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Encontramos em Maria do Rosário Gregolin (2006), no capítulo IV (“Chegando o tempo de partir os espelhos, todos os caminhos se bifurcam”), uma discussão mais ampliada sobre a destruição da máquina discursiva e sobre as concepções althusserianas que dominaram o início das propostas da análise automática do

discurso (PÊCHEUX, 1995), cujos princípios contrastam com os estudos discursivos

Remontemos alguns pontos importantes dessa transformação no campo da Análise do Discurso de linha francesa (AD).

Diante das grandes mudanças sociais ocorridas na França, no início dos anos 1980, o projeto althusseriano foi tornando-se inviável. Muitos dos seus conceitos fundamentais, como as idéias de aparelhos ideológicos, de sujeito interpelado pela

ideologia, da história como luta de classes etc., tiveram que ser reformulados. No

plano econômico, o desaparecimento da “classe operária”, as reconfigurações econômicas da globalização e as novas relações de trabalho foram alguns fatores fundamentais para a desconstrução das bases epistemológicas gestadas antes mesmo de 19694, sobre as quais Pêcheux se apoiou, na época, para a construção da AD. Somado a isso, ocorrem ainda extraordinária expansão dos meios de comunicação de massa e excepcional desenvolvimento das tecnologias da informação que transformavam o mundo em uma imensa e interligada “aldeia global”.

Pêcheux não poderia ficar indiferente ao complexo de processos e forças de mudanças estruturais e institucionais pelas quais as sociedades e os sujeitos passavam. Mudanças que desmontavam um espaço de normalidade, fruto de uma linearidade do olhar, de uma homogeneização. Mudanças que abriam caminho para uma espécie de deslocamento do sistema hegemônico em um leque heterogêneo de novas representações.

As categorias althusserianas de “luta de classes”, de “interpelação ideológica” e a insistência de Pêcheux em pensar centralmente no “lingüístico” já não cabiam nesse novo mundo que se desenhava pleno de heterogeneidades (GREGOLIN, 2006, p. 154).

Se por um lado ocorre um afastamento das leituras althusserianas; por outro, há uma aproximação dos “historiadores do discurso”. Dentre eles Foucault recebe grande importância para as reformulações da AD, na medida em que focaliza as inter-relações entre a materialidade do discurso e a história. As críticas de Courtine (1999) nessa época também são centrais para o projeto pecheuxtiano de reformulação. Ele critica, dentre outras coisas, a noção de formação discursiva (FD)

4 Ano do texto original de Michel Pêcheux, Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux.

desenvolvida por Pêcheux, por considerá-la “muito fechada” e propõe pensá-la como “fronteiras que se deslocam”, a partir da noção de FD desenvolvida por Foucault.

Os projetos de pesquisa sobre os discursos que devolvem à discursividade sua espessura histórica não estão, no entanto, caducos, mas devem ser inteiramente repensados. Parece-me, em particular, que eles poderão fazer a economia da análise de representações complexas feitas de linguagem, de imagens e de práticas. Analisar discursos não pode mais se limitar a caracterizar diversos tipos de textos em diferentes níveis de funcionamento lingüístico, mas em pensar e em descrever a maneira como se entrecruzam historicamente regimes de práticas e séries de enunciados, e em particular, desse modo, as perspectivas lingüística e histórica em uma direção outrora indicada por Michel Foucault (COURTINE, 1999, p. 17).

Podemos encontrar, ainda no campo dos estudos do discurso mais recentes, outros trabalhos que também incorporam a idéia de heterogeneidade, na investigação, por exemplo, das relações entre o intradiscurso e o interdiscurso (que serão tratados mais a diante, em 1.6 Memória e Interdiscurso). Entretanto, o que os diferencia do estudo empreendido por nós aqui é o enfoque não-subjetivista da discursividade. Para tanto, eles se apóiam em duas grandes linhas de pensamento: na psicanálise lacaniana e no dialogismo bakhtiniano.

Quanto à psicanálise empreendida por Lacan, orientada pela releitura de Freud e de Saussure, são as palavras do inconsciente que pontuam sobre a cadeia significante. O sujeito é dividido, constitutivamente clivado, assujeitado pelo inconsciente. O inconsciente aflora nas lacunas da linguagem como uma linguagem. Assim, o binômio saussuriano significante/significado é utilizado para representar a relação entre consciente/inconsciente. O que falamos (que está no nível da consciência) representa o significante e o significado está oculto, inacessível à consciência.

O inconsciente é o Outro, fonte de todo o sentido das palavras do Eu, e que precisa ser recalcado para que este tenha direito à existência. [...] A linguagem mesmo é representante desse Outro que nos define na essência. É através da linguagem que falo de mim, que eu me defino e defino o outro por oposição a mim, mas também é através dela que me relaciono com ela mesma. Falo do meu discurso em oposição ao discurso do Outro. [...], a linguagem é, portanto, ao mesmo tempo o Outro constitutivo e do outro a quem eu me refiro para falar da minha linguagem. Sendo assim, a “minha linguagem” é ilusoriamente minha. Ela advém da inconsciência da linguagem constitutivamente do Outro (COSTA, 2005, p. 30).

O “princípio dialógico” bakhtiniano, por sua vez, “concebe a linguagem como uma atividade humana constitutivamente heterogênea e interativa, social e

plurilingüística, em que a relação com o Outro é a base da discursividade” (Costa, 2005, p.30). O signo, enquanto objeto significativo mínimo da linguagem, é tido como “ideológico”. Em suma,

a hipótese teórica do Círculo de Bakhtin sustenta que o discurso é essencialmente heterogêneo. O sujeito do discurso utiliza sempre as palavras dos outros e as utiliza ora passivamente, através das palavras que ele aprendeu socialmente e que herdou das gerações anteriores, ora ativamente, na medida em que ele cita as palavras dos outros intencionalmente, mesmo que não marque de maneira explícita essa citação em seu discurso, e também na medida em que seu discurso é sempre resposta a outros discursos passados ou futuros (antecipados) (COSTA, 2005, p. 29-30).

Authier-Révuz (1982) é a principal representante dessa abordagem. Seus estudos contribuíram com as noções de heterogeneidade mostrada e heterogeneidade

constitutiva, que incitaram os pesquisadores a buscarem o “discurso-outro” que

aflora nos discursos, cabendo ao analista o trabalho de observação e descrição dos “furos”, das falhas, das marcas deixadas no fio do discurso.

Ao conjunto de fissuras, junções que funcionam como costuras escondidas, sob a unidade aparente de um discurso, e que a análise – análise do discurso, descrição de textos literários e poéticos, psicanálise – pode, em parte, evidenciar como pistas do interdiscurso ou do jogo significante, as formas marcadas da heterogeneidade mostrada opõem a retórica da falha mostrada, da “costura aparente” (AUTHIER-REVUZ, apud COSTA, 2005, p. 31).

No Brasil podemos levantar nomes que trilharam por esse mesmo caminho, como Coracini (2006) e seu grupo de pesquisadores que trabalham em torno do discurso docente, discutindo a questão do sujeito e da identidade, na formação de professores de língua materna e de língua estrangeira.

Na tentativa de posicionar a nossa pesquisa em meio a esses estudos de diferentes naturezas, poderíamos situá-la em outra direção, distinta daquela que tende a dar ênfase ao viés psicanalítico. Isso não significa que estejamos negando a validade de trabalhos como os mencionados anteriormente, exemplos dessa tendência. O fato é que os estudos que nos propomos empreender não tangenciam, por exemplo, questões que envolvem processos psíquicos e simbólicos do inconsciente. Optamos por direcionar nossos estudos, mais precisamente, nas articulações entre o discursivo e o histórico. Com isso, as condições sociais e históricas de produção do

discurso é que estão na base de nossas investigações. De modo mais preciso, isso significa pensar as formas conflituosas de inscrição da historicidade nos processos de significação da linguagem e estudar as circulações de sentidos nas inter-relações entre enunciados de um momento histórico particular.

Essa forma de pensar a produção e circulação dos sentidos encontra ainda em Courtine (1999) e (2007) uma referência, na medida em que o autor concebe o discurso no interior de um feixe de relações entre a língua e a história. Ele defende claramente a re-introdução da dimensão histórica no campo do discurso. Isso significa apontar a historicidade que se inscreve nos processos de significação da linguagem, promovendo articulações entre o discurso e o que lhe é historicamente anterior. O que nos leva a pressupor que os discursos vêm sempre de outros discursos que lhes são prévios, e que são retomados de alguma forma. Essa relação, entre linguagem e história, concebida em nossa pesquisa, será tratada de agora em diante a partir das relações que se estabelecem entre a memória e o discurso.