elaborada. É então que o texto, em “A aventura da linguagem em Maria Helena Cardoso” procura distinguir o ficcional do artificial, colocando a ficção no patamar de “necessidade” para a elaboração da escrita literária. Acrescenta que a “Autoficção como uma variação autobiográfica”, vai esclarecer como se dá a ficcionalização, a partir da figura da escritora, que não pode escrever sem organizar ou selecionar os fatos que considera estratégicos para manter o interesse do leitor. Assim, mesmo querendo dizer a verdade, o autor se escreve falso. Outra faceta relevante na escrita de Maria Helena Cardoso é “A força das suas personagens”. A autora transita entre elas, as ligadas à consciência ou ao essencial para a vida exterior, as principais e as secundárias, as complexas e as simples, com a sutileza de quem percebe cada nuance de suas vidas. Para a escritora, todas são reais, embora reconheça as diferenças existentes entre elas. Mas é em “O prazer do texto de ficção”, que Maria Helena Cardoso é sinalizada como artista, seduzindo o leitor e construindo uma história.

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todos os momentos especiais foram entrelaçados com a música. Assim, no subtítulo “A saída de si através da música”, avalia-se como a escritora registra sua identificação por essa arte, que a renova e a faz sentir a vida com mais intensidade. Finalmente, em “Identidade e diferença”, vê-se que a identidade é fabricada pela diferença, não que uma se oponha a outra, entretanto, que existe uma dependência entre elas.

Complementando o trabalho, será incluído como anexo em CD, transcrições de documentos (recortes de jornais e revistas, cartas, cartões, telegramas e convites), que foram localizados em pesquisas nos Arquivos da Fundação Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, sobre a vida e a obra de Maria Helena Cardoso.

Pressupondo-se que todo texto literário traz em si uma teorização acredita-se que, a teoria, além do seu potencial articulador como operador de compreensão do texto, é inspiradora na configuração de outros saberes. Porém, a presença das vozes teóricas não tem por objetivo embasar a leitura das obras literárias num trabalho de interpretação, no sentido de que o texto se “explica” ou se “elucida” a partir de dados e conceitos. Assim, neste trabalho pretende-se sim, que a teoria exerça seu poder operatório, reconhecendo sua habilidade formulativa e seu potencial concretizador, sua vocação propositiva imprescindível, mas, que seja garantido que a obra literária tenha primazia na condução do trabalho teórico e não o inverso.

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1 MARIA HELENA CARDOSO: VIDA E OBRA

Figura 1 - Maria Helena Cardoso

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1.1 Vida

O gênero memória existe para os homens de personalidade original, para as naturezas de forte substância humana, para os que têm realmente alguma coisa de essencial a dizer ou revelar.

Álvaro Lins

Maria Helena Cardoso tinha algo realmente essencial a dizer e a revelar, quando, através de sua obra, transmitiu suas impressões, reviveu as cidades por onde passou, recordou as figuras das sociedades às quais pertenceu, falou de amigos e parentes, descreveu ruas, paisagens e festas, tudo com minúcias, caracterizando cada uma de suas recordações com amor distinto do pieguismo, valorizando cada faceta da vida:

24 DE MAIO DE 1967. Faço hoje sessenta e quatro anos de idade. Examino os dois algarismos, o número de anos que faço e a data de hoje. Absolutamente não me sinto uma mulher dessa idade. É como se tratasse de outra pessoa, eu não. Continuo tendo quinze como quando entrei para a Escola de Farmácia, magrinha, os cabelos compridos, amarrados atrás com um laço de fita chamalote; dezesseis, dezessete, vinte, vinte e dois, vinte e quatro, vinte e seis; quando pela primeira vez me apaixonei de verdade. Meus entusiasmos, minhas paixões continuam intactas, como quando da minha juventude, apenas eu os mantenho com um pouco mais de serenidade, e minhas paixões atualmente se estendem à música, plantas, livros, objetos lindos, o mundo que amo cada vez mais e mais e que não me resigno deixar (CARDOSO, 1973, p. 179).

Esta capacidade de enfatizar o que há de belo na vida marcou a narrativa desta mineira, cujas memórias permitiram-na exibir seus sentimentos livremente, não somente ao falar de si e dos que a cercaram, como também dos seus amores, medos e fracassos de forma tão apaixonada. Maria Helena Cardoso foi memorialista que viveu, escreveu e se guiou pelos impulsos do coração:

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meia hora de alegria justifica, muitas vezes, uma vida inteira (CARDOSO, 1973, p. 10).

Maria Helena Cardoso, ficcionista, memorialista e professora, nasceu em Diamantina (MG), em 24 de maio de 1903, filha de Joaquim Lúcio Cardoso, o Quincas, um desbravador, nômade e aventureiro, e de Maria Wenceslina Cardoso, a Nhanhá, que tiveram seis filhos: Regina (Zizina), Fausto, Maria Helena (Lelena), Adauto Lúcio (Dauto), Maria de Lourdes (Dida) e Joaquim Lúcio Cardoso Filho (Nonô), ou simplesmente Lúcio Cardoso. Com um ano de idade mudou-se para Curvelo, lugar de origem de sua mãe, onde fez os primeiros estudos. Em dezembro de 1914, os Cardoso se mudaram para Belo Horizonte para que os filhos pudessem continuar a estudar. A mudança foi frutífera, pois contribuiu para que a família formasse intelectuais renomados: Adauto Cardoso, político e jurista, mais tarde Presidente do Tribunal Federal do Trabalho e Lúcio Cardoso, romancista e pintor.

Maria Helena Cardoso fez o secundário no Ginásio Mineiro, ingressando depois na Escola de Farmácia, contígua à de Medicina. Cursou Universidade numa época em que, para as mulheres, isso era um verdadeiro desafio. Formada mais por insistência do pai, do que por vontade própria, nunca exerceu a profissão. Em março de 1923 mudou-se para o Rio de Janeiro. Trabalhou no Hospital Samaritano, e quando o hospital foi vendido, passou a trabalhar no Grupo Atlântica de Seguros, onde se aposentou em 1967.

A escritora tinha sede de liberdade, ansiava pela aposentadoria, e só depois que conseguiu realizar este sonho, viajou aos Estados Unidos e à Europa. Disse em entrevista a Macksen Luiz1: “Que maravilha, aquela liberdade de beber nos cafés. Em Paris, principalmente. Na França vi uma liberdade alegre, diferente daquela que vi nos Estados Unidos, mais pesada e triste”.

Maria Helena Cardoso era simples na maneira de vestir, quase permanentemente de jeans. Vivia cercada de jovens, amiga “para o que der e vier”, nunca escondia sua idade, ao contrário a assumia com orgulho. Segundo Wilson Bueno, amigo da escritora: “Eu diria que o único orgulho de Lelena é o de que ela conseguiu o seu desejo inicial: o envelhecer com suprema dignidade. Lembre-se

                                                                                                                          1

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que atacada pelo câncer aos 60 anos, sobreviveu só porque apostou na vida” (MILLARCH, 1979, p.2).

Figura 2 - Maria Helena Cardoso

Fonte: Fundação Rui Barbosa

Era também dona da humildade própria daqueles que estão acostumados a viver em função dos outros. Certa vez, quando lançou Vida-Vida, a Condessa Pereira Carneiro, presidente do Jornal do Brasil, enviou-lhe comovidíssima carta, classificando o livro como “uma das mais tocantes obras que já lera”, inclusive convidando-a para um almoço no JB. A autora, educadamente respondeu agradecendo as palavras da Condessa, mas nunca conheceu a suntuosa sede do Jornal do Brasil, na Avenida Brasil, 500.

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O principal, entretanto, era não aparecer e agora não tenho outro remédio. O que dizer, quais as perguntas que me farão lá? Saberei conversar com desembaraço vencendo a minha incrível timidez, sem que pareça uma tola? Se aceitarem, não terei que fazer noite de autógrafos, pois me parece que não é praxe da editora? A coisa será mais simples. O livro sai, se houver necessidade de entrevistas darei todas a Walmir e ficarei livre de tudo. Se o livro agradar, tudo será assim, se não, melhor, pois o silêncio ainda é mais fácil. Por enquanto meu coração treme. Conto as horas, os minutos, como se, sentenciada à morte, esperando pelo momento da execução. Amanhã a essas horas estarei livre (CARDOSO, 1973, p. 42-43).

A autora afirmou diversas vezes ao longo da sua vida que seu irmão sim, era o escritor da família; e deixou claro que começou a escrever incentivada pelos amigos, sem a menor pretensão de se tornar famosa. Pelo contrário, tinha medo das consequências que um provável sucesso pudesse acarretar no seu cotidiano; conhecia perfeitamente, já que vivia no meio de intelectuais, o teor da hostilidade, da ironia e da depreciação que a classe literária dominante manifestava em relação à escrita feminina. Entretanto, sabia também que, se não tivesse coragem de se lançar no mundo dos escritores, enfrentando as convenções sociais, seria considerada incapaz de se descolar de seu universo.

É interessante observar a semelhança entre Maria Helena Cardoso e Zélia Gattai; ambas eram tímidas, foram incentivadas a escrever pelos amigos e familiares porque tinham facilidade para contar as histórias de família. Ambas eram parentes de escritores famosos e não se achavam à altura de uma provável comparação.

Até aos 63 anos Maria Helena Cardoso preocupou-se, conforme afirmava, com o ofício de viver, tendo como paixão a música: os românticos principalmente. Essa paixão foi compartilhada com um recém-chegado provinciano de Juiz de Fora, Murilo Mendes2. Em várias entrevistas que concedeu, salientou:

Sim, é o meu amor pela música que me guiou... são tantas as fazes, e as últimas sempre tão tristes, pois fatalmente culminam com a morte, que eu sonhei montar com esses acontecimentos uma

espécie de sonata... Allegro, Andante, Adágio, movimentos que

equilibram e atenuam o fim do sofrimento. Eu não queira que o meu depoimento ficasse sobrecarregado de tristeza, pois o fim da vida é sempre a morte, a mágoa (Correio da Manhã, nº 22.748, Ano LXVI).                                                                                                                          

2

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O fato de conviver no meio de intelectuais, proporcionado pela carreira de sucesso do irmão escritor, contribuiu para que Maria Helena Cardoso tivesse contato com vários talentos ou futuros talentos da literatura brasileira.

Figura 3 - André Seffrin, Maria Alice Barroso, Walmyr Ayala, uma sobrinha de Maria Helena, Maria Helena, Mário Carelli, uma pessoa cuja identificação não foi encontrada nos arquivos da Fundação Rui

Barbosa.

Fonte: Fundação Rui Barbosa

Entretanto, o fato da memorialista repetir que não tinha vaidade literária acena para a possibilidade de se colocar em dúvida tamanha humildade. Será mesmo que seu livro de estreia tenha sido escrito “mais como forma de vida do que como forma de arte”? Sabe-se que a escritora foi leitora apaixonada desde menina, que sempre teve o maior respeito pelo escritor e pela literatura e que não começou a escrever antes devido ao excessivo respeito que tinha pelo irmão, Lúcio Cardoso. Mas, a partir do momento em que as críticas a compararam com grandes memorialistas como Helena Morley, Maria da Glória D’Ávila, Edésia Corrêa Rabelo ou Francisco de Paula Ferreira, não teria seu ego sido massageado, afastando de si todos os receios de não se portar devidamente diante dos editores? De vencer a timidez ou não parecer tola? Infere-se, pois, que o “não aparecer” ou o “silêncio” já não fossem mais vistos como momentos de “execução”.

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1960, ganhou Valdemar Cavalcanti, (ensaio); em 1961, Autran Dourado (romance); em 1962, Carlos Drummond de Andrade (poesia); em 1963, Hermann Lima (história); em 1964, Dalton Travisan (contos); em 1965, Josué Montelo (romance); em 1966, Mário Quintana (poesia). Em 1967 – disse o Presidente da UBE, Peregrino Junior, ao Jornal do Brasil: “houve unanimidade: o prêmio teria de ser dado a Maria Helena Cardoso, cujo livro de memórias, o único publicado até agora, levantou a admiração de todos pela sua simplicidade, por estar ali não apenas em romance, mas crônica, poesia, ensaio, etc.” Ela recebeu o prêmio, no valor de NcR$ 300,00 (trezentos cruzeiros novos), pelo livro Por onde andou meu coração, cuja edição esgotou no mesmo ano do lançamento, e a Editora previa a segunda edição para os primeiros meses de 1968. O prêmio foi entregue no dia 3 de dezembro de 1967, às 17 horas, na Livraria José Olympio

Em 7 de maio de 1967, a escritora revelou para o Jornal do Comércio, em entrevista concedida a Rosa Cass, que achava graça do sucesso que seu livro estava fazendo, que devia ser a bondade dos amigos, e ainda acrescentou que não pretendia publicar mais nada: “Estou escrevendo um diário, mais pelo Nonô, mas publicá-lo, só depois da minha morte.”

No dia 23 de outubro de 1968, Maria Helena Cardoso foi laureada com o Prêmio Jabuti, na categoria Autor Revelação, junto com Maria da Glória Arreguy e Beatriz Borges Martins, que foi entregue em sessão solene na sede da Câmara Brasileira do Livro – CBL. E em 1969 recebeu o Prêmio Walmap de Literatura na Associação Brasileira de Imprensa - ABI.

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1.2 Obra

Os livros de Maria Helena Cardoso são feitos de fonte sentimental, tornando a emoção o veículo para conhecer os costumes, paisagens e seres humanos, e assinalar a utilidade de tais relatos em estado de quase inocência. Foi o que ela fez em Por onde andou meu coração e Vida-Vida. Entretanto, em Sonata perdida, a autora recontou sua história em fases diferentes, dando uma intensidade narrativa própria de romance, daí, o surgimento da autoficção, que inventa uma personalidade e uma existência literária: Sílvia não é outra senão a própria Maria Helena travestida de personagem.

Por onde andou meu coração, Vida-Vida e Sonata perdida, mais parecem documentos observados e sentidos do que, simplesmente, textos, que representam as sensibilidades do mundo da escritora. É, pois, do lugar da fonte sentimental de sua obra, que este trabalho, ora representado pela lacuna que separa cada história, ora mostrando que, apesar das diferenças existentes entre elas, existe um substrato comum que permite lê-las como recordação ou invenção, como documento da memória ou como criação, que se instala uma forma de leitura de múltiplas entradas, porém, com força, por ser simultânea e não, alternativa.

Assim, referir-se à Maria Helena Cardoso como sujeito que narra, usando o termo “Narradora”, pode afastá-la dos memorialistas consagrados - Ciro dos Anjos ou Afonso Arinos de Melo Franco -, cuja elaboração estilística é evidente. Mas, se a colocarmos no plano de memorialista espontânea, sem intenção de alterar a pureza do objeto autobiográfico, esta hipótese será afastada: “Éramos humildes, felizes. Despertávamos ao alvorecer e mal nos vestíamos corríamos para o quintal.” (CARDOSO, 1967, p. 37)

E, pensando nas palavras de Walter Benjamin, para quem:

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Assim, pode-se incluir Maria Helena Cardoso no rol daqueles que não abrem mão da naturalidade, que não dificulta seu texto, tornando sua escrita irresistivelmente sedutora.

Para Ruth Silviano Brandão:

A escrita de Maria Helena Cardoso nasce próxima ao vivido, aos amores, alegrias e tristezas, às perdas às quais ela era tão sensível. Ao medo da solidão: tudo isso perpassado por uma musicalidade sempre presente em sua vida e que ressoa em ecos, em ressonâncias que se transformam no tom da escritora (BRANDÃO, 2006, p. 95).

Maria Helena Cardoso preservou “do nada”, segundo ela, uma família que amava e amigos que foram fundamentais para manter acesa a chama do seu amor pela vida.

Sua obra pode ser classificada de “intimista ou de atmosfera” de maior importância. Ignorá-la seria segundo Brandão, “ignorar a força de uma tradição que produziu um tipo de intelectual brasileiro que é antes de tudo um leitor sofisticadíssimo” (BRANDÃO, 2004, p. 81). E Maria Helena Cardoso foi leitora sofisticada, voraz, que não se prendia somente à leitura, mas era fascinada pela pintura e, sobretudo, pela música clássica. A religião está presente nos questionamentos quanto à justiça divina. O sofrimento pela perda dos entes queridos causava-lhe tamanha revolta que, por diversas vezes, via-se reclamando com Deus. A dor e a tristeza ultrapassavam seus limites subjetivos e se entreteciam com a cultura, no campo literário e filosófico.

Em um manuscrito encontrado no arquivo pessoal de Lúcio Cardoso, a irmã escritora registra a sua preferência pela literatura que trata da interioridade do ser:

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Por onde andou meu coração

Figura 4 - Capa da primeira e última edições do livro: Por onde andou meu coração

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Figura  5  –  Capa  da  2ª  edição

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Figura  6  –  Capa  da  3ª  edição  

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Figura  7  –  Capa  da  4ª  edição  

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A história deste livro começa numa tarde de 1960 no Jardim Botânico. Walmir Ayala, na orelha da primeira edição do livro, disse: “uma tarde parecida com este livro: uma luz incorruptível filtrando-se entre verdes sombras, o ar transpassado por vôos exatos, a sensação de eternidade e paz perfeita. Pois este livro é isto tudo, como um desenho sensível e sábio da vida”.

Naquela tarde Maria Helena Cardoso, contava histórias de sua infância, as primeiras descobertas, os livros, a música, o mundo familiar povoado de mulheres místicas e heroicas e de homens aventureiros. As cidades se recompondo diante dos olhos do amigo, Pirapora, Diamantina, Curvelo, Belo Horizonte, Minas Gerais de cinquenta anos atrás, surgindo por detrás daquela palpitação de vida, com singeleza e romantismo de um tempo de memória de quem soube amar e preservar.

Então Walmir sugeriu: “- Por que é que você não escreve isto? – Não sou escritora. – Não precisa. É só escrever assim, como você conta.” Ela prometeu escrever concluindo: “Só para os amigos, para preservar do nada tudo isto que amei e que não volta mais”.

Não era para ser publicado. Passaram pelas mãos dos amigos centenas de folhas que foram se acumulando, como as mil e uma noites de um novo horizonte. Na opinião das pessoas que liam aquelas páginas o livro era um aprendizado de alegria de viver, do valor do instante que é perfeito, da sintonia com a vida, da qualidade das renúncias, um exemplo da maturidade sem mancha. Seria de esperar, de uma amiga especial, como Maria Helena Cardoso, um livro que contasse fielmente a vida. A narrativa fala também da morte, mas da morte como usina de saudade, e esta usina, fonte de uma luz na qual os mortos são vistos em toda a sua íntegra relação humana.

Por onde andou meu coração, título inspirado em um verso do livro Viagem,

de Cecília Meireles, laureado com o primeiro prêmio de Poesia da Academia Brasileira de Letras, em 1939:

Epigrama nº 1:1

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uma sonora ou silenciosa canção:

flor do espírito, desinteressada e efêmera.

Por ela, os homens te conhecerão:

por ela, os tempos versáteis saberão

que o mundo ficou mais belo, ainda que inutilmente,

quando por ele andou teu coração. 3

Com 186 pequenos capítulos, o livro inicia-se quando “o Quinteto de Brahms para clarineta, através da janela aberta da sala de música se espalha pelo jardim” (CARDOSO, 1967, p.11). Logo depois a autora fala de sua primeira saudade, descreve com minúcias uma infância alegre, apesar dos problemas e das dificuldades de que sempre teve consciência, vivida numa cidade do interior de Minas, Curvelo, na década de 1910; a adolescência em Belo Horizonte, permeada de medos naturais de uma jovem criada na roça que se vê obrigada a enfrentar a cidade grande; e, enfim, a vida adulta no Rio de Janeiro. Fala da mãe, figura marcante, rigorosa na educação dos filhos, exigente na cobrança de bons resultados nos estudos: “Mamãe, que não pensava em outra coisa senão em ter filhos instruídos, o que nunca conseguiria obter para si própria, enquanto não podia nos mandar para os colégios que sonhava, ia-se encarregando do nosso desenvolvimento intelectual” (CARDOSO, 1967, p. 141). Porém, nunca deixou de lhes dar carinho como forma de compensá-los pelo alheamento do pai. A figura do pai é recordada em duplo registro pela filha: ora bonito, inteligente, culto e generoso, ora sonhador, descontrolado financeiramente, e responsável pelos inúmeros problemas e a penúria da família. A escritora revela, inclusive, a decepção amorosa sofrida na juventude, quando Hans, a quem dedicou quase dez anos de sua vida, abandonou-a para se casar com a ex-mulher de um primo na Alemanha.

Por onde andou meu coração é antes de tudo um documento humano dos

mais expressivos na literatura brasileira. Há em suas páginas certa liberdade cronológica, que atravessa os anos e a vivência, como instantâneos de épocas diferentes. Entretanto, a juventude e a maturidade da autora se misturam, criando

                                                                                                                          3

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uma ordem; permeia sonho, fantasia e idealismo com a realidade vivida por ela, seus familiares e seus amigos.

Andréa de Paula Xavier Vilela, estudiosa da obra de Maria Helena Cardoso, considera que o fato de os relatos estarem desvinculados de uma sequência cronológica, faz “com que o livro se assemelhe, mesmo, à maneira como a memória funciona” (VILELA, 2007, p. 24). Segundo ela:

Por onde andou meu coração não se restringe ao relato de uma vida isolada; é também memória de um povo e de um tempo. Na voz de Maria Helena, a história de Curvelo, Belo Horizonte, Rio de Janeiro e tantos outros lugares por onde andou seu coração. Sua escrita nos traz ainda o retrato de uma época, seus costumes e atmosfera (VILELA, 2007, p. 24).

E por misturar sonhos, fantasias e idealismos, o livro foi considerado por Carlos Drummond de Andrade, “dos mais encantadores que já li”, por seu “cheiro de terra, de interior e de infância”. Drummond perguntou à escritora: “Como foi que você conseguiu isso: fazer um livro que não está escrito, está vivido, abrindo suas pétalas como uma flor que a natureza plantasse, longe dos jardins cultivados?” (VILELA, 2007, p. 26) Porque, ao mesmo tempo em que pinta um quadro da gente das cidades que conheceu, com seus sofrimentos, costumes, modos de falar, vestir e morar, a autora fala do ódio, da generosidade, dos dramas e da falta de perspectiva dessas mesmas pessoas; retrata nas páginas de seu livro personagens as mais variadas, das mais humildes as mais abastadas, como poetas, professoras, beatas, puritanas, loucas, lavadeiras e costureiras, e também registra os acontecimentos significativos da vida nacional que vivenciou como as revoluções de 1930 e 1932, o golpe de 1937, a Segunda Guerra Mundial e o fim da ditadura getulista de 1945.

Maria Alice Barroso, no Congresso Brasileiro de Tropicologia, em 1986, ao se referir à Maria Helena Cardoso observa que, além de dar uma dimensão de romance às suas recordações:

sua prosa desataviadamente solta acredito tenha estimulado muitas outras mulheres a escreverem suas memórias: o livro de Maria

Helena, Por onde andou meu coração, dá a falsa impressão de que

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que deveriam ter ficado restritas em termos de relato oral, quando muito, ao confessionário do padre ou ao divã do psicanalista (BARROSO, 1987, p. 199-203).

Observa-se também no livro, o registro de uma linguagem coloquial mineira de há meio século. Palavras como “inzoneiro”, (dissimulado), “tendepá” (confusão ou uma distorção do nome de famoso medicamento da época: “iodotânico”.

A complexidade do livro reside, pois, na tortuosa relação entre representação literária e experiência vivida. Ou, como afirma Wander Melo Miranda, a propósito de Santiago e Ramos, na “maneira pela qual cada texto autobiográfico busca colocar-se diante da noção de indivíduo a ele inerente que reside a sua maior ou menor criatividade, o endosso ou o desmascaramento da ilusão autobiográfica” (MIRANDA, 2009b, p. 26).

A literatura é, antes de tudo, a longa memória de todos nós, assim, deve narrar o que há de bom e ruim na humanidade e suas consequências. Desta forma é perceptível em toda a obra de Maria Helena Cardoso a presença de fatos marcantes na história, capturados não apenas pelo olhar coletivo, mas principalmente pela perspectiva individual e subjetiva da autora. Ao evocar o passado, sua narrativa, além de procurar conhecer a si própria, busca respostas para a existência humana. A autora narra a saga da família Cardoso, presentificando suas raízes nas cidades onde viveu, marcada pela esperança de dias melhores, sonhos, lutas, desejos, amores e desamores. Resgata o passado imprimindo à sua escrita uma circularidade temporal, de vai e volta, passado e presente, vivido e revivido, sem respeitar a ordem linear e organizando os fatos, que parecem surgir, de acordo com as imagens evocadas pela memória.

Em Por onde andou meu coração, Maria Helena Cardoso oferece aos seus leitores uma incursão na própria infância, juventude e maturidade, e as memórias de Belo Horizonte, do Rio de Janeiro ou de Curvelo são constantemente evocadas, de modo, às vezes, saudosista:

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Na Rua 13 morava quase todo mundo, o mundo do meu afeto (CARDOSO, 1967, p. 90).

Subíamos a Rua Timbiras, ganhando a Avenida João Pinheiro até a praça onde ficava a Escola de Direito, daí era só atravessar a Rua da Bahia e estávamos na Avenida Paraopeba, na casa da minha amiga: palacete de dois pavimentos, escadaria de mármore branco (CARDOSO, 1967, p. 280).

Os anos na Rua Paraíba, 214 marcam um período intenso na minha vida (CARDOSO, 1967, p. 95).

A Rua Visconde de Figueiredo era alegre, de ponta a ponta cheia de residências de famílias (CARDOSO, 1967, p. 360).

Que sonho, morar em Copacabana, bairro elegante, com praia linda. Sempre fora aquele o nosso desejo e agora, finalmente, ia realizar-se. Para nós, bons mineiros que éramos, só entendíamos o Rio a partir do túnel para lá. [...] Arre, até que enfim, ia morar no Rio de verdade, tomar banho de mar, e à noite passear na praia, fazer o footing, uma infinidade de coisas as quais sempre sonhara (CARDOSO, 1967, p. 404-405).

Muitos são os períodos evocados com nostalgia, principalmente, os do tempo em que a família ainda estava presente e unida. Essa nostalgia deve-se à consciência de que aquele tempo passou, e só poderá ser revivido pelas lembranças: “Foi esse o tempo de maior solidão da minha vida. Ofélia a única pessoa que poderia me ajudar, tinha-se mudado para longe e nos encontrávamos pouco. No desalento em que me achava, não tinha coragem de tentar novas amizades” (CARDOSO, 1967, p. 410).

O leitor é conduzido ao passado pela esperança, pela dúvida, pelas recordações e pelas menções às músicas. A voz narrativa questiona sua posição diante de seu tempo, de seu papel na família, de sua responsabilidade perante aos que a cercam. Angustia-se e sente-se impotente diante dos fatos sobre os quais não tem nenhum controle. Ao reconstruir o passado, a impressão que se tem é que a narradora está tentando compreender o presente. É como se fosse um pretexto para o “eu” da narrativa voltar ao passado, exercitando uma espécie de direito de repensar sua existência. Ao se referir à mãe:

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Pela autobiografia proporcionar a sensação de apaziguamento à inquietude ou angústia da personagem que envelhece e se pergunta se sua vida não foi em vão. Talvez até, quem sabe, encontrar respostas para as dúvidas existenciais, que apontem para o sentido da vida.

Para Ruth Silviano Brandão:

Por onde andou meu coração, de Maria Helena Cardoso, talvez seu

livro mais conhecido, cujo título já sugere algo móvel, como um andar pela alma alheia, e também por lugares diversos. Uma travessia, uma viagem que leva seu leitor por um espaço muito especial, que corta Minas Gerais até o Rio de Janeiro, que passa por Pirapora, Curvelo e Diamantina (BRANDÃO, 2004, p. 78).

E acrescenta: “Maria Helena, ao lado de vários outros escritores, faz parte da “intelectualidade esquecida”, por não terem se dedicado ao romance ideológico, privilegiado pela crítica literária”. E essa “viagem sentimental é também uma viagem que atravessa culturas, visões de vida e de mundo diversos” (BRANDÃO, 2004, p. 80).

Por onde andou meu coração foi apontado ainda como romance de melhor

qualidade por reter não o sensacional, mas por guardar a graça do aparentemente banal e transitório. Daí, ser comparado com a obra de Cecília Meireles, por eletrizar o cotidiano, não apresentar ressentimentos, tão comuns nas obras memorialistas. Desde o seu lançamento se constituiu num dos maiores sucessos de livraria.

O livro foi entregue a Editora José Olympio em 1964, com previsão de lançamento para o primeiro semestre de 1965, porém, a noite de autógrafos se deu no dia 25 de maio de 1967. Maria Helena Cardoso autografou sem parar das 17h30min às 21 horas. Presentes entre dezenas de pessoas: Carlos Drummond de Andrade, Eneida, João Condé, Otávio de Faria, Yonne Saldanha, Maria Alice Barroso, Marcos Konder Reis, Ministro Ribeiro Costa e Sra., Lúcio Cardoso, Walmir Ayala, o pintor chileno Mário de La Parra, general Humberto Peregrino (Diretor do Instituto Nacional do Livro), deputado Adauto Lúcio Cardoso e Olimpio de Souza Andrade.

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história da música, de Otto Maria Carpeuax, Por onde andou meu coração, de Maria

Helena Cardoso, Poesia do tempo, de Herman Lima e Os corumbás, de Amando Fontes.

Para Otto Lara Resende, o livro contém “uma riqueza de que só as genuínas obras de arte são dotadas. O encanto pungente que desprende da narrativa – vazada num ritmo e segundo uma técnica perfeitamente adequada ao assunto... é de fato criação: poesia”. Millarch, na crônica citada, referindo-se a Maria Helena Cardoso acrescenta que: “Otto Lara Resende chegou a considerá-la “melhor escritor que o irmão”, elogio que ela nunca perdoou, tendo mesmo esfriado suas relações com Otto por causa desse episódio” (MILLARCH, 1979).

Cecília Costa, crítica literária da Associação Brasileira de Imprensa, em texto intitulado “Dor e prazer ao ler Lelena Cardoso”, de 22/08/2008, declara:

A linguagem singela, mas nada tola, dotada da claridade de quem domina a escritura ou arte de transformar em palavras experiências e vivências, nos envolve logo de cara, fazendo com que fiquemos agarrados ao grosso volume até devorar todas as suas folhas, impregnando-nos de lembranças deliciosas. Sejam elas tristes ou felizes. [...] Tudo isso ela conta, com a narrativa indo e voltando, como se cada personagem ou período de sua existência fosse um motivo musical, que vai e volta, cresce, desaparece, renasce. Pois o livro, ainda por cima, não contém uma narrativa simples. É cheio de

idas e voltas, flashbacks e fowards. [...] Uma compositora, Maria

Helena, mais do que uma escritora (Resenha de Por onde andou

meu coração).

Por onde andou meu coração foi recomendado por diversas instituições

religiosas e colégios como “um grande exemplo de juventude eterna” e considerado “revelação literária” do ano de 1967. Consta dos arquivos sobre Maria Helena Cardoso as seguintes edições deste livro: Pela Editora José Olympio, 1967 (458 páginas, prefácio de Otávio de Faria, orelha de Walmir Ayala e capa de Gian Calvi), 1968 (391 páginas e capa de Lúcio Cardoso), e 1974 (391 páginas). Pela Editora Nova Fronteira, 1984 (537 páginas), pela Editora Ediouro, 1990 (332 páginas) e pela Editora Record, 2007 (574 páginas).

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digna), o primeiro livro, Por onde andou meu coração, teria inspirado Paulinho da

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Figura  8  –  Vida-­‐Vida  

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Vida-Vida

Vivida

curtida

filtrada

na página viva.

Que música,

mais penetrante, mais límpida

que a do passado

reiluminado no instante

da palavra escrita?

Vida-Vida

De Maria Helena, de Lúcio

no espiral, no cruel

de um memorial

de puro amor.

Carlos Drummond de Andrade

Vida-Vida, escrito sob a forma de um diário, cujas datas foram suprimidas,

consiste num relato doloroso e sensível do período em que a autora dedicou-se a cuidar do irmão hemiplégico direito e disártrico, além de afásico.

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caminhos do Bem e do Mal” (Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, em junho de 1973). Clarice pede ainda que ela fale “das casmurrices e teimosia do irmão, a resistência em se cuidar diante da ameaça do derrame, suas manias e vícios, e, sobretudo, o grande amor que os unia, o desespero entremeado de esperança de cura, que perdurou de maio de 1962 a setembro de 1968, quando Lúcio morreu”.

E Maria Helena Cardoso assim o fez: narrou com detalhes a doença do irmão, sua agonia em não conseguir falar e escrever, a dificuldade para se comunicar, a aflição de não se fazer entender, a tristeza, a depressão e a forma como passou, então, a se expressar por meio da pintura, feita apenas com a mão esquerda, pois a direita estava comprometida pela doença.

“Noite horrível. Nunca mais ela sairá da minha memória, noite que mudou completamente as nossas vidas. Nunca mais esquecerei essa data: 7 de dezembro de 1962” (CARDOSO, 1973, p. 81). Assim começaria o calvário de Maria Helena Cardoso. Lúcio Cardoso em pleno vigor artístico sofre um grave acidente vascular cerebral (AVC). Depois de lutar pela sobrevivência, após dias e dias de penúria, ele recebe alta, e pode voltar para casa. Entretanto, sua casa daí em diante seria a casa da irmã, que cuidaria dele até seu último instante de vida.

O livro contém o relato das lembranças desta dolorosa convivência, além das reflexões sobre os anseios com relação à solidão e à morte – temas recorrentes na narrativa, intercalados com momentos introspectivos em que a autora questiona crenças, passeios, amizades, etc. A luta contra a degeneração física, as angústias e os medos do irmão, de certa forma conduziram Maria Helena Cardoso a um período de afastamento da realidade. Mesmo assim, embora retratadas as impressões da irmã memorialista que transcendem a dimensão do pessoal, a autora não deixa de apresentar o que se passa em volta, e aborda, de maneira crítica, a história sócio-política da conturbada década de 60:

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Em Vida-Vida “conseguiu pegar com seus dedos delicados as asas de uma borboleta” (BARROSO, 1979, p. 6), conforme Clarice Lispector lhe havia pedido.

 

Figura  9  –  Maria  Helena  Cardoso  e  Lúcio  Cardoso

Fonte: Fundação Rui Barbosa

Embora a morte seja o fio condutor deste trabalho, à temática sombria a escritora contrapõe outra face: a da vida e do prazer de vivê-la nos menores detalhes, cultivando os amigos, e admirando as flores, o céu, o vento e, sobretudo, a música clássica. O título é formado pelos subtítulos dados às duas partes do livro. A primeira, caótica, em que Maria Helena Cardoso revela diferentes momentos permeados por “saltos”, ou “desvios do olhar do pensamento”, que Eliane Zagury tentou explicar como sendo “a necessidade de [o memorialista] fincar marcos externos onde segurar-se – bóias flutuantes a fazer de pique no seu a braços com o inconstante mar de lembrança, sob o império ora da tormenta, ora da calmaria” (ZAGURY, 1982, p. 18).

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prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência quando focaliza especialmente sua história individual, em particular de sua personalidade” (LEJEUNE, 2008, p. 49). E, ao verificarmos que o livro é entretecido por elementos que se enquadram na narração retrospectiva em prosa, acrescentamos ao seu discurso a hipótese de um livro de memórias, já que transcende a dimensão do exclusivamente pessoal, atendendo dessa forma, ao conceito do gênero memorialista. Entretanto, neste caso, Maria Helena Cardoso parece querer esvaziar-se, esgotar a dor que a acompanhou desde a doença e a morte do irmão, e, ao mesmo tempo reter o tempo que vivera com ele. São suas palavras:

Se eu pudesse ter agarrado sua figura de vivo, andando na rua

descalço, de short de brim branco, do seu para o meu apartamento,

virando a esquina rápido, saltando o muro que dividia os dois edifícios, tomando café na cozinha, entrando em casa acompanhado de amigos, brigando comigo, abrindo com a espátula páginas e páginas de livros que vinha de comprar, debruçado à janela do seu apartamento, as mangas da camisa arregaçadas, o peito à mostra, olhando a lagoa, mais tarde no período longo de doente, que hoje sei curto, ensaiando os primeiros passos dentro do quarto, [...] CARDOSO, 1973, p. 5).

A escrita fragmentária em Vida-Vida é a de quem busca reorganizar a si próprio. No início, Lúcio, já morto, é lembrança recente, impulsionada pelo tempo subjetivo da irmã-escritora. “Foi ontem que ele morreu, foi há tanto tempo. Na parede, o seu retrato de vivo já começava a ser retrato de morto, longe, cada vez mais longe” (CARDOSO, 1973, p. 5). Em seguida, recua no tempo para antes da doença, para a juventude, a infância, e novamente encontra a morte. Por vezes, a escritora parece revoltada, ao dizer: “Quero a minha vida antiga, a vida em que ninguém precisava de mim, em que eu era só. Quero a minha vida de antigamente em que não sofria assim” (CARDOSO, 1973, p. 201). Talvez caiba aqui uma reflexão: ao reclamar tempo para viver a própria vida, estaria ela tentando comover ou sensibilizar o leitor para seu desprendimento? Estaria, através de uma confissão, buscando absolvição, ou querendo apaziguar a si mesma? Ou estaria acolhendo sua solidão com sentimento dúbio, já que não precisava cuidar dos pais e irmãos, e sua vida se tornara vazia: “O vazio da minha liberdade total” (CARDOSO, 1973, p.8).

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temporal ou a conexão dos assuntos, numa espécie de diário não datado. Os gêneros biografia e autobiografia se cruzam na medida em que há um entrelaçamento das vidas da narradora e do irmão.

Em Vida-Vida, a autora se detém com maior profundidade na vida de Lúcio Cardoso: sua doença, a luta pela recuperação, a morte: “Mais um dia de depressão para Nonô que, completamente lúcido, não acredita na sua recuperação” (CARDOSO, 1973, p. 247), “Nonô aceita tudo, a doença como a dor moral, tudo com a maior humildade, resignação quase de um santo, diria mesmo até com uma alegria muitas vezes” (CARDOSO, 1973, p. 249). O tema da morte está sempre presente, tanto a dela quanto a dos outros, que, de certa forma, significava a sua própria: “É estranho pensar que tenho de morrer um dia. Por quê? Qual a razão de tamanha injustiça? Por que nascer para morrer?” (CARDOSO, 1973, p. 18); a morte que ganha espaço e se aproxima com o passar do tempo; a morte, crescente presença obsessiva: “Não quero pensar nem falar na morte. Entretanto, este pensamento não me deixa um instante sequer” (CARDOSO, 1973, p. 20). A narração gira em torno do viver e do morrer dos que a rodearam e das histórias desses entes queridos: “Não me habituo à morte como fim. Fim por quê e para quê? (CARDOSO, 1973, p. 56)4.

Num relato dos seis difíceis anos, de 1962 a 1968, Maria Helena Cardoso, ao falar de Lúcio, mostra-se dona de uma lealdade absoluta diante do sofrimento do irmão, revela desprendimento e desmedido amor, embora, às vezes, seja tomada pela revolta, não só por achar uma injustiça o que lhe acontecera, mas também por se sentir roubada: “Mais uma vez penso na liberdade. Não tenho mais a minha vida, vivo a dele, a quem amo demais para abandonar e seguir o meu caminho. E depois, o meu caminho é ele, a sua dor, o aniquilamento das suas esperanças” (CARDOSO, 1973, p. 289). Não tinha outra opção, aquela era a sua missão, não teria forças para suportar, mais uma vez, o peso do remorso. Talvez, a obrigação que sentia em relação aos cuidados com o irmão fosse calcada numa culpa antiga, época da doença de sua mãe:

Sofria pelo que a fazia sofrer, gostava imensamente dela, mas não tinha coragem de romper com meus novos hábitos para satisfazê-la.                                                                                                                          

4

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[...] Surda às suas recriminações, cega à sua tristeza, continuava procurando não me lembrar de que a atormentava. [...] Morria de pena daquela angústia que aumentava dia a dia, mas não sacrificava o meu modo de viver, permitindo-lhe uma vida mais calma, de acordo com a sua idade avançada. Isso não, a mim também me tinha atacado uma doença da qual não conseguia curar-me: o egoísmo (CARDOSO, 1967, p. 453-454).

A narrativa além de sugerir um mea culpa parece buscar a certeza de que um dia suportaria a violência daquela realidade, e superaria o medo da ausência tão dolorosa: “com medo de perder, busco sempre nestas páginas que escrevi do tempo de antes, de alegria, do de depois, do sofrimento, ao longo e depois desses anos que procuro cada vez mais, para não perder aquele que perdi e aquela que fui e que começa a deixar de ser, antes e depois” (CARDOSO, 1973, p. 5).

Numa escrita fragmentada e caótica, Maria Helena transita por tempos e lugares, infância, juventude, velhice – um emaranhado de estações da vida e rotas que expõem a intensidade de emoções, caracterizando o texto. A autora se vale da descontinuidade para representar a fragmentação da memória, passados distantes e recentes se cruzam com frequência. Mas esse tipo de escrita em Vida-Vida parece procurar uma reorganização de si. Além da lembrança recente ao irmão morto, há o desejo de superar a dor, impulsionando o tempo da narradora: “Se eu pudesse ter agarrado sua figura de vivo, andando na rua descalço, de short de brim branco, do seu para o meu apartamento, virando a esquina rápido...” (CARDOSO, 1973, p. 5). E, como se não bastasse tamanha luta pela sobrevivência, a vida lhe reservara outras angústias: um câncer, “A sentença”, como ela o denominou. A própria doença fez aflorar novas manifestações no seu já fragilizado roteiro de vida – uma introspecção que se transformou em estranheza, ao sentir-se ameaçada:

O canto do melro, ora perto, ora longe, invade o jardim cheio de sol. Tudo isto foi ontem. Foi ontem que eu sofri, ontem que era eu e agora já não sei mais quem sou. Miro minhas mãos pálidas que seguram a xícara de leite e penso: “cancerosa”. Esquisito, é a mim mesma que se aplica esta expressão infamante? Repito de novo para ver como soa: “cancerosa”, comparando-a agora a outro nome que ouvi muitas vezes na infância, da boca da minha avó, e que tinha o dom de me infundir o maior pavor: “tuberculose”. Sim, eram da mesma família sinistra, com o mesmo significado de morte, somente que a segunda já há tempos esvaziou-se desse sentido de terror (CARDOSO, 1973 p. 315).

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positivo - que sua sensibilidade não tinha se esvaído. A narração de Vida-Vida é entretecida por adágios, quartetos, quintetos, sonatas; e por peças de diferentes compositores: Mozart, Brahms, Beethoven, Schumann (o seu preferido), Schubert. Para Maria Helena Cardoso, a música não era só um passatempo, pois tinha a magnitude de transportar sua alma a outras dimensões, libertando-a das opressões e dos sofrimentos terrestres. Em suas palavras, era a condutora de sua vida: “E me dou conta de que uma grande parte de minha vida, se não toda, pelo menos a maior, pode ser medida em música” (CARDOSO, 1973, p. 168).

A intensidade dessa medida em música, a autora usava também para a natureza, sempre comparada a “sinfonias” verdes, nas quais flamboyants, fícus e outras flores tinham o poder de transformar seus dias cinzas em luminosos e azuis, introjetando-lhe serenidade e renovação: “Por que sofrer por pouco, por que nos torturar, quando o mundo é lindo, a natureza inteira nos espera para nos oferecer as alegrias mais puras? [...] O que desejar mais? Somente respirar, beber tudo aquilo, ...” (CARDOSO, 1973, p. 177). O valor dado às coisas mais simples, talvez tenha sido fator preponderante para dificultar a autora lidar ou conviver com a morte. Sentia que a idade tinha lhe presenteado com o comedimento, com o contentar-se com a música, a natureza e os livros, outra de suas grandes paixões.

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Figura  10  –  Sonata  perdida:  anotações  de  uma  velha  dama  digna

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Figura 1 - Maria Helena Cardoso
Figura 2 - Maria Helena Cardoso
Figura 3 - André Seffrin, Maria Alice Barroso, Walmyr Ayala, uma sobrinha de Maria Helena, Maria  Helena, Mário Carelli, uma pessoa cuja identificação não foi encontrada nos arquivos da Fundação Rui
Figura 4 - Capa da primeira e última edições do livro: Por onde andou meu coração
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