• Nenhum resultado encontrado

1.2 Linguagem e História

1.2.3 O Arquivo

Como vimos, a noção de descontinuidade foucaultiana rompe com o postulado da homogeneidade, princípio característico das ciências positivistas. Esse rompimento permite promovermos reflexões acerca da questão do corpus, que passa a não mais ser visto a partir da perspectiva da homogeneidade. Essa transformação da forma de se encarar os documentos pelo pesquisador é tornada possível por meio do conceito de arquivo, ao qual Foucault atribui o vínculo imediato ao sistema da enunciabilidade, isto é, o fato de um enunciado ser produzido por um sujeito em um lugar institucional, determinado por regras sócio-históricas que definem e possibilitam que ele seja enunciado. A longa citação abaixo traduz claramente por si mesma a maneira pela qual o autor encara os documentos do pesquisador.

Não entendo por esse termo a soma de todos os textos que uma cultura guardou em seu poder, como documentos de seu próprio passado, ou como testemunho de sua identidade mantida; não entendo, tampouco, as instituições que, em determinada sociedade, permitem registrar e conservar os discursos de que se quer ter lembrança e manter a livre disposição. Trata-se antes, e ao contrário, do que faz com que tantas coisas ditas por tantos homens, há tantos milênios, não tenham surgido apenas segundo as leis do pensamento, ou apenas segundo o jogo das circunstâncias, que não sejam simplesmente a sinalização, no nível das performances verbais, do que se pôde desenrolar na ordem do espírito ou na ordem das coisas; mas que tenham aparecido graças a todo um jogo de relações que caracterizam particularmente o nível discursivo; [...] O arquivo é, de início, a lei do que pode ser dito, o sistema que rege o aparecimento dos enunciados como acontecimentos singulares. Mas o arquivo é, também, o que faz com que todas as coisas ditas não se acumulem indefinidamente em uma massa amorfa, não se inscrevam, tampouco, em uma linearidade sem ruptura e não desapareçam ao simples acaso de acidentes externos, mas que se agrupam em figuras distintas, se componham umas com as outras segundo relações múltiplas [...] Longe de ser o que unifica tudo que foi dito no grande murmúrio confuso de um discurso, longe de ser apenas o que nos assegura a existência no meio do discurso mantido, é o que diferencia os discursos em sua existência múltipla e os especifica em sua duração própria (FOUCAULT, 1995, p. 148-9).

Em suma, a forma de se recolher e organizar o material de pesquisa sofre reelaborações consideráveis. Em termos práticos, não se busca ingenuamente nos textos as regularidades e as relações homogêneas, como em um bloco unificado, mas as regularidades específicas inscritas em cada texto. Trabalhar com o conceito de arquivo permite flagrarmos o sistema de formação e de transformação dos enunciados, inscrevendo-os em um conjunto de formulações.

Em Ler o arquivo hoje (1997), Pêcheux também trata a propósito da questão do arquivo, trazendo reflexões mais centradas acerca da polêmica que envolve a leitura dos documentos textuais. Depois de discorrer sobre as possíveis vertentes de leitura de arquivos (“leitura literária” versus “leitura técnico-científica”) e as conseqüências de cada uma delas que repercutem na relação entre a sociedade e sua própria memória histórica, o autor advoga por um gesto de leitura que se situa no entremeio. Nem do lado dos “literatos” (relativo aos historiadores, filósofos, pessoas de letras etc), tradicionalmente responsáveis pela leitura do documento; nem do lado dos “cientistas” (relativo aos fabricantes e utilizadores de instrumentos), responsáveis pela produção das informações. O autor se posiciona a favor de uma materialidade

da língua na discursividade do arquivo.

É à existência desta materialidade da língua na discursividade do arquivo que é urgente se consagrar: o objetivo é o de desenvolver práticas diversificadas de trabalhos sobre o arquivo textual, reconhecendo as preocupações do historiador tanto quanto as do lingüista ou do matemático- técnico em saber fazer valer, face aos riscos redutores do trabalho com a informática – e, logo, também nele – os interesses históricos, políticos e culturais levados pelas práticas de leitura de arquivo (PÊCHEUX, 1997, p. 63).

Segundo o autor, à leitura do arquivo, como uma “leitura” interpretativa, não devem escapar os elementos constitutivos da língua, como a materialidade de natureza

formal específica da língua, tampouco os deslizes, as falhas, as ambigüidades. Ou

seja, o trabalho de leitura de arquivo deve centrar-se no ponto em que surge a questão do sentido do interior do sistema lingüístico.

[...] se o homem é assim capaz de jogar sobre o sentido, é porque, por essência, a própria língua encobre esse „jogo‟, quer dizer o impulso metafórico interno da discursividade, pelo qual a língua se inscreve na história. [...] É esta relação entre a língua como sistema sintático intrinsecamente passível de jogo, e a discursividade como inscrição de efeitos lingüísticos materiais na história, que constitui o nó central de um trabalho de leitura de arquivo (PÊCHEUX, 1997, p. 62-63).

Essa nova forma de compreensão e organização do corpus, distinta daquela que devia responder a critérios de representatividade e homogeneidade, a partir da aplicação de um método definido – típica dos estudos iniciais desenvolvidos por Pêcheux –, levanta questionamentos em especial sobre a neutralização do exterior

discursivo, apontando para a necessidade de se analisar, no corpus, outras relações de força além, por exemplo, da justaposição contrastada.

Isto é, a partir da noção de maquinaria discursiva estrutural, fundamental para a construção das bases epistemológicas da análise automática do discurso (PÊCHEUX, 1995) – sobre as quais Pêcheux se apoiou para a construção da Análise do Discurso francesa –, o corpus de trabalhos filiados a essa tendência, constitutivamente fechado, era compreendido como um mero conjunto determinado de textos, organizado a partir de operações de extração e segmentação de seqüências discursivas (geralmente centradas no léxico), como uma espécie de máquinas discursivas estruturais. Por meio de procedimentos homogeneizadores como esses, o corpus necessariamente tornava-se mais homogêneo. Além disso, dava-se entender que aquelas seqüências preexistiam a qualquer universal, excluindo qualquer exterior discursivo. Com a introdução do conceito de arquivo, levanta-se um questionamento sobre esses procedimentos de homogeneização e neutralização do exterior discursivo, apontando para a necessidade de analisar no

corpus outras relações de força além da justaposição contrastada.

Essa forma de abordar o discurso, e por decorrência o corpus, abre, portanto, caminho para uma nova perspectiva dentro dos estudos discursivos, que se distancia de projetos pautados na noção de homogeneidade, primando pelo heterogêneo, qualidade inerente ao discurso. Instala-se, então, no campo dos estudos do discurso, em termos teórico-metodológicos, o primado da

heterogeneidade.