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FICÇÃO: ARTIFÍCIO OU VEROSSIMILHANÇA, VERDADE OU MENTIRA?

Comecei a mentir por precaução, e ninguém me avisou do perigo de ser precavida, e depois nunca mais a mentira descolou de mim. E tanto menti que comecei a mentir até a minha própria mentira. E isso – já atordoada eu sentia – era dizer a verdade. Até que decaí tanto que a mentira eu a dizia crua, simples, curta: eu dizia a verdade bruta. Clarice Lispector

Se a escrita autobiográfica já traz problemas conceituais para a crítica em geral, imagine quando se trata da escrita autoficcional. Sobretudo no Brasil, onde a autoficção ainda necessita de estudos mais sistematizados, principalmente no que se refere à diferenciação do conceito de autobiografia.

A questão da biografia e da autobiografia é complexa, sobretudo porque a ideia de uma biografia inspira trabalho de interpretação, o que demanda “imaginação criadora”. Segundo Dante Moreira Leite: “... considerando-se as várias possibilidades de interpretação de um mesmo tema ou fato, por mais realista que esse possa parecer”. A mesma ideia se atribui à autobiografia, pois, nas palavras de Leite: “apesar da ilusão de maior verdade: ninguém diz tudo a respeito de si mesmo, e a verossimilhança e o sentido de uma vida dependem de critérios que não são dados diretamente pela ação” (LEITE, 1979, p. 25).

Não se trata de afirmar que o sujeito é uma ficção ou um efeito de linguagem, como sugere Barthes, mas que a ficção abre um espaço de exploração que excede o sujeito biográfico. Assim, o que interessa na autoficção não é a relação do texto com a vida do autor, e sim a do texto como forma de criação de um mito, o mito do escritor. Nem tampouco somente a compreensão do passado, mas a interpretação do presente e da forma como nossa vivência pessoal se entrelaça à história da nossa coletividade, como o indivíduo olha para sua vida tentando decifrá-la com a mesma lucidez que os outros podem vê-lo.

Dentre as obras da modernidade, para citar apenas um exemplo, recorro a Doris Lessing, quando se refere à verdade:

Impossível sentar para escrever sobre si sem sofrer o assédio de questões retóricas da mais tediosa natureza. Nossa velha amiga, a Verdade, é a primeira. A verdade... quando contar, quando ocultar? [...] Dizer a verdade ou não, e como dosá-la, é um problema menor do que a mudança de perspectivas, porque enxergamos a vida de modo diferente em diferentes fases; [...] Tivesse eu escrito este livro aos trinta, teria sido um documento bem combativo. Aos quarenta, um gemido de desespero e culpa: [...] E depois – talvez este seja o pior logro de todos – nós inventamos o passado. Aliás, a mente faz isso bem na nossa frente, fabrica uma história em um pequeno fragmento de fato (LESSING, 1997, p. 21-22).

Donde se conclui que o que está em nossa memória sofre transformações à percepção da instabilidade da matéria, da precariedade do nosso estar no mundo, no sentido profundo de perda e de carência.

Imagine uma casa com muitas janelas, mas apenas com duas ou três portas – esta poderia ser a casa da ficção. Uma narrativa ficcional pode ser contada na terceira ou na primeira pessoa, talvez na segunda do singular ou na primeira do plural, mas é só. Qualquer outra estaria próxima da poesia ou da prosa poética. Logo, estamos limitados à narração na terceira e na primeira pessoa. Essas sim podem parecer fiáveis ou não fiáveis. Fiável quando narradas na primeira pessoa e não fiável, na terceira pessoa, cuja onisciência é mais parcial, pelo simples fato de ser quase impossível. Souza observa que: “a ambiguidade gerada entre realidade e ficção é fortalecida pela utilização da narrativa em primeira pessoa, permitindo aos defensores do realismo confundir autor e narrador, escritor e personagem” (SOUZA, 2011, p. 66).

Nas palavras de Maria Helena Cardoso: “Sílvia dizia palavras de falsa alegria, mas o aperto no coração continuava: por que fazia aquela viagem? Que lhe importava a Europa, se tudo que amava estava ali no Brasil? E o que importa se não as pessoas que a gente ama?” (CARDOSO, 1979, p. 13). Sente-se que a narrativa parece vaguear para longe da autora. A escritora está livre para modelar seu pensamento, acomodando-o às palavras da personagem.

Na história propriamente dita o tempo ficcional é atribuído a uma dimensão temporal dos eventos relatados, valendo-se de localizações relativas ao calendário

ou ao relógio. Na ficção este tempo pode tornar-se subordinado a outra temporalidade que, através do pacto com o leitor pode ser constituído como um tempo pluridimensional, permitindo desenvolver vários planos temporais. Por exemplo, uma carta lida em 1990 pode ter sido escrita em 1980 ou 1880. Na mesma carta podem estar relatados fatos ocorridos em período anterior a 1880. Assim, o narrador tem o poder de ordenar os eventos narrados através de vários arranjos entre planos temporais a partir de visões retrospectivas, prospectivas ou simultâneas.

Para Maria Helena Cardoso o tempo, às vezes, passava num ritmo juvenil, quando estava acompanhada pelo homem que amava:

Voltávamos de bonde, porque demorava mais. Assentados no banco, de braço dado, bem juntinhos, olhávamos embevecidos um para o outro, esquecidos dos outros passageiros, do mundo inteiro. Se aquele bonde não chegasse nunca, se aquela viagem continuasse sempre sem parar (CARDOSO, 1967, p. 180-181).

Outras vezes os momentos se tornavam insólitos e se arrastavam, o tempo era percebido com estupefação: “O Pronto-cor não vem e sua respiração é cada vez pior. O que vai acontecer, esses socorros de emergência como custam, são séculos que se passam sem que alguém acuda” (CARDOSO, 1973, p. 355), ou ainda que esse tempo passava voando, quando queria se agarrar à vida:

Quantas vezes olho minhas mãos. Mãos de uma estranha, enrugadas, cheias de manchas pardas. Contemplo-as aterrorizada. [...] Onde estão as mãos de outrora, magras, compridas mas lisas, sem manchas e sem rugas? Mais do que o meu rosto, me lembram o fim perto, tendo-as sempre diante dos olhos, marcando os anos vividos. [...] Através delas sinto o caminhar do tempo, cada vinco uma hora a menos nesses anos (que sei eu?) que me restam (CARDOSO, 1973, p. 47).

O tempo, pois, acelera e retarda, encolhe e estica, de acordo com o que acontece na consciência: a intensidade das emoções, das recordações, as expectativas, o efeito da rotina ou o fim dela, tudo isto confere ao tempo psicológico uma cadência e duração próprias. As nossas percepções e pensamentos se correspondem, como numa ampulheta. Porém, por mais que se opere uma nova mudança, o tempo corre cada vez mais depressa. Nas ampulhetas, os grânulos de areia friccionam-se uns aos outros, alisando-se até que acabam por passar de um

reservatório para o outro já quase sem fricção, alargando a abertura cada vez mais polida. Quanto mais velha a ampulheta, mais depressa a areia escorre. “Também nas pessoas, os anos recorrentes voam cada vez mais depressa, até que a medida acaba por partir. Também as pessoas são cada vez mais permeáveis às impressões” (DRAAISMA, 2009, p. 190).

Assim, a nossa capacidade de imaginação só consegue captar o passar dos anos se o interpretarmos em termos demonstrativos, isto é, dentro da linguagem do tempo e do espaço: antes, depois e entre, ou, curto e cumprido. Como os risquinhos numa régua ou cada segundo, cada minuto, cada hora num relógio.

Logo, se o acontecimento é ou não recriado na ficção, desvinculado da veracidade dos fatos, vivido, lembrado ou imaginado pelo autor, ele só atingirá o nível de escrita se houver distanciamento e invenção: “Afinal as construções que permanecem na memória das pessoas são como mausoléus cheios de pedaços de vida, de fotos antigas, de móveis empoeirados, de cristais e pratarias foscas. Porque assim somos nós se não enterrarmos nossos mortos” (BRANDÃO, 2010, p. 44).

4.1 A aventura da linguagem em Maria Helena Cardoso

Autobiografia? Não, isto é um privilégio reservado aos importantes deste mundo, no crepúsculo de suas vidas, e em belo estilo. Ficção, de acontecimentos e fatos estritamente reais se se quiser, autoficção, por ter confiado a linguagem de uma aventura à aventura da linguagem, fora da sabedoria e fora da sintaxe do romance, tradicional ou novo. Encontro, fios de palavras, aliterações, assonâncias, dissonâncias, escrita de antes ou de depois da literatura, concreta, como se diz em música. Ou ainda: autofricção, pacientemente onanista, que espera agora compartilhar seu prazer.

Serge Doubrovsky

Fala-se da ficção como forma artificial, facciosa, produto de engenhosidade, cuja função é alterar ou arranjar as coisas que nos rodeiam para encaixá-las nos moldes convencionais, tradicionais. Porém, tal visão condena a arte a uma eterna repetição encurtando seu desenvolvimento, levando os estudos do gênero para uma direção letal. Para se manter a ficção de pé, precisamos capturar o verdadeiro tom de vermos a vida com o que ela nos oferece, sem rearranjos, sentindo, pelo menos, que estamos tocando a verdade. Ficcionalizar os dados é o mesmo que considerá- los como metáforas, ordená-los de forma que não se desviem em relação à “verdade” factual. O gesto ficcional é necessário para a elaboração de um texto literário. Assim, fingir não é enganar, e sim, elaborar uma estrutura inteligível. Para Eneida Maria de Souza, ao citar Jacques Rancière: “O real precisa ser ficcionado para ser pensado” (SOUZA, 2011, p. 11).

A nossa juventude, porém, triunfava sobre toda essa pobreza. Apesar de mal alimentados, passando privações, as perspectivas de futuro nada animadoras, vivíamos alegres. Ao nosso coração nunca faltava esperança e a vida parecia boa. Tínhamos fé em que tudo se resolveria, apenas não sabíamos como. Passávamos conversando, fazendo planos para quando tivéssemos dinheiro: mobiliaria a casa com móveis que sonhava; Nonô compraria cristais, louças lindas e as paredes se encheriam de quadros. Quando falávamos disto, ele costumava colocar-se em frente às paredes nuas e dispor os quadros imaginários: deste lado um Gauguin, aqui embaixo um Renoir, do lado de lá um Van Gogh e, assim por diante. Terminávamos sempre rindo loucamente e enquanto esperávamos pela riqueza que um dia chegaria às nossas mãos, ouvíamos música

na velha vitrola que Fausto tinha deixado guardada conosco por falta de espaço na casa do sogro (CARDOSO, 1967, p. 164).

Maria Helena Cardoso e o irmão eram conscientes da dura realidade e tinham necessidade de fuga para se manterem de pé. Assim, sonhavam com dias melhores. Não estavam fingindo, apenas tentando amenizar as dificuldades através dos devaneios, ficcionalizar o real para sobreviverem ao mal tempo.

Seria a autoficção um tratamento ficcional livre da matéria biográfica, abrindo mão do compromisso com os fatos para se aproximar da verdade íntima? Para responder perguntas como essa, a necessidade de um estudo teórico sobre a questão do gênero autoficcional se faz premente, tendo em vista o impulso autobiográfico e o uso da autoficção como estratégia literária. Muitos são os teóricos que discutiram ou discutem atualmente as questões referentes ao gênero ficcional: Phillippe Gasparini, Vincent Colonna, Philippe Lejeune, Serge Doubrovsky, Philippe Vilain, dentre outros.

O teórico francês Serge Doubrovsky, em 1977, (em carta a Philippe Lejeune) criou o neologismo “autoficção” para responder a uma (dita) lacuna nos estudos sobre o tema da autobiografia. A autoficção seria uma variação pós-moderna da autobiografia, um gênero híbrido que mistura ficção e realidade, enviando sempre uma mensagem contraditória – é verdade e não é, é o autor e não é o autor, isto é, uma narrativa que oscila entre o autor e o outro ficcional. Para ele, o conceito de autoficção inscreve-se na fenda aberta pela constatação de que todo contar de si, reminiscência ou não, é ficcionalizante, e que todo desejo de ser sincero é um trompe-oeil. A diferença entre uma escrita autobiográfica e uma autoficcional está no fato de que, a primeira é concebida pelo “pacto de verdade”, o que é descartado pela segunda. Doubrovsky concebe a autoficção como criação literária, ainda que pautada por fatos vividos. Para ele, o que caracteriza a autoficção é a identidade de nome entre o autor, o narrador e a personagem. E citando Phillippe Vilain : “Dans l’autofiction, Il faut s’appeler soi-même par son proper nom, payer, si je puis dire, de sa personne, et non se léquer à um personnage fictif”8 (VILAIN, 2005, p. 204-205). E explica:

                                                                                                                         

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  Na   autoficção   é   preciso   chamar-­‐se   a   si   mesmo   pelo   mesmo   nome,   pagar,   se   assim   posso   dizer,   com   sua   própria  pessoa,  e  não  relegar-­‐se  a  uma  personagem  fictícia.  (Trad.  Minha)  

L’autofiction est une autre manière de s’appréhender. A partir d’expèriences vécues, de faits vécus, Il s’agit d’ècrire um texte. Seul le primat du texte compte. Il entre évidemment une part de désir autobiografhique, mais le désir est surtout de créer une texte que se lise comme um roman, et non comme une recapitulation historique. [...] L’autoreprésentation n’est pás ici une autodésculpation. Elle cherche à capter (captiver?) l’imagination, la sensibilité du lecteur pour obtenir son identification au personnag-auteur, une participation fascinée à sa vie” (VILAIN, 2005, p. 209).9

Na tessitura dos conceitos de Doubrovsky e Vilain pode-se aventurar na inserção da escrita de Maria Helena Cardoso. Ela desejou, a partir de experiências realmente vividas, criar um texto atraente, que fosse lido como romance ou como autobiografia, como memórias ou como relatos inspirados em suas vivências, mas, sobretudo, que atraísse o leitor, levando-o ao prazer da leitura, e não apenas que fosse lido como veículo de conhecimento de sua vida íntima: “Realmente a vida é feita de pequenas emoções. Mas é assim que eu a prefiro, que a aprendi, que a tenho dentro de mim. É preciso amar alguém, alguma coisa, nunca deixar a alma da gente secar” (CARDOSO, 1973, p. 45).

De certa forma há um apelo existencialista em sua escrita, partilhando suas experiências e sua própria criação literária com o vivido. A autora deseja que sua existência se entreteça no tempo da leitura, com a de seu leitor. Sua escrita fragmentada, com frases às vezes desconexas sugere uma percepção de que não há um centro, não existe uma vida como um todo. Existe sim, um gosto íntimo de viver:

Ah, estava feliz, muito feliz, tão feliz como há muito tempo não era. [...] Atravesso a rua quase dançando, as pessoas apressadas no meu caminho, todas simpáticas. Desejaria fazer com que parassem, conversassem comigo, contassem suas vidas e eu lhes diria que estou alegre, que o mundo é bom, que não existia ameaça. [...] A vida, a rua, as pessoas, o mundo, tudo era meu, tudo me ama (CARDOSO, 1973, p. 325).

Assim, o vivido dá o impulso, mas o que fica é o texto que será lido – não se lê uma vida e sim um texto. Partindo desse principio, conclui-se que nenhuma

                                                                                                                         

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  A   autoficção   é   uma   maneira   de   se   apreender.   A   partir   de   experiências   vividas,   de   fatos   vividos,   trata-­‐se   de   escrever   um   texto.   Somente   o   primado   do   texto   é   o   que   conta.   Entra   evidentemente   uma   parte   de   desejo   autobiográfico,  mas  o  desejo  é,  sobretudo  de  criar  um  texto  atraente  ao  leitor,  um  texto  que  se  leia  como  um   romance,  e  não  como  uma  recapitulação  histórica.  [...]  A  autorrepresentação  não  é  aqui  uma  autodesculpa.  Ela   busca   capturar   (cativar?)   a   imaginação,   a   sensibilidade   do   leitor,   para   obter   sua   identificação   com   o   personagem-­‐autor,  uma  participação  fascinante  em  sua  vida.  (Trad.  Minha)  

autobiografia ou autoficção pode ser a fotografia, a reprodução exata de uma vida. Isso não é possível. A vida é vivida no corpo, a autobiografia é um texto.

O jogo ficcional de Maria Helena Cardoso começa com o registro de ser memorialista, recurso que cria no leitor (desavisado), expectativas que serão desconstruídas no decorrer da narrativa. Dados biográficos unem autor/narrador/personagem, criando a ilusão do “pacto autobiográfico”. Qualquer um que conta sua existência acredita contar a verdade, porém, quando reflete sobre isso, percebe que toda narrativa, mesmo a mais íntima, tem uma forma obrigatória de ficção. O memorialista se põe entre o ficcionista e o historiador. Embora se saiba que a posição do historiador interfira diretamente na interpretação que oferece, ele deve ter a pretensão de oferecer “a verdade” sobre seu objeto. Assim como o memorialista apresenta um testemunho de “boa fé”. Mas, em relação ao ficcionista, o memorialista se encontra mais limitado, pois ele não pode inventar o que passou, impedindo a autobiografia de ser um documento puro e levando seu leitor a se inclinar ora para a história, ora para o ficcional.

Vincent Colonna entende a autoficção como estratégia representacional da literatura: “Uma autoficção é uma obra literária na qual um escritor se inventa uma personalidade e uma existência, considerando sua identidade real (seu verdadeiro nome)” (COLONNA, 1989, p. 113). E para Diana Klinger: “A autoficção é uma máquina produtora de mitos do escritor” (KLINGER, 2007, p. 50). Ela afirma que a presença do autor na obra, em autoficções, poderia ser vista como um jogo, que brinca com a noção de sujeito real. Uma espécie de “efeito” de vida real presente no mundo contemporâneo cercado por virtualidades e o que interessa na autoficção não é a relação do texto com a vida do autor, e sim a do texto como forma de criação de um “mito do escritor”. Já para Gerard Genette, o termo autoficção não é nem mesmo inovador, pois, trata-se de um dos mais básicos procedimentos ficcionais o fato de o autor fingir sua entrada na ficção. E Phillippe Gasparini vê no termo uma dupla recepção – ora ficcional, ora autobiográfica. Um passo importante foi também dado por Silviano Santiago em 2005, ao apresentar Histórias mal contadas, como autoficção. Segundo o autor, ele já havia abordado em obras anteriores questões como experiência e memória, até que descobriu o termo e passou a usá-lo.

Infere-se, pois, que o temo autoficção corresponde a uma das feições literárias que delineiam a literatura do presente. Assim, a fronteira entre o “fato” autobiográfico e “ficção” é muito tênue, como já foi dito. Muitas vezes o grau de “fingimento” é tão variável, que a diferenciação entre o autêntico e o romanceado se torna impossível.

Vários são os aspectos que diferenciam a autoficção da autobiografia: na autoficção instaura-se o tempo presente (não se trata mais de um relato retrospectivo nem de uma recapitulação histórica); noção de fragmento – ela não pretende dar conta de uma totalidade; é uma “ficcionalização de si” e uma “prática de cura”. No compartilhar um trauma, uma dor ou algo que incomoda, elabora-se, alivia-se e se compreende melhor, fazendo da escrita e da aventura da linguagem, pontes para alcançar paz interior.

Pode-se até fazer da vida um romance, como parece ter sido o caso de Sonata perdida, mas será um romance no interior do qual a identidade do autor será apresentada na forma de miragem, quimera ou mentira. Longe de o livro ser o lugar onde se constrói sua identidade, ele se torna prova de inquietude onde o autor, ao mesmo tempo, se completa e se dissolve. Conclui-se que, na autoficção o sujeito se constitui como fictício e no romance autobiográfico sua identidade se apresenta de forma ambígua. De uma maneira ou de outra credita-se à autoficção um prodigioso instrumento de leitura, abrindo perspectivas para a literatura e para as obras que surgirem entre a autobiografia e o romance, a fantasia e o factual.

Diante de tantas opiniões divergentes resta-nos o questionamento do por que da literatura contemporânea muitas vezes embaralhar as categorias de autobiografia e ficção. Na autobiografia supõe-se o encontro da narração de acontecimentos verdadeiros – mesmo sabendo-se da problemática da questão da verdade. No gênero ficcional ou romance, o leitor já está preparado por um pacto, para aceitar determinadas situações, mesmo que sejam mais complexas e misturadas.

Maria Helena Cardoso nunca se julgou uma autobiógrafa, e muito menos uma pessoa importante no mundo. Como afirmou certa vez, ao se referir às suas memórias: “Qual nada, não tinham valor senão para mim. Apenas uma narrativa ingênua de uma menina do interior [...] não tenho confiança no que escrevi”

(CARDOSO, 1973, p. 14). E, embora tenha escrito no crepúsculo de sua vida, o que desejou foi narrar os fatos estritamente reais, para preservar a memória daqueles que amou. Porém, a linguagem não é confiável, e ao se embrenhar na aventura dessa linguagem, muitas vezes se perdeu pelos caminhos da ficção. Natural, quando se escreve autobiografia, tenta-se contar toda uma história, desde as origens.

Talvez o tom confessional que desponta na obra de Maria Helena Cardoso possa classificá-la como “autobiográfica”, a despeito da autora afirmar não ter tido a intenção de falar de si, mas dos que com ela viveram para não deixar que suas lembranças se perdessem. Entretanto, ela nunca se furtou de falar de suas experiências, sua infância, seus amigos e amores, fazendo de sua vida uma série de

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