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5 A QUESTÃO DA IDENTIDADE: NOSSA E DO OUTRO

5.4 A saída de si através da música

Desde o século XIX, com o sucesso do romance popular, e da segunda metade do século XX, com a generalização da midiatização e da sociedade do espetáculo, que a identificação com os heróis, personagens da ficção romanesca ou cinematográfica, estrelas do showbiz ou mesmo ídolos da música clássica ou popular, não parou de crescer.

Pela magia desta identificação o ego experimenta uma saída de si mesmo habitual, com a sensação paradoxal de uma intensidade existencial mais forte. E é pela magia da música que Maria Helena Cardoso relata sua identificação não só pela arte em si, como também com o irmão:

Nesse tempo de papai doente, eu e N, passávamos pelo período de grande entusiasmo pela Música, não nos lembrando da possibilidade de alguém morrer em nossa casa. Isto não nos aconteceria, só daí a muitos anos. N. tinha comprado uma vitrola de segunda mão e vivíamos preocupados com música. Tínhamos começado a nos iniciar nos grandes clássicos: Mozart, Beethoven e dia e noite a vitrola tocava, concertos e mais concertos e nós discutindo, falando daquilo (CARDOSO, 1967, p. 400).

Paradoxal sim, porque o ego conserva uma consciência clara da distância que o separa da sua verdadeira vida e controla seu devaneio identitário para que não o leve para muito longe da realidade. Então, este ego se desdobra entre um novo si mesmo - um que ocupa o lugar que cristaliza a identidade existencial e a faz vibrar de emoção e o velho si mesmo, a verdadeira vida, que parecia esquecida sob o enlevo da música mas, que não estava perdida:

Estávamos completamente apaixonados, não nos cansando de ouvir aquela torrente de sons românticos que nos embalavam a alma. Ao Concerto nº 1, de Chopin, sucediam os de Mozart nºs 20, 21, 23, 24, 26 e 27, o Imperador, de Beethoven, os de nºs 1, 2 e 3 e assim passávamos dias e dias por conta exclusivamente de música e mais música, esquecidos de tudo e de todos. Não havia nada que nos detivesse naquela sede, muito menos a morte, naquela época recuada e irreal para nós (CARDOSO, 1967, p. 401).

As personagens vão e voltam da fantasia à realidade. Não só porque a verdadeira vida não pode ser apagada, mas também porque a identificação não

pode nunca ser levada demasiadamente longe. Na época em que a narradora registrou em seu livro esta paixão dos irmãos pela música, o pai estava gravemente enfermo e mesmo, tomados pelo encantamento da arte, tinham ambos a consciência da gravidade da situação familiar. Desta maneira, a identidade não estava nem de um lado nem do outro, estava relativamente abstrata e indefinida (mas, muito sensível) no movimento de saída de si mesmo.

Para lá da puerilidade frívola de certos comportamentos compreende-se o processo identitário acionado graças à identificação com o universo musical e as sensações por ele produzidas. O apaixonado, ao conservar a consciência da realidade contenta-se com os momentos secretos da identificação. E mesmo que esta se choque com algum obstáculo, porque o “eu” não é o “outro”, e o apaixonado pode estar condenado a viver devaneios, paradoxalmente, esta agitação pode produzir alguma coisa de positivo: ela pode reorientar sua trajetória biográfica. Ou ainda instalar na vida da pessoa fragmentos de um novo tipo de socialização. Foi o caso da narradora:

O tempo de paixão pelos Rasumovsky, o quarteto da harpa e mais tarde por todos os quartetos de Beethoven. Tempo de loucura, de amor, de beleza. Minha sala, meu salão, como diziam meus amigos, era muito frequentado e Marcos passou a chamá-lo o Salão da Princesa Rasumovsky e a mim de Princesa. [...] E eu me sentia então uma das personagens de Proust, uma princesa de verdade, princesa de música em meus domínios (CARDOSO, 1973, p. 172). Esta sala ou salão muitas vezes invadiram sua existência a ponto de ser repreendida pelo pai: “minha filha, abaixe a vitrola, está muito alto” (CARDOSO, 1973, p. 168), ou pela mãe: “- Helena, pára esta vitrola, não agüento mais. Eu gosto, mas tudo tem sua hora, você toca o dia todo, é de cansar” (CARDOSO, 1973, p. 169). Neste caso o apaixonado tem que gerir duas verdadeiras vidas: a sua paixão, concretizada em espaços e momentos particulares e a socialização familiar estabelecida, entre as quais se desloca em pensamento e ação.

Nas palavras de Antony Giddens: “Uma pessoa pode utilizar a diversidade distinta, que incorpora completamente elementos de diferentes ordens numa narração integrada” (GIDDENS, 1991, p. 188). Com base nesse conceito infere-se que a narradora usa essa estratégia para se sentir à vontade numa variedade de contextos. Esta inferência caracteriza a história de Maria Helena Cardoso,

remetendo para a lógica identitária. A representação da identidade torna-se biográfica e narrativa, a história de vida ocupa um lugar central.

Ao criar sua identidade produzindo uma saída de si mesma através da música, a narradora se renova e se sente viver com mais intensidade: “Ouvi os quartetos 130 e 135 de Beethoven, um quinteto de Schumann e o quarteto op. 18. Só a música me dá a serenidade de que preciso em certos momentos” (CARDOSO, 1973, p. 11). Entretanto, o inventar-se como sujeito pode ser perigoso, levando o indivíduo até a aprofundar-se num vazio interior.

E para que isto não aconteça o melhor é ser autentico. Buscar nas heranças antigas o tempo em que a sociedade conferia a cada um o sentimento de si mesmo e da vida, defendendo-se da dominação e das agressões desestabilizadoras da modernidade. De certa forma, uma defesa contra a generalização da competição interindividual, uma recusa a entrar no jogo, o que implica a recusa do trabalho identitário. Ora, se nos negamos a construir novos projetos ou a sonhar diferente, agarrando-nos à nossa realidade de ser, resistindo à arte de viver, se não nos adaptamos ao que temos e ao que somos, afastamos de nós as possibilidades de felicidade e calor humano.

Neste sentido Maria Helena Cardoso não resistiu e apesar do sofrimento que a vida lhe impunha com a doença do irmão, se adaptou à situação para não afastar de si as possibilidades de felicidade e de receber o calor humano que tanto precisava:

É sempre da mesma beleza o quarteto para piano de Schumann. Por mais que o ouça não consigo me cansar: é sempre a mesma emoção da primeira vez. São notas pungentes, arrancadas de um coração atormentado. Sinto os românticos. E toda uma época que não existe mais e da qual vivi um pedaço bem grande. Schubert, Schumann, Brahms (CARDOSO, 1973, p. 107).

Se a identidade é um processo novo, que consiste em sair de si mesmo pela emoção, para se inventar diferente, a escritora, pela música, sai de si mesma, divaga e se reinventa, tenta mudar seu caminho, enveredando por vias nem sempre traçadas previamente:

Silêncio em tudo. Apanho o quarteto de Beethoven nº 10 e ponho a vitrola a tocar. A música nobre e bela começa: a sala, o quarto, o corredor, a casa toda vibra. Como numa mágica os aposentos se povoam e desfilam ante os olhos da minha lembrança sombras de seres queridos, que viveram ali antes, muito antes, em dias de alegria, festas de aniversário, natais antigos: mamãe, Nonô, amigos queridos, alguns desaparecidos no tempo, outros ainda presentes na amizade, tudo volta, rodando, rodando. E vou pensando enquanto a música toca e o desfile prossegue. [...] longos e longos anos se contam em música. [...] a época dos concertos de Beethoven, de Mozart, de Chopin, a difícil descoberta de Brahms, a alegria da aquisição de Schumann e Schubert, as discussões a propósito de Bach e Vivaldi. E em tudo Nonô, Nonô, rodando, rodando (CARDOSO, 1973, p. 168).

Mas a autora deixa claro que inventar-se não é simples, é mais confortável enroscar-se no seu pequeno mundo e ser somente o que ela é para definir sua identidade. É mais confortável sonhar, ficando simplesmente frente-a-frente consigo mesma, em busca de uma serenidade perfeita. Instrumentos diversos podem ser utilizados para construir este bem-estar momentâneo à margem do mundo agitado e do tempo. E Maria Helena Cardoso escolhe a música como sabedoria harmônica para a construção desta identidade:

Muitos anos, muitos quartetos, quintetos, trios, sonatas, concertos de câmara, missas, octetos de Beethoven, de Mozart, de Haydn, de Brahms, Häendel, Vivaldi, Schumann, Teleman, Schubert, cantatas de Bach e Buxtehude, muitos e muitos, alemães, italianos, franceses, ingleses, russos, brasileiros, toda a história da música do mundo, do amor, da vida (CARDOSO, 1973, p. 175).

5.5 Identidade e diferença

As identidades são fabricadas pela diferença, tanto pelos sistemas simbólicos como pela exclusão social. A identidade não é o oposto da diferença, mas depende dela: nós/eles, eu/outro, e é por meio da organização e ordenação das coisas de acordo com sistemas classificatórios que o significado é produzido. Ou seja, sem símbolos os sentimentos sociais seriam precários.

A diferença é o que separa uma identidade da outra, estabelecendo distinções, muitas vezes, na forma de oposições, como vemos no relacionamento de Maria Helena Cardoso e Hans:

Tinha paixão por ele, mas os mundos nossos eram diferentes. Se conversávamos, era um monólogo em que o outro ouvia somente. Não só não partilhávamos dos mesmos gostos, mas ainda eu me desesperava por não conseguir fazê-lo vibrar pelo que me encantava. Se lia um livro que achava bonito, via um filme que me agradava, o meu desejo era falar daquilo com ele, sentir que participava da minha emoção. Mas, aí, isso não acontecia nunca. Por outro lado, também não me interessava pelo mundo dele: os negócios, os seus colegas de trabalho, a sua pátria distante, o grande povo de que descendia e do qual falava com orgulho que me desagradava, que me parecia desmedido. Quem não é alemão, pensava com amargura, não é gente para ele (CARDOSO 1967, p. 188).

Cada um tinha sua forma distinta de classificar o mundo, faltavam-lhes meios para que dessem sentido ao seu mundo social, para que construíssem significados. Ora, se entre os membros de uma sociedade, o grau de consenso para manter a ordem social já é importante, entre um casal, tal consenso é fundamental para que o equilíbrio da relação seja ideal. Esse sistema partilhado de significação é o que poderíamos chamar de “cultura”.

Nas palavras de Mary Douglas, citada por Kathryn Woodward:

... a cultura, no sentido dos valores públicos, padronizados, de uma comunidade, serve de intermediação para a experiência dos indivíduos. Ela fornece, antecipadamente, algumas categorias básicas, um padrão positivo, pelo qual as ideias e os valores são higienicamente ordenados. E, sobretudo, ela tem autoridade, uma

vez que cada um é induzido a concordar por causa da concordância dos outros (DOUGLAS, 2013, p. 42).

Entre a autora e o namorado era patente a diferença de cultura, a conversa era um monólogo, os gostos opostos: livros, filmes, negócios, amigos, trabalho, e, principalmente, o “grande” povo de que descendia. E ela enfrentava ainda a oposição da mãe, para quem era uma inconveniência manter um namoro daqueles, sem solução: “Devia deixar aquele estrangeiro, diferente de mim em tudo e por tudo e que, mesmo disposto a casar, não me convinha de modo algum” (CARDOSO, 1967, p. 186).

Hans era um “estrangeiro”, o que já o excluía da sociedade convencional a qual a memorialista pertencia. Logo, dono de uma identidade associada com a transgressão, vinculada ao perigo, de certa forma, marginalizada, principalmente se relacionada à identidade da namorada, habitante local, sugerindo a máxima de uma sociedade ser produzida em relação à outra.

Parece ser fácil definir uma identidade: sou brasileira, sou alemão, sou homem, sou mulher, etc. Uma característica independe da outra, cada uma delas é um fato autônomo, a identidade é autossuficiente e a diferença é concebida como entidade independente. Em oposição à identidade a diferença é aquilo que o outro é: ele é alemão, ela é brasileira e nessa perspectiva concebida como autorreferência. Porém, ambas têm uma relação de estrita dependência. Se todas as pessoas partilhassem a mesma identidade as afirmações identitárias não fariam sentido.

Em geral, consideramos a diferença como produto derivado da identidade, ambas podem ser vistas como mutuamente determinadas. E mais, poderíamos pensar que a diferença vem em primeiro lugar. Considerando identidade e diferença como criações sociais e culturais concluímos que elas são o resultado de atos de criação linguística - não são coisas, não são essências, não são elementos da natureza. E sendo criação linguística, significa dizer que elas são criadas por meio de atos de linguagem.

Também como ato de linguagem existe uma sobreposição entre os termos identidade e subjetividade. A subjetividade sugere a compreensão que temos sobre o nosso “eu”, envolvendo pensamentos e emoções conscientes e inconscientes que

nos constituem, que nos levam ao conhecimento de “quem somos nós”. Mas, vivemos nossa subjetividade num contexto social no qual, linguagem e cultura dão significado à experiência que temos de nós mesmos e na qual adotamos uma identidade. Construímo-nos pelo discurso e por dele constituímos nossa identidade.

A subjetividade tanto pode ser racional como irracional. Gostaríamos de ser pessoas de cabeça fria, agentes racionais, mas estamos sujeitos a perder o controle. Para explorar algumas ideias sobre subjetividade e objetividade, cito um fragmento de Por onde andou meu coração, no qual Maria Helena Cardoso fala de uma festa junina para a qual foi convidada. O traje era à caipira e ela não tinha dinheiro suficiente para comprar uma roupa adequada. Teve que improvisar com o pouco que a mãe pudera arranjar. Ela mesma costurou uma saia de chita estampada, franzida e com bolso como usavam as caipiras das roças vizinha de Curvelo:

Antes de sair me olhei ao espelho da penteadeira e me achei muito bem. Estava mais gorda com o regime alimentar que fizera a conselho médico, chegando quase a ser bonita. As argolas douradas iam a matar com meus olhos e cabelos negros soltos. Mais era uma “gitana” que caipira. Fiz sucesso. Requestada por grande número de rapazes desde que pus os pés na sala, dancei a noite toda sem parar, o que nunca me acontecera antes, nem mesmo nas festas em que tinha me divertido. Ouvi os comentários os mais lisonjeiros e, nessa noite, cheguei a me sentir uma mulher bela e atraente, a quem os homens procuravam. Passava dos braços de um par para outro, na maior felicidade. Tinha chegado o meu dia, enfim. Foi uma noite de triunfo, na qual falei por muito tempo, com enorme saudade. Aquele sucesso não mais se repetiu (CARDOSO, 1967, p. 166). A narradora explora seus próprios sentimentos em relação ao que achava de si: “me achei muito bem”. Esse fragmento está escrito na voz de uma mulher que queria fazer sucesso na festa e que se expressava de acordo com os discursos da moda, que são apresentados como parte de pressupostos culturais partilhados, em particular sobre o que se espera de uma moça de sua época. O texto descreve sua aparência física, “estava mais gorda”, “chegando quase a ser bonita”, e fala dos adereços que usava, a fim de se apresentar sob o ângulo mais favorável possível, considerando-se suas ansiedades sobre não ser vista como o tipo certo para a ocasião. Existe aqui o reconhecimento sobre a existência de uma identidade pueril, vaidosa.

Que sentimentos essa moça traz para o discurso sobre as convenções da sociedade? Que posição identitária ela quer assumir? Outras identidades estão envolvidas? Quais as identidades estão em conflito? Como elas são negociadas? Quais as contradições ente a subjetividade e a identidade apresentadas pela autora?

O texto ilustra diferentes identidades, mas fundamentalmente, a da moça do interior que, apesar de morar na capital e sentir-se bem “quase bonita”, queria estar à altura das outras convidadas. Apresentar-se bem no contexto em que vivia, sem sentir-se diferente ou caipira nata. Embora consciente do conflito entre a interiorana e pobre e a moça da cidade, desejava ser feliz naquele dia: “Tinha chegado o meu dia, enfim.”

O final feliz pode ter sido uma estratégia da narradora como licença poética, mas também sugere que, encontrar uma identidade pode ser um meio de resolver um conflito psíquico, embora saibamos que precisamos compreender os processos que asseguram o investimento do sujeito em sua identidade.

Na linguagem do senso comum a identificação é construída a partir do reconhecimento de alguma origem ou característica semelhante a outras pessoas ou a partir de um mesmo ideal. É em cima dessa fundação que ocorre o natural fechamento que forma a base da solidariedade e da fidelidade do grupo em questão. Para Stuart Hall:

A identificação é, pois, um processo de articulação, uma suturação, uma sobredeterminação, e não uma subsunção. Há sempre “demasiado” ou “muito pouco” – uma sobredeterminação ou uma falta, mas nunca um ajuste completo, uma totalidade. Como todas as práticas de significação, ela está sujeita ao “jogo” da diffèrance. Ela obedece à lógica do mais-que-um. E uma vez que, como num processo, a identificação opera por meio da diffèrance, ela envolve um trabalho discursivo, o fechamento e a marcação de fronteiras simbólicas, a produção de “efeitos de fronteiras”. Para consolidar o processo, ela requer aquilo que é deixado de fora – o exterior que a constitui (HALL, 2013, p. 106).

A abordagem discursiva vê a identificação como um processo nunca completado, como algo em andamento, no sentido de que se pode ganhá-la ou perdê-la, sustentá-la ou abandoná-la, isto é, ela é condicional e está sujeita ao jogo

da diferença. Ela obedece à lógica do mais-que-um. Freud chama-a de “a mais remota expressão de um laço emocional com outra pessoa” (HALL, 2013, p. 107).

No contexto da obra de Maria Helena Cardoso o conceito de identidade pode ser visto como estratégico e posicional, não assinala o núcleo estável do “eu” que passa do início ao fim sem qualquer mudança por todas as vicissitudes da história:

Agora a guerra nos preocupava, constituía o tema das nossas conversas, como se houvesse um acordo tácito para uma trégua no problema que nos angustiava. [...] Não tínhamos outro assunto: Alemanha, Hitler, os Aliados e logo após as primeiras batalhas, o nervosismo se apossou de mim. Estava inteiramente partilhada: de um lado me entusiasmavam as vitórias fulminantes do exército alemão, suas últimas invenções, os discursos terríveis de Hitler, proféticos e orgulhosos, o amor de Hans, que só vivia a causa de sua pátria e, do outro não podia deixar de estar com os meus, pois embora o Brasil ainda estivesse fora da guerra, parentes e amigos, todos eram a favor dos Aliados, mas meu coração também estava com os alemães, porque estava com Hans. Quando eram vitoriosos e o seu führer, cheio de orgulho, pronunciava discursos que me faziam tremer, dizendo que Deus estava com eles, odiava-os, odiava Hans, que se enchia de soberba, desejando ardentemente a vitória dos Aliados, um castigo de Deus à sua soberba (CARDOSO, 1967, p. 344).

A narrativa não se refere ao “eu” que permanece o mesmo, idêntico a si mesmo ao longo do tempo, mas registra mudanças contínuas no comportamento conflitante da personagem: “o nervosismo”, “estava inteiramente partilhada”. Embora se refira à questão da identidade cultural de Hans, “que só vivia a causa de sua pátria”, a escritora revela o seu “eu” coletivo e verdadeiro que se esconde dentro de muitos outros “eus” de seu povo, mantendo sua história e sua ancestralidade: “não podia deixar de estar com os meus”. Ou seja, um “eu” coletivo capaz de estabilizar, garantir seu pertencimento cultural, sobrepondo-se a todas as diferenças.

Do ponto de vista desta concepção, as identidades não são unificadas, pelo contrário, na modernidade tardia são cada vez mais fragmentadas, construídas ao longo do discurso, em constante processo de mudanças e transformações. As identidades têm, portanto, a ver com a questão da utilização dos recursos da história, da linguagem e da cultura. Não importa o que somos, mas naquilo no qual nos tornamos; não importa quem somos ou de onde viemos, mas o que podemos nos tornar; se somos representados, como essa representação pode nos afetar. Em síntese, mesmo sabendo que as identidades surgem da narrativização do “eu” a

natureza ficcional desse processo não diminui sua eficácia discursiva. Tanto no imaginário como no simbólico, na fantasia ou no interior de um campo fantasmático.

As identidades são construídas dentro do discurso, logo, precisamos compreendê-las produzidas em locais específicos; por meio das diferenças e não fora delas. É o reconhecimento de que apenas por meio da relação com o “outro”, com o que não é, com o que falta, que o significado positivo de qualquer termo – sua identidade – pode ser construído. Toda identidade necessita daquilo que lhe falta.

Para Stuart Hall, as identidades são pontos de apego temporário às posições de sujeito que as práticas discursivas constroem para nós. Isto é, identidades são posições que somos obrigados a assumir, mesmo sabendo que são representações.

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