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O conjunto de enunciados mapeado, no texto “Segredos da Memória” (Anexo 1), sobre a maneira de educar da mulher-professora, que gira em torno de sentidos ligados ao amor, ao afeto, ao estímulo, à orientação (como “encontrei uma professora que era amorosa”; “com ela aprendi a viver e... a ser”), reitera princípios e práticas educacionais próprios da mulher e da mãe, isto é, ligados à aptidão inata maternal feminina para o magistério. Como vimos no capítulo 2, às mulheres destinava-se a educação dos meninos pequenos, por conta da identidade entre a

natureza maternal da mulher e a natureza infantil das crianças.

Há mais semelhança nas duas naturezas infantil e feminina. A inocência, a curiosidade, a bondade, o sentimento, as lágrimas, os sorrisos e até a voz, tudo se harmoniza na mulher e no menino. Todas as leis do coração levam

o menino para a mulher e não para o homem; e que admira isto, se foi nas entranhas femininas que ele recebeu já uma ante-vida (VILLANOVA, 1877, apud WELER, 2005).35

Essa educação apregoada por meio do afeto, do amor, do cuidado, da dedicação, do carinho, da doação, se constituiu historicamente por meio de características historicamente consideradas femininas, ligadas à mulher, à mãe, sob o estigma da “maternagem”, termo empregado por Rubem Alves, por exemplo, para caracterizar essa prática docente, em O prazer da leitura (2001).

Na segunda parte do capítulo 2 (2.2 A mulher e a Educação: formação e profissionalização), quando tratamos do processo de inserção da mulher na educação – reconhecido no âmbito acadêmico como “processo de feminização do magistério –, tanto em termos de sua formação como em termos de sua profissionalização, podemos acompanhar como e porque esses sentidos em torno da maternagem foram historicamente construídos. Além disso, podemos ainda verificar os reflexos dessa produção histórica de sentidos, nos princípios e nas práticas educacionais das professoras adotadas atualmente, quando elas são naturalizadas como mães.

Ainda sobre o processo de feminização ocorrido no magistério, podemos encontrar em vários intelectuais brasileiros, trabalhos que versam sobre o tema. Em seus trabalhos, eles apresentam seus pontos de vista e suas análises particulares sobre esse fato. No entanto, em uma coisa eles são unânimes, o processo de feminização do magistério “coincidiu” com o surgimento da Escola Normal, em meados do século XIX, grande responsável pela constituição da forma feminil no magistério, que assemelhava a docência com o trabalho doméstico, a dependência, a fragilidade, o devotamento, entre outras qualidades ditas femininas. Vejamos superficialmente alguns desses pontos de vista, que de alguma forma resumem as discussões promovidas sobre a questão no sub-capítulo 2.2:

35 VILLANOVA, 1877, apud WELER, F. Práticas de gestão e feminização do magistério. Cadernos de

Pesquisa, São Paulo, v. 35, n.126, Sept./Dec., 2005. Disponível em:

<http://www.scielo.br/scielo.php?pid=50100-15742005000300005&script=sci_arttext>. Acesso em: 12 jan. 2009.

Segundo Tambara (1998, p. 49), a “feminização” ocorreu por conta de uma “identificação entre a natureza feminil e a prática docente no ensino primário”, por uma espécie de colagem das características próprias do sexo feminino ao magistério; Almeida (1998, p. 64) refere-se à “feminização do magistério primário” como expansão da mão-de-obra feminina nos postos de trabalho em escolas e nos sistemas educacionais; Campos (2002) relaciona o processo de feminização do magistério ao próprio desprestígio sócio-econômico da profissão de professor, devido às baixas remuneração e qualificação, além do fato de promover o acolhimento de moças procedentes de camadas pobres da população; Silva (2002, p. 96) vê o processo como uma luta travada pelas mulheres em busca de uma estabilidade profissional, passando a configurar o magistério como um nicho no mercado de trabalho ocupado por mulheres; Viana (2002, p. 56) vai mais além da mera questão de sexo, vista sob a ótica da predominância numérica da categoria por mulheres. Para a autora, independentemente de quem as realiza, tanto professores quanto professoras, ambos desempenham relações e práticas escolares ligadas à feminilidade. O sentido feminino da profissão do magistério ultrapassa o fato de a maioria dos docentes ser mulher, pelo entendimento da feminização de espaços e práticas mesmo quando ocupados por homens. Para ela, portanto, o magistério é uma profissão feminina em decorrência de uma atribuição social, independentemente do sexo de quem a exerce; Lopes (1991) discute a questão pelo viés psicanalítico, na medida em que caracteriza a feminização e o magistério como missão, vocação e apostolado, tentando explicar a relação entre maternidade e docência.

No que tange à questão da memória discursiva, especificamente ligada ao processo de regularização, a aparição desses enunciados em torno da maternagem na contemporaneidade, como ocorreu no texto em análise (Anexo1), retoma e re-insere na história um discurso atual que corrobora com um discurso histórico, sustentando uma regularidade. Apoiando-nos em Achard (2007), podemos confirmar ainda mais essa repetição, a seguir, com o mapeamento de mais enunciados no restante do

corpus que nos autorizam a estabelecer uma regularidade, quando as professoras

do Formar descrevem suas ex-professoras e/ou suas práticas docentes. Isto é, mapearemos enunciados que repetem de alguma forma esse discurso, situando-os dentro de uma série (E1).

Segue o “inventário” de enunciados, de recortes retirados do corpus, que fazem parte de E1:

(6)36 Só no ano seguinte eu voltei a estudar, com outra professora, bem mais atenciosa e carinhosa.

(15) Só sei que era muito agradável estudar e que na 1ª série a minha professora se chamava Marlene, linda e amorosa. [...] Ela era linda,

cheirosa e maravilhosa, algo fora do normal para mim e gostava tanto dela

que nem dá para descrever.

(7) Recordo mais da minha professora Rafaela, como eu gostava dela, era muito carinhosa e atenciosa com todos.

(17) Minha professora da 1ª série era muito doce, maravilhosa. [...] tudo era muito bom.

(18) Somente na série seguinte (2ª série), com uma professora mais

compreensiva e dedicada, tudo tornou-se mais fácil.

(19) A professora era gentil [...] na memória ficou a melodia harmoniosa da

voz da professora repetindo incansavelmente.

(10) Dona Beatriz era também muito meiga e sempre pronta para nos dar

devida atenção.

(9) Guardo boas lembranças da Tia Conceição que com seu jeito alegre e

simpático.

Observando na série acima as caracterizações da mulher-professora ou da sua maneira de lidar com os alunos, quando as professoras do Formar descrevem suas ex-professoras, encontramos palavras que mantém uma relação parafrástica entre si, na medida em que conservam os mesmos sentidos em torno do estigma da maternagem, discutido anteriormente, como podemos apontar em palavras que qualificam a mulher-professora como: atenciosa, carinhosa, linda, amorosa,

cheirosa, maravilhosa, doce, gentil, compreensiva, dedicada, meiga, alegre, simpática.

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O número a frente dos recortes retirados do corpus corresponde à numeração dos textos de onde os recortes foram retirados, nos Anexos da pesquisa. Por exemplo, “6” corresponde ao texto do Anexo 6, e assim por diante.